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O sofá listrado

Deitei os olhos na fotografia de quando eu era em preto-e-branco.

É do sofá listrado que vou dizer. Embaixo do assento havia uma espécie de baú para guardar coisas. A gente o erguia e uma travinha fazia ‘clec’, mantendo-o aberto. Ali dentro, antigos cadernos escolares de nós três, provas de matemática, pastas coloridas com dobradura para o dia do índio, bandeira do Brasil pintada com lápis de cor, gibis e papéis que não contaram com destino melhor, reunidos em caótico acervo.

Essa era, aliás, uma característica da nossa casa. Uma gaveta dando sopa, um pedaço de armário, tudo virava abrigo para objetos aleatórios e quase sempre inúteis, como uma escova de cabelos quebrada, uma tampa órfã de caneta, um anelzinho de plástico que viera de brinde no chiclete Ping-Pong. Uma desorganização doméstica aparentemente inofensiva, a revelar o estado das coisas na casa de número um da vilinha da rua Natal.

De tempos em tempos, eu passava horas fuçando nossas lembranças impressas, no porão do sofá listrado. Se eu estava, por exemplo, na quinta série do ginásio, e encontrava um caderno do segundo ano primário, apesar de apenas três anos os separarem, ele já era considerado uma antiguidade. Antiguidade, hoje, é topar com algo de trinta anos atrás. Três anos? Foi ontem, oras. Gostava de folhear o caderno, comparar minha caligrafia de então com a anterior, reler os ditados de português, relembrar o nome da professora, observar meus desenhos. Eu me tornava uma criança encantada com a minha criança.

Quando trocamos o velho sofá por um mais moderno, sem listras, notei: cadê o baú? Não tinha. Onde ficaria nossa bibliobarafunda?

Meu reino para rever, hoje, aquela coisarada. Uma vezinha só. Folhearia meus cadernos e ficaria com vontade de abraçar a menina que fui. Alcançaria os gibis da Turma da Mônica, leria alguns do Tio Patinhas. Nas últimas páginas, a seção de cartas dos leitores-mirins que queriam se corresponder com outras crianças. Sempre prestei atenção aos seus nomes e endereços. Lembro que, um dia, me surpreendi ao ver a cartinha de uma menina (eu não a conhecia) que morava perto da minha casa. Não escrevi para ela. Que adultos se tornaram aquelas crianças?

Além do velho sofá listrado, queria escrever de novo na Olivetti Lettera, que a gente colocava sobre a mesinha de centro da sala e de onde saíram tantos trabalhos de escola, e também meus primeiros e tímidos escritos. Queria o Tommy no colo mais uma vez. Gato bonito, embora vivesse estropiado de tanto brigar com outros bichanos nos telhados. Nunca mais tive cabelos tão compridos assim. Queria reviver a fotografia inteira, com a estante que não aparece, a TV, o som, os duzentos LPs, o relógio cuco. Quem fez o clique?

Parte da minha vida cabe num baú de sofá. De tempos em tempos, ergo o assento, uma travinha faz ‘clec’, deixo-o aberto. Então vou revendo, em recordações listradas de saudade e melancolia, tudo que guardei ali.

Eles

arte: Robert & Shana ParkeHarrison

É deles que quero falar.

Eles, que moravam em nossa rua, um pouco acima da nossa vila, em uma casa destoante das demais do pedaço. Se todas por ali eram muito simples, a deles era mais. Casebre antigo, plantado no fundo de um grande terreno, vinte de frente, cinquenta de fundo. O que também destoava; na nossa rua Natal, com raras exceções, as casinhas eram coladas umas às outras. Lembranças de um bairro operário. Fora o casebre, tão pouco. Nem garagem, nem carro, nem jardim. Umas bananeiras, o mato crescendo livre. E o casebre lá. Feito ilha.

Eles, que não tinham nome. As pessoas se referiam àquela família como “os turcos”. Se eram legítimos turcos da Turquia, não sei dizer. A geografia da ignorância nunca foi bem mapeada. Só sei que eram diferentes. E a gente não tinha olhos para os diferentes. “Os turcos” não se relacionavam muito com a vizinhança. Porque a vizinhança não queria muito se relacionar com eles.

Eles, que não conversavam pelo muro com os outros vizinhos, como todo mundo. Suas crianças não andavam de carrinho de rolimã na rua, nem jogavam bola com os outros meninos. Nem sei, ao certo, se iam à escola, ou como foram parar naquele pedaço da Mooca. Uma aura sinistra pairava sobre aquela casa pobre. Feito lenda.

Eles, com quem não podíamos brincar. Ordem expressa dos mais velhos; baseada em quê, exatamente, não sei. Talvez um boato, alguma história mal contada que criança não deveria saber. Entrar na casa deles, nem pensar.

Até o dia em que entrei.

Levada por uma amiga que morava nas imediações, que precisava tratar alguma coisa lá. Jogo rápido, ela me tranquilizou. Entramos sem bater palma, não havia campainha. A caminhada até o casebre pareceu-me infinitamente assombrada. Então eu não morria de medo deles? A amiga, talvez lendo meus pensamentos, falou: “Eles são legais, vem”. O medo, construído no solo fértil da imaginação, tentou e quase venceu. Então, feito o que precisava ser feito, deixamos a casa, desci a rua correndo, entrei na vila, alcancei nosso portão. E agora? Conto, não conto, conto, não conto? Guardei o segredo como uma perigosa aventura infantil à qual eu, heroicamente, sobrevivera. Continuei a passar, todo santo dia, em frente à casa deles, tão diferente e tão incorporada à paisagem. Com o tempo, o medo se foi. A indiferença, não.

Até o dia em que eles foram embora.

O terreno foi vendido. O casebre, demolido. As bananeiras, derrubadas. No lugar, surgiu um prédio de apartamentos. Era a história dos “turcos” soterrada para sempre. De certa forma, a minha também. Admito que não senti falta dos meus não-vizinhos, do terreno semiabandonado, do casebre, das bananeiras solitárias, daquela família excluída, maltrapilha, que nunca fizera mal a mim e, até onde sei, a ninguém. Se pouco sabíamos deles enquanto viviam ali, nunca soubemos para onde foram. Será que continuaram sendo “os turcos” em outras paragens?

O prédio erguido, curiosamente, também destoava na rua. Por muito tempo, reinou como único arranha-céu (nem tanto ao céu) do quarteirão. Na frente está escrito um nome pomposo, em outra língua. Para essas coisas, a gente gosta do estrangeiro. O prédio bem que podia, numa espécie de redenção, tardia e inútil, se chamar Edifício Eles.

Receita

Eu bem que tento. Corto a abobrinha dum jeito, corto doutro. Fatio fininho, fatio mais grosso. Produzo cubinhos maiores, menores, médios. Ora deito na panela pouco óleo, ora bastante. Alho e cebola, sempre. Refogo, provo o sal, deixo cozinhar. Depois, quebro os ovos por cima e espero a mágica acontecer. Quando gema e clara estão a um passo de firmar, revoluciono tudo com a colher de pau. Então sirvo.

Ficar bom, fica. Pouco lembra, no entanto, a iguaria da infância, de sabor e receita registrados naquele caderno invisível, com letra de mão de mãe. Sempre falta alguma coisa. A toalha xadrezinha sobre a mesa de fórmica, os pratos duralex que não quebravam nunca. Faltam o quintal de caquinhos vermelhos e o porão onde ficava a enceradeira. Falta a Françoise Hardy na vitrola, com sua “La Question”. La question que não cala: por que não sou capaz de reproduzir a abobrinha com ovo da minha mãe? Algum tempero secreto, será? Eu exagero nos ovos? Falando em ovo, quem nasceu primeiro, o amor ou a saudade? Que tonta, eu. Falta é ela.

A gíria é velha: quando alguém falava bobagem, dizia-se que estava “falando abobrinha”. Injustiça. Eis aí legume bacana, de boa com a vida. É ter abobrinha dando sopa na geladeira e o banquete está garantido (inclusive sopa). Logo, na minha avaliação, falar abobrinha é bom. “Benzinho, me fala alguma abobrinha” – sussurraria a mocinha apaixonada, na novela das seis.

Contam que minha sogra fazia a receita. Em vez de abobrinha, porém, vagem picadinha. Família é assim. A base é a mesma, só mudam os personagens. Ou ingredientes.

Fiz abobrinha com ovo esta semana, para acompanhar o arroz e o feijão. É o sabor e a receita que meus filhos terão registrados em seus próprios cadernos invisíveis, com letra-mãe. Não saberão da abobrinha com ovo da avó, que não conheceram. Memórias culinárias são feitas de passado, embora se construam no presente. E repetir receitas afetivas é uma forma de perpetuar a espécie, um modo bom de fazer vida. Eu vivo falando das minhas. E se, por acaso, disserem que falo muita abobrinha, já sabem: é elogio.

(crônica finalista no Prêmio Off Flip/Festa Literária Internacional de Paraty, abril/2021)

As listas

Quem tinha telefone em casa, tinha também lista telefônica. Nelas, os números e endereços de tudo e todos. Um abecedário de mundo.

Depois de quitar o carnê com vinte e quatro prestações do plano de expansão da Telesp, e ter nosso aparelho – vermelho, de teclas – instalado na sala em lugar de honra, passamos a receber as listas em casa. Eram duas: a residencial e a comercial, mais conhecida como páginas amarelas.

Livrões desajeitados, encadernação molenga, as listas tinham folhas finiiinhas e letras miúdas. Só assim para abarcar o mar informacional. Um Google de papel, basicamente. A cada dois anos, eram atualizadas. E lá vinham os moços com uniforme da companhia entregá-las. A gente se livrava das antigas? Nem sempre. Por garantia, mantínhamos algumas, para o caso de faltar alguma coisa nas novas. Vai que.

As nossas ficavam na estante da sala, ao lado do telefone, dos livros, TV, rádio, vitrola com som estéreo que nos dava orgulho, um barzinho com bebidas que ninguém tomava e muitos, muitos bibelôs. Estante de sala, naquele tempo, era a central de mídia de uma casa.

Eu achava bem chique quem tinha uma mesinha só para o telefone, com cadeira ao lado. Os aparelhos sem fio só chegaram depois; não dava para sair andando e falando pela casa. O fio enroladinho esticava, pero no mucho. Na mesinha, o porta-caneta, agenda telefônica com os números (escritos à mão) da madrinha, dos primos, dos vizinhos, das amigas, da farmácia, da escola, da vendinha, do médico da família. Bloquinho de papel para anotar os recados e uma toalhinha de crochê fundando tudo. Embaixo, as listas telefônicas. Com a internet e a telefonia móvel, não só a mesinha desapareceu, como todo o resto. Temi pelas toalhinhas de crochê.

Eu catava a lista telefônica e a folheava como quem lê interessante livro. Prestava atenção aos sobrenomes dos assinantes, onde moravam, decifrava as abreviações dos logradouros, av de avenida, al de alameda. Quanta gente, meu Deus. Na letra F, localizava ‘Franco’, para ver quem podia ser parente. Eu sempre achava o tio Jair.

As listas eram uma espécie de Facebook, só que sem fotos. Se não dava para dar like, dava para passar trote. Era sempre na casa da Rô, depois das aulas. Aleatoriamente, escolhíamos nossas vítimas. A aventura consistia em ligar e falar uma besteira qualquer. Tínhamos predileção por nomes esquisitos. Certa vez, achamos um que, em nossa avaliação, merecia a traquinagem: Fotolito Gama. Ligamos. Segurando o riso, anunciei: “– Quero falar com o Fotolito”. E, antes que o interlocutor dissesse algo, desligamos, quase fazendo xixi nas calças de tanto rir. Mas a gente não sabia o que era fotolito. Quem riu mais foi o moço lá. Riu de nós.

Tenho saudade das velhas listas telefônicas enfeitando a estante. Tenho saudade de atender nosso telefone vermelho, nove-quatro-oito-três-quatro-quatro-três. Posso fazer uma lista de tudo que sinto saudade. Hoje, especialmente, a saudade da Rô. Mas não sei como encontrá-la. Em que lista eu acho os amigos que partiram?

Quintal

Olhei os hibiscos da vizinha, lembrei dos da minha infância. Repare: a flor parece uma bailarina com tu-tu. Nas ruas, eu gostava de apanhá-la e ir tirando as pétalas, numa espécie de strip-tease botânico. Tremenda sacanagem com a flor, isso sim. Pelada e escangalhada, depois largava a pobrezinha no chão, para terminar de morrer.

Eu também era sacana com tatu-bolinha. Havia tantos no quintal! Agachada no chão de caquinhos vermelhos, observava-o se recolher, ao menor toque. Bastava encostar em sua carapaça com a ponta do dedo ou dum graveto, folhinha que fosse, para que o pequeno isópode detectasse o perigo e se fechasse, virando uma bolinha perfeita. Eu não o machucava. Esperava – e tempo não me faltava – o bichinho acreditar que eu não estava mais por perto, para se desenrodilhar e retomar seu importante caminho rumo a lugar qualquer; então eu tornava a provocar-lhe o movimento defensivo. E assim ia nessa quase tortura, até que outra coisa mais interessante me distraísse ou alguém chamasse para comer pão com manteiga.

Eu não era menina exatamente má, nem com a flor, nem com os tatuzinhos. Era criança habitante de quintal vivo (não de playground asséptico e emborrachado), rodeada de seres, cores, cheiros, formas. Eu torrava a paciência de alguns desses seres, é fato. Gosto, porém, de pensar que a natureza é compreensiva com crianças sem maldade, que veem nela um grande e divertido brinquedo. (Mas é bom lembrar: natureza não é brinquedo.) Já matar passarinho com estilingue ou jogar sal em lesma não era comigo, não. Embora me divertisse assistindo o Coiote se ferrar, porque o Papa-Léguas era muitíssimo mais esperto, e achasse graça no Tom levando a pior – o Jerry era bem danadinho.

O quintal de casa era pequeno no tamanho e imenso nas possibilidades. Ali cabiam oficina de carpintaria, casa de bonecas, cozinha experimental, laboratório de química, castelo de princesa, pista de bicicross, sala de aula e até um museu de coisas desimportantes (já contei essa: certa vez, instalei ali precioso acervo de objetos aleatórios, catados pela casa, como o “pente de José Bonifácio”, o “espelho da Princesa Isabel”). A imaginação é o quintal da vida. Tudo em meio a varais de roupas quaradas, gato e cachorro, vasos de babosa, espada de São Jorge e comigo-ninguém-pode (diziam que quem comesse suas folhas caía durinho, ploft). Nunca me conformei como nosso velho quintal, de pequeno, apequenou mais com os anos. Eu crescia, ele encolhia. Pior: foi deixando de ser território de brincar, enfeiando e entulhando (ou sempre foi entulhado e feio) até virar deserto desabitado de gentes pequena e grande.

Meu quintal de agora é outro, feito de outra história e com outras possibilidades. Cogitei pedir à vizinha uma flor para enfeitar o vaso. Não tenho mais vontade de despetalar hibisco. E aqui nem tem tatu-bolinha (tem maria-fedida, louva-deus, aranhas diversas e insetos indecifráveis; nem tudo está perdido). Como a gente muda. Só a bailarina-flor que nunca mudou o modelo da sua saia.

Redenção

Ele contou, de jeito tão bonito, as histórias das pipas de sua meninice. Dei-me conta de não ter essa passagem em meu currículo de criança, e fiquei até com pena de mim. Tratei, ligeiro, de cavoucar as lembranças em busca do que pudesse me redimir de tamanha falha biográfica. Algo que compensasse as horas não passadas empunhando a lata de óleo Mazola com o cerol enroladinho.

Se não soltei papagaio, soltei imaginação: dava aulas imaginárias para alunos imaginários do primeiro ano primário, pois eu, mais experiente, já estava no terceiro. A ludicidade era completa: tinha lista de chamada, lousa e giz de verdade, fichário com planejamento das aulas, provas, caneta vermelha para corrigir os exercícios da ‘turma’. Entrava tanto na personagem que dava bronca nos mais danadinhos. Acreditei na performance a ponto de jurar a mim mesma que, quando crescesse, seria professora. Rá!

Posso não ter empinado pipa, mas brinquei de boneca de papel. As que vinham prontas na revistinha, só recortar. E as de autoria própria, onde eu inventava os biotipos e indumentárias que bem entendesse. Fiquei craque e não esquecia mais de planejar as pequenas abas nas roupas, fundamentais para fixá-las no corpo da boneca. Quantos trajes não perdi, por esquecer esse detalhe! Como um Deus, bondoso e esteta, criava moças lindas de olhos azuis e providenciava-lhes todas as roupas maravilhosas que eu não tinha.

Se, por um lado, não confeccionei a rabiola mais bonita da rua, por outro exibi algum talento ao produzir fantasias para o gato mais bonito do pedaço. À noite, meu pai e eu íamos, no velho Corcel, buscar minha irmã no colégio. O Led, frajola bem nutrido, um dia surgia vestido de bailarina, no outro usando óculos recortados em cartolina colorida, no melhor estilo Elton John. Eu dedicava parte da minha tarde para bolar e executar os figurinos. Led fazia sucesso na turma da irmã. Houvesse Instagram naquela época, não ia ter para ninguém, meu bem.

Nunca fiz batalha de pandorga no céu, mas abusei da lei da gravidade na balança no quintal. Eu sei, o certo é balanço, no masculino, que balança é coisa para pesar coisas; em que pese meu vocabulário iniciático, brinquei mesmo foi ‘na balança’ instalada pelo vô Paschoal. No vai-e-vem, eu me espichava para trás, os longos cabelos quase tocavam o chão. E via tudo de ponta-cabeça, o céu virava chão. O friozinho na barriga era dobrado, uma leve vertigem me fazia gritar de medo e excitação.

Não experimentei a bravura de enfrentar gente maior que eu tentando roubar minha raia, mas encarei, valente, o farmacêutico cuidando do meu dedo aberto, fatiado por acidente na máquina de cortar frios, na venda dos meus pais. Eu gostava de brincar com ela, fazendo de conta que era um carro; a roda com a manivela, que fazia a afiadíssima lâmina girar, parecia-me um volante perfeito. Certa vez, enquanto ‘dirigia’, decidi pegar um pedacinho do presunto que estava ali, dando sopa, à espera da próxima freguesa. A cicatriz está aqui e não me deixa mentir.

Fiz muita comida de mentirinha nas minhas panelinhas. Os ingredientes: planta, terra, água, grãos de arroz e feijão subtraídos das latas de mantimentos da minha mãe. Entabulava altos papos com as bonecas, enquanto preparava-lhes o banquete. A fim de tornar o negócio mais verossímil, certa vez botei uma vela acesa dentro do pequeno fogãozinho de brinquedo. Se conto a história hoje é porque não foi tão grave.

Decorei a vila onde morávamos, providenciei bolo e refri, chamei os amigos e botei a pequena lousa (a das aulas) bem na entrada. Nela, o convite, em letras garrafais: “Venham todos para o batizado do gatinho Tommy”. A festinha bombou, mas o bichano não quis ficar.

Passeei de enceradeira. Apertei campainha e saí correndo. Passei trote pelo telefone. Fiz colar de macarrão. Tingi camiseta Hering com Vivacor, no caldeirão de feijão. Escrevi diários. Posso não ostentar no portfólio da infância a categoria soltação de pipa. Mas também trago no peito digno inventário de menina quase feliz, e queria contar isso a ele.

Para o Marcílio Godói

Freezer e micro-ondas

arte: Evgeniy Zemelko

Lembrei de quando a família aderiu, em meados dos anos 80, à modernidade: agora também tínhamos freezer e micro-ondas. Não é só a vida que vem em ondas, meu bem. As lembranças também.

Antes da dupla, panelas de arroz, feijão e mistura eram feitas para durar dias. Para economizar tempo e, talvez, dinheiro. Não havia a frase resolvedora das sobras alimentares: “Congela”. Do Continental 2001 verde, as panelas iam para a velha Prosdócimo azul. Da geladeira (quem é que guarda panela na geladeira, hoje?), de volta ao fogão e, voilà!, almoço e janta requentados. Cozinha é inverno e verão, onde yin e yang fazem a farra.

Com a chegada dos dois, a dinâmica da cozinha mudou: era possível fazer comida para um batalhão, congelar em porções e ir descongelando conforme a necessidade. Adeus, rango requentado. Agora, só arroz e feijão ‘fresquinhos’, como se dissessem: “Faz de conta que fomos feitos agora”.

Animados, contratamos uma cozinheira para, num dia só, preparar vários pratos. A moça chegou cedinho. Inspirada, talvez, nos avisos dos ônibus, “Fale ao motorista somente o indispensável”, a moça não me deu a menor trela e se concentrou no cardápio. Não queria perder tempo, que tempo é comida. Num instante se familiarizou com fogão, pia, mantimentos, escumadeiras, facas. Nossa cozinha foi transformada em linha de produção, “Saindo a lasanha”, “Frango ao molho pardo tá pronto”, “Onde coloco o risoto?”. Perguntou se queríamos macarrão à carbonara. Perguntei o que ia. Explicou, topei. E mais nada. Sequer trocamos uma ideia sobre carbonara vir do italiano carbone, que significa carvão, ou sobre as lendas que envolvem o nome da iguaria. Achei um acinte, onde já se viu cozinha sem prosa?

Só sei que, naquele dia, embalei cento e quarenta e quatro porções de arroz, em caprichados pacotinhos. Em casa, cada um fazia suas refeições em horários diferentes, tudo tinha que ser individual. (Sei também que, até hoje, se vejo macarrão carbonara, é da cozinheira de poucas palavras que me lembro.)

Animados II, meu irmão foi ao McDonald’s e pediu uma dúzia de Big Macs – “Sem alface, é pra congelar”. E o jingle, na casa 1 da vila, ficou capenga: “Dois hambúrgueres, (silêncio), queijo, molho especial, cebola, picles num pão com gergelim”. Dois minutinhos no micro-ondas, bicho.

Com o tempo, deixamos de ser um lar povoado e cada um foi cuidar da sua vida – uns, dos seus pós-vida. O velho freezer, do tamanho de uma geladeira, deixou de ser fundamental e passou a ser estorvo. Desligado, continuou lá, de enfeite. Até que demos fim nele. O forno de micro-ondas, no entanto, resistiu bravamente até o último Franco sair de lá. Sei que estou velha quando me pego dizendo, “Aquele que era bom”.

Como disse, não é só a vida que vem em ondas. As lembranças também. E eu, que faço questão de manter muitas no meu freezer particular, vou descongelando uma a uma. Feito os pacotinhos do arroz. O sabor fica um pouco diferente, nada é assim tão fresquinho. Mas eu me farto mesmo assim.

Fratura

Foi no Cine Comodoro, acho. Avenida São João. Pegamos o 378 e fomos eu, minha mãe e minha irmã. Estava passando “Uma janela para o céu”. Eu tinha oito anos e fiquei comovida com a história da moça que quebrou a perna esquiando naquelas montanhas tão branquinhas. Jill Kinmont, a personagem. Não me esqueço.

Minha mãe também quebrou a perna, anos depois. Mas não ao esquiar. Ela deitou-se na maca para fazer o raio-X, virou de lado e crec!, lá se foi o fêmur. Os ossos da Dona Angelina estavam fraquinhos. Pudera, tanta radioterapia.

No filme, a moça participava de uma competição. Minha mãe também. Em vez de montanha a vencer, um câncer. “Vamos ver quem ganha”, ela devia pensar.

Um dia, bem antes do tal raio-X, nós descemos a rua do Acre e atravessamos, já quase na avenida Álvaro Ramos. Um garoto de bicicleta vinha na maior vula – gosto bastante dessa palavra, vula – e não conseguiu brecar. Minha mãe se estatelou no chão. Achei que tinha se quebrado inteira, já estava doente. Enquanto eu e uns desconhecidos a acudíamos, o garoto teve a coragem de reclamar. Catou sua bicicleta e se mandou, fazendo careta. Não é bonito pensar assim, mas eu desejei que um dos ônibus na avenida desse um sustinho nele. Um pé quebrado, de leve, sabe?

Nunca me quebrei. Nem perna, nem braço, nem dedo. Já contei isso. Criança inconformada com a inquebrabilidade, fui até a Casa São Pedro e saí de lá com um quilo de gesso em pó. Em casa, peguei a bacia com água e inventei meu próprio braço quebrado. Não convenci ninguém.

Quando minha mãe se quebrou, eu deveria ter proposto a ela: “Fico com a perna partida, você com o braço quebrado de mentirinha”. Os médicos disseram que ela não andaria mais. Dona Angelina fingiu que não ouviu, inventou sua própria perna consertada e andou. Não lembro se a Jill Kinmont conseguiu.

Dez anos depois de receber de um Dr. Fuad, visivelmente preocupado, a carta de encaminhamento urgente ao Instituto Arnaldo Vieira de Carvalho, a competição terminou para minha mãe. Era quase inverno e meu coração fraturado congelou. No filme da vida da minha mãe, a montanha venceu.

Casa de vó

Trouxe do supermercado um pão sovado, petulantemente batizado “Casa de Vó”. Que mentira, que lorota boa. Como se esse pão que vem no saquinho plástico, recheado de estearoil, propionato e sorbato (seja lá o que for isso), soubesse o que é casa. Quanto mais o que é vó. Que eu saiba, casa de vó é outro papo. Embora a minha, que me lembre, nunca tenha feito pão.

Das frustrações que trago na vida, uma é não ter passado férias, aquelas férias idílicas de livro e filme, na casa de vô e vó.

É que os pais do meu pai, não conheci. E a casa dos meus avós maternos se confundia com a nossa própria casa. Bastava subir quatro degraus e eu estava lá. Pequena casa construída no quintal, pelas mãos hábeis do vô Paschoal, aproveitando o fundo do terreno. Cozinha, sala, quarto. Banheiro, fora. Costume antigo, esse dos banheiros externos. Resquício dos tempos de esgotos rudimentares. Problema que não tínhamos, mas talvez a engenharia ancestral dera o tom na hora de meu avô planejar a construção. Eu, criança, dava graças a Deus por nosso banheiro ficar dentro de casa. No inverno, não precisava por casaco para ir fazer xixi à noite.

As férias escolares eram feitas de intermináveis quatro meses: dezembro, janeiro, fevereiro e julho. Cento e vinte dias por ano longe das lousas e cadernos, para se fazer o que quisesse. Eventualmente, nada. Parte deles, no caso dos livros e filmes e alguns amigos reais, passados na casa dos avós. O que podia significar uma temporada inteirinha comendo biscoitos pela manhã, sorvete depois do almoço, café com leite e bolo de chocolate à tarde, sopa à noite, chupando manga no pé (a legítima casa de vó tem mangueira), ouvindo histórias do arco da velha.

Em vez de sorvete e bolo de chocolate, na casa da minha avó tinha pão de glúten, queijo branco, leite Molico e Assugrin. Diabética, ela decidiu que só poderia comer e beber aquilo. Ter três netos ali ao lado não alterava o conteúdo de sua despensa. E o pão que ainda fermenta na minha memória é a bengala que meu avô trazia embaixo do braço e a gente fazia na frigideira, em rodelas e com margarina. Um pão chamado “casa de vô” mexeria mais comigo.

Não posso negar, porém, que a casa dos meus avó tinha seus encantos e mistérios. Mais mistérios que encantos. Meu avô, devotíssimo, mantinha sobre o guarda-roupa uma coleção de santos digna do Vaticano, em um altar com luzinha e tudo. Eu morria de medo, rezava (!) para que não me pedissem para buscar nada no quarto deles. Meu irmão mais velho, então meninote, dizia ver freiras pelo quarto. Questão devidamente resolvida na Federação Espírita, com um passe. Havia também o porão sob a cozinha, onde só se entrava ligeiramente agachado. Ali ficava guardada, entre outras tralhas, a enceradeira. Das antigas, grandalhona. Dia de faxina era dia de passear de enceradeira. A gente se aboletava sobre o motor e lá ia meu avô, dirigindo a máquina e lustrando o velho assoalho de tacos.

O pão do supermercado, também não posso negar, é bom. Da Seven Boys, nome tão presente na minha infância. Em casa, vejam só, éramos sete. Um a um fomos saindo, cada qual a seu tempo e destino. Hoje as duas casas, amalgamadas pela história e poeira, são só um triste conjunto de paredes descascadas e estuque prestes a ruir. Fechadas, sem criança em férias, sem vó, nem vô. Sem pão, sem santo, sem nada.

Piscina

Esta é de quando eu queria-porque-queria ter piscina em casa.

Mantinha um relacionamento platônico com as piscinas das novelas e, eventualmente, das casas dos outros. Sem falar nas do Juventus, que não eram para o meu bico (já contei essa). O amor é azulejadinho.

Inconformada, resolvi fabricar minha própria piscina. Ah, a bravura indômita da pré-adolescência.

Morávamos em uma pequena vila com quatro casas. A nossa era a número 1. Entrada lateral, portãozinho de grade, estreito, coisa de metro e pouco de altura. Na sequência, a escada que levava ao quintal, propriamente dito. A largura desse corredor? Também, metro e pouco. De um lado, a parede da nossa casa. Do outro, o muro que dava para a casa da Wanda, que tinha um cachorrão, o Gueibin (já contei essa também). Ao lado do portãozinho, torneira e registro de água, com aquele reloginho esquisito que não marcava as horas.

Pois bem. Elaborei um projeto para me refrescar no verão paulistano. Quem precisa de engenheiro, quando se tem alguns sacos plásticos, desses para lixo, e durex?

A ideia brilhante: fechar o portão com os sacos plásticos, tomando o cuidado de vedá-los embaixo, rente ao chão, e abrir a torneira. E vedar com o quê? Durex, oras. Formaria uma pequena represa cujos limites seriam: portão, parede, muro e escada. Não ficaria uma piscina categoria Juventus, claro. Porém, se tudo desse certo, eu teria água até a cintura. Poderia até usar os primeiros degraus da escada – ficariam submersos, de acordo com o projeto – para sentar e relaxar.

Desvantagem: ninguém poderia abrir o portão. Ou seja: quem estivesse em casa, não poderia sair. Quem chegasse, não poderia entrar. Mas o que é o direito de ir e vir da família, diante da oportunidade de ter uma piscina no lar, doce lar? Se bem que, pelas dimensões, estaria mais para ofurô. E quem se importava?

Coloquei biquíni. Instalei os sacos plásticos. Procedi com a vedação, torcendo para que ninguém desse falta do durex. Animada, já cogitava expandir o projeto e, quem sabe, atender outras amigas despiscinadas. Abrir um negócio, patentear o sistema, talvez? Empreendedorismo na veia, bicho.

Abri a torneira.

O processo pareceu-me um pouco demorado, sentei-me no chão. O reloginho correndo feito louco. Um dedo de água e o represamento ia bem.

Dois centímetros, e meu dedinho do pé já estava submerso!

A torneira era um chuá só, quando notei que o durex perdera a cola em alguns pontos. Eu precisava encarar a verdade: estava diante de um iminente vazamento. Era óbvio que meu projeto careceria de alguns ajustes.

Lentamente, a impiedosa água, dotada de anima e vontade própria, atravessava os limites dos plásticos e começava a ganhar a calçadinha. Era minha piscina indo, literalmente, pelo ralo. Porcaria de durex. Ali, aprendi que a água sempre seguirá seu caminho.

Cerrei a torneira, resignada. Só restava afogar-me na frustração. A brilhante ideia da piscina só não fora pior que a de me bronzear no telhado, mas essa eu conto outra hora. Recolhi os sacos, agora imprestáveis, joguei no lixo. Liguei a TV para assistir à Sessão da Tarde e fui fazer um sanduíche. Afinal, piscina dá uma fome danada.

Tipo A

arte: Dan Kessler

À tardezinha, íamos à padaria na rua de cima comprar uma bengala – não tinha esse negócio de baguete – e um leite de saquinho. Apesar de conhecer a velha garrafa de vidro retornável com que se comprava leite naquele tempo (ficava no armário da cozinha, sob a pia), não convivi com ela. Eu gostava de apertar os saquinhos de leite. Gelados, úmidos e molengos. Temia que estourassem, feito balões d’água.

A hierarquia dos leites, na época, era bem definida na minha cabeça. O tipo A, mais caro, encorpado e, logicamente, melhor. Eu acreditava que ele deixava as pessoas mais fortes e inteligentes. Presente apenas nas mesas das famílias ricas.

Os tipos B e C eram os primos pobres do leite A, mais ralos e mais baratos. O tipo C era praticamente um fake-milk, com um fundinho de verdade e olhe lá.

Em casa, as vacas eram magras e a gente ia de tipo C, mesmo. Quando muito, B. Exceto minha avó, que vivia de Molico por causa do diabetes. Aquele era dela, só dela. Eu, criança urbana, ignorava que o leite de verdade, cru, tirado ao pé da vaca, era mais grosso que o próprio A, tinha cheiro forte e podia até ser meio amarelo. Cruz credo, amarelo?! O leite do saquinho era branquinho de tudo, feito… leite!

Talvez por conta de alguma conjunção astral esquisitona na Via Láctea no instante em que vim ao mundo, ou até mesmo questão de carma, nunca fui chegada a leite e laticínios em geral. Conta a lenda que desmamei, por vontade e birra próprias, aos 27 dias de vida. Minha mãe não sabia o que fazer para me alimentar, mas o fato é que eu não queria mamar de jeito nenhum. Recorro sempre a esse expediente para justificar minha ojeriza a leite puro. Embora tenha sido adepta do Toddy na infância e, até hoje, consuma coisas onde o leite é ingrediente oculto. Quis o destino também que eu descobrisse, depois dos cinquenta, uma moderada intolerância à lactose – coisa que eu já sabia desde nenê, mas quem é que ouve os nenês?

Toda cozinha que se prezasse tinha um porta-leite de plástico colorido, semelhante à uma jarra. Bastava acomodar ali o saquinho, cortar a pontinha na diagonal e servir. Hoje a maioria dos leites é longa-vida e UHT e vem numa Tetrapak com lacre inviolável e lote de fabricação e prazo de validade de seis meses (a vaca nem imagina) e código QR. E, apesar de os saquinhos de leite ainda existirem, os porta-leites são espécie em extinção.

Eu ia com minha irmã à padaria. Na ida, trajeto sem intercorrências. Na volta, como a rua Jaboticabal era leve descida eu, invariavelmente, levava um tombo. Ralava joelho, chorava e voltava no colo da irmã, mais velha. Não sei como ela nunca fez campanha para que eu não a acompanhasse mais.

Certa vez, minha mãe adoeceu. Para demonstrar meu afeto e zelo filial, preparei-lhe uma gostosa xícara de café com leite. Ela, da cama, sorriu, agradeceu e quis saber onde eu encontrara leite, já que o da geladeira havia acabado. Respondi, naturalmente: “Na tigela no gato”.

Ontem, no supermercado, vi leite de saquinho. Vários, dispostos em uma grande caixa plástica, ao pé dos iogurtes. Tão parecidos com os do tempo que eu era criança. Embora eu não vá mais à padaria a pé com minha irmã, nem leve tombos a torto e a direito. Fingi procurar alguma coisa na prateleira e apertei os saquinhos. Continuam gelados, úmidos, molengos.

Enxuguei a mão na minha calça jeans, paguei as compras e vim embora, levemente feliz. É que das minhas memórias sempre jorra saudade. E elas são do tipo A.

Gorro de cossaco

Em casa tínhamos o livro de receitas do Açúcar União. Era só trocar não sei quantas embalagens por um exemplar. Na verdade, tínhamos dois; faziam parte de uma coleção. Açúcar era com a gente, mesmo.

Eu passava tempão folheando o livro e me distraindo com as fotografias coloridas dos pratos prontos, um mais apetitoso que o outro. Livros de receitas não são como romances que, para sabê-los, é preciso ler inteiro e na ordem. Cada receita é um conto, independente e autônomo em seu sabor.

Uma das receitas do livro colorido eu me lembro bem: “gorro de cossaco”.

Achava o nome intrigante, mais até do que o indecifrável “bavaroise” ou o insondável “chifon”. Eu não sabia o que era cossaco. Nem a relação que um gorro poderia ter com aquele magnífico bolo de chocolate da fotografia, coberto com muito, muito chocolate granulado. A ideia de usar um bolo na cabeça poderia até ser apetitosa, mas não me parecia muito prática.

A fábrica da União ficava na Mooca, meu bairro. O cheiro do açúcar refinado tomava as ruas e casas ao redor, mas não chegava na minha. No meu pedaço, o aroma reinante era de outra fábrica, a dos biscoitos Raucci. Eu sonhava poder entrar ali e comer todos os biscoitos que eu quisesse.

Cossacos, aprendi depois, eram soldados russos. Parte de seus uniformes era um robusto e negro gorro feito de pele e pelos de animais, para protegê-los do impiedoso frio. E o formato do tal bolo lembrava o do adereço. Se for pensar assim, qualquer bolo se parece com um gorro, e vice-versa.

Em seu caderno de receitas, minha mãe tinha mania de acentuar a palavra doce. Antigamente, o verbete, de fato, levava circunflexo no “o”. Mas ela confundia e botava o chapeuzinho no “e”. Sempre. Era docê de não sei que pra cá, docê de não sei que pra lá. Eu sempre a corrigia. Ela ria. Dona Angelina, que saudade docê.

Uma de suas receitas era famosa: o tal do bolo coelho. Ela recortava no pão-de-ló a silhueta do bicho, e o enfeitava com glacê branco. Uma cereja virava o olhinho. Sucesso garantido entre a parentada, que costumava encomendá-lo para as festas de aniversário. Ela guardava um molde em papel, que ela mesma desenhara, para recortar o coelho sempre do mesmo jeito. Não era receita do livro da União. Era da sua cabeça criativa, mesmo.

Quando minha mãe fez quimioterapia, seus cabelos caíram. Ficou carequinha. Para o inverno, ela arrumou um gorro de lã cor de vinho. Enfeitou-o com uma pequena borboletinha verde, bijuteria que fazia parte de um grampo. Guardo o gorro até hoje. Minha mãe era uma espécie de cossaco da família. Valente, guerreira.

A refinaria da União não existe mais. No local, ergueram um condomínio de apartamentos. Apenas a majestosa chaminé de tijolinhos foi poupada. O passado se derreteu como cubos de açúcar em chá quente. E quem mora ali agora nunca vai saber do velho e doce aroma no ar.

Cisne

Enquanto pintava as unhas, lembrei.

Quando eu precisava ir à farmácia tomar injeção (ai!), comprar remédio ou só acompanhar alguém, ficava fissurada nos esmaltes. Na Droga Cisne havia uma pequena vitrine sobre o balcão, cheia de Coloramas e Impalas. Cada vidrinho era um minimundo de cor, formando um arco-íris de formaldeído e nitrocelulose. Mas criança não pintava as unhas.

Nos anos setenta, não havia a overdose cromática dos esmaltes de hoje que, só de rosa, tem uma centena de tons. É a popularização da escala Pantone, com secagem ultra-rápida. Os nomes dos esmaltes também eram simples, quase singelos. Zazá. Rebu. Areia. Kirei. Hoje quem os batiza não quer saber de minimalismo. Nos rótulos, frases com sujeito e predicado nomeiam cada vidrinho, numa espécie de storytelling. Dias atrás passei um com o nome “Zeca chamou pra sair”. Sendo eu uma mulher casada, devo considerar isso traição?

Minha mãe preferia os clarinhos, “cor forte, não”. Gostava do Zazá, um lilás suave. Só nas mãos, no entanto. Ela nunca pintou as unhas dos pés. Eu tinha trinta e nove anos quando estreei a cor nos meus artelhos. Taquei logo um vermelhão, para compensar a vida passada em branquinho. Achei-me bem ousada, aqueles pontinhos vibrantes nas pontas dos meus pés.

Os dedos dos pés da minha mãe, quando vistos por baixo, pareciam balas de coco. Aquelas, que as tias faziam para as festas de aniversário ou casamento. Sempre quis escrever isso, não sei por que. Nunca mais comi aquelas balas. Quase não tenho mais tias.

Na Droga Cisne quem nos atendia era o Arquimedes. Farmacêutico dedicado, simpático, falava baixinho. Tinha um problema nas costas que fazia sua cabeça pender para o lado. Diziam que ele chegara a estudar Medicina, sem, no entanto, ter se formado. Era comum o bairro todo se “consultar” com ele. Quando o Arquimedes ficou velho, seu filho, parecidíssimo com ele, assumiu a farmácia. E se tornou médico.

Eu achava bonito o desenho do cisne na fachada. Pensava na história do patinho feio, que crescia e se tornava uma linda ave. Eu me identificava com o patinho. Queria crescer logo, para ter unhas compridas e usar aqueles esmaltes. Viraria, então, uma cisne.

Depois que meus pais foram trabalhar na venda, Dona Angelina não tinha mais tempo para a manicure. Pudera. O dia inteiro fatiando frios, pesando arroz e feijão, arrumando mercadoria nas prateleiras, lavando copos no bar. Que esmalte sobreviveria? Suas mãos tinham um permanente cheiro de café moído. Ou de presunto.

Eu gostava de brincar com suas coisas: acetona, lixa, palitinho de laranjeira. Quando vi um pé de laranja, pela primeira vez, fiquei procurando o tal palitinho. Não achei. Eu roía minhas unhas. De vez em quando era autorizada a usar um rosinha nas mãos. Logo o esmalte descascava nas unhas carcomidas, uma feiúra só. O cisne nunca chegava.

Assim que Nina saiu da minha barriga e a aconchegaram em meu colo, a primeira coisa que vi foi seu rostinho. A segunda, seus dedos finos e longos. Queria que minha mãe soubesse que a neta caçula, que já nasceu cisne, tem as unhas mais lindas do mundo.

A Droga Cisne, tão única, não existe mais. Na mesma rua abriu uma Drogasil, igual a qualquer outra Drogasil. Deve ter uma prateleira cheia de esmaltes multicoloridos. E uma garotinha que passa por ali, de vez em quando, atenta aos vidrinhos. Esperando sua vez de ser cisne.

Mavi

O salão era perto de casa, íamos a pé. Ficava no subsolo de uma loja de coisa qualquer. Ali, no subterrâneo do bairro, alheio a primavera, verão, outono e inverno, pulsava um confinado e fascinante mundo de beleza. Onde eu, pirralha de tudo, ia cortar os cabelos ou só acompanhar mãe e avó em seus franciscanos rituais embelezadores.

Descia as escadas e já ouvia o burburinho da mulherada e dos secadores de cabelos. Daqueles grandalhões, com uma espécie de capacete futurista a abduzir cabeças cheias de bobs. Em meu nariz se misturavam os cheiros dos esmaltes, dos xampus, do laquê e da amônia no ar – substância fiadora da permanente nos cabelos. Nove entre dez mulheres fizeram permanente nos anos 70, em busca dos cachos perfeitos. (Eu fiz, nos anos 80. Rio bastante quando vejo minha foto na carteirinha do Juventus.)

Nossa cabeleireira era a Mavi. Mavi era linda. Eu queria ser a Mavi.

O salão ficava próximo à igreja onde meus pais se casaram. Cresci ouvindo meus avós, que não sabiam ler e escrever, falando rua Fernandsfalcão aqui, Fernandsfalcão ali. Não demorou para que eu deduzisse; por certo, era Fernandes Falcão. Aprendi a ler e soube: o nome da rua era Fernando Falcão. Mais ou menos como naquela outra história: minha irmã e eu pedimos ao meu avô o endereço da prima que morava em Mogi-Guaçu, queríamos mandar-lhe uma carta. Ele informou: rua Mervin Júnior, número tal. A prima respondeu, toda contente, escrevemos de novo. Muito tempo depois, descobrimos: Melvin Jones era o nome da rua. Esse pessoal dos Correios é bem batuta.

Mavi de quê, mesmo? Maria Vitória ou Maria Virgínia? Maria Virgulina ou Maria Vicentina? Nunca soube. De seu rosto, não me lembro. Nem de seus, vejam só, cabelos.

Só sei que cravei o velho salão e a Mavi na minha cabeça.

Assim como minha avó cravava o pente na minha cabeça, quando me penteava para eu ir à escola. Ela era incumbida de cuidar de nós três enquanto meus pais trabalhavam na venda. Para facilitar, eu subia no bidê do banheiro. Ela puxava com força meus cabelos, que iam até a cintura. Eu reclamava, ela também.

Minha bisavó Carmela, que também nunca foi à escola e provavelmente jamais pisou em um salão de beleza, cravava o pente-fivela em seus longuíssimos, finos e branquinhos cabelos, prendendo-os num coque. Era raríssimo vê-la com as madeixas soltas.

Será que Mavi ainda é cabeleireira? Jogo o endereço do salão no Google Maps, não reconheço mais o local. A escada, os secadores trambolhudos, vô, vó, bisavó, a prima de Mogi-Guaçu… Tudo se foi no sumidouro do tempo. E de vez em quando ressurgem nas lembranças, tão compridas feito meus cabelos de menina.

Retrospectiva

Fui preencher o cadastro na internet, tinha que informar a data de nascimento. Dia, 7. Mês, 5. Fácil. Já o ano em que vim ao mundo se situava a, no mínimo, dez rolagens na tela. Quem manda ter mais de meio século?

A cada ano exibido, fiz instantânea e aleatória retrospectiva. Pulei alguns, me ative a outros. Quando dei por mim, havia feito um breve apanhado da minha existência neste plano.

2020 é ano que nem acabou e já tem informação demais. E 2019, por enquanto, leva o mérito de ter sido véspera de um ano muito louco, do tipo “éramos felizes”. Segundo livro publicado em 2016, o primeiro em 2012, o blog em 2009, depois de dois anos em uma gaveta digital. Em 2006 nasceu Nina. Luca, em 2004. Com eles, a certeza de que ter filhos é como pintar os olhos; um sai sempre diferente do outro.

2001, 11 de setembro. Grudada na TV, atendendo ao telefone e dizendo que estava tudo bem. Um ano antes, dei à família, no atacado, as notícias: estou namorando, vou morar com ele, vamos nos casar, nos mudaremos de país. Nos anos anteriores, trabalhei, fiz terapia, tai-chi-chuan e bronzeamento artificial. Comprei bolsas e sapatos compulsivamente, e quase morri de amor pelo menos duas vezes.

Rolei até 1988. Meu primeiro estágio, no Museu do Ipiranga, nome artístico do Museu Paulista. E o primeiro salário torrado praticamente inteiro em uma calça jeans Ellus. 1987: no Dia dos Namorados, Dona Angelina, eterna namorada do meu pai, morreu. Eles, que se conheceram em um Dia de Finados. Eu tinha vinte anos e descobri uma relação especial entre amor e morte.

Em 1986 entrei na faculdade de Comunicação Social. Estranhei; a maioria dos alunos chegavam e iam embora de motorista particular. E usavam botinha de camurça da London Fog. Original! Foi em 1985 que a ficha caiu: o colégio técnico em Edificações não era para mim. Fui, então, fazer cursinho no Objetivo da Vergueiro, decidida a ser publicitária. No ônibus de volta para casa, curiosamente, quase todos os dias tocava “Tempo Rei”.

1984, ano de aventuras perigosas, impensáveis em qualquer época: ir com a irmã e as amigas para Ubatuba, de carona, solicitada na base do dedão em plena Rodovia Dutra. Deus deve ser muito meu chapa. Em 1983, após longa espera, instalaram nosso telefone. Plano de expansão da Telesp. Fui a última da turma a ter um em casa. Talvez, por isso, eu ainda me lembre: 948-3443. Em 1982, pela primeira vez, saí da Mooca, meu bairro-mundo, para estudar em outro canto da cidade. Do professor de português, os primeiros incentivos para escrever. Nunca mais o vi. Até hoje jogo seu nome no Google.

Primeiro namorado em 1980. Íamos de moto passear no Parque do Ibirapuera, ambos sem capacete e sem juízo. Não há dúvida de que Deus é meu chapa, bróder supremo protetor. Tirei meu RG em 1979. A foto 3×4 não é das melhores; estava no finzinho do sarampo. No mesmo dia, minha mãe fez o dela. Seu RG é um número antes do meu. Ela não precisa mais dele, desde que se foi. Eu sigo aguardando minha vez de ir. Meu RG é uma espécie de senha com Deus.

Em 1973 entrei na escola, pré-primário com a Tia Neide. A contragosto, participei de uma peça de teatro. Minha fala começava assim, “Eu era uma sementinha…”. Foi em um gibi do Mickey que consegui, sozinha, ler minha primeira frase. Se hoje, com cinco anos, uma criança não só lê, como escreve, declama e faz vídeos no Tik Tok, em 1972 aquilo era quase uma proeza.

1970, Copa do Mundo. Minha mãe estourando pipoca na panela. Ela desliga o fogo, passa a pipoca para a vasilha, pulveriza o sal, encosta a porta da cozinha e me chama para a sala. Meu pai e meus irmãos já estavam em frente à TV, prontos para a torcida. E, se 1968 foi o ano que não terminou, foi nele que eu comecei a andar e a falar.

Cheguei, enfim, a 1967. Dei enter. E meu cadastro neste mundo é concluído com sucesso.

Chiclete

arte: “Bubble Gum”, Zara Picken

Já fomos mais mascadores. Por onde quer que se fosse – puxe aí na memória –, havia alguém mascando chiclé. O cobrador do ônibus. O motorista do ônibus. Os passageiros. As vendedoras nas lojas. Os primos, os vizinhos. Todos os colegas da escola, sem exceção. Até a professora, que não admitia, mascava enquanto corrigia as provas. O chiclé era onipresente nas bocas brasileiras (quiçá mundiais).

Hoje, nem tanto. Quase não se vê mais aquele gingado de maxilares.

Chiclé é apelido de chiclete. Que, por sua vez, é metonímia de Chiclets, a marca gringa da famosa goma. Dizem que veio do hispânico chicle, látex extraído do sapotizeiro e que significa, ora ora, substância pegajosa.

Nada dessas erudições, no entanto, importava: eu só queria saber quantos chiclés eu poderia pegar na venda. Ser filha dos donos tinha suas vantagens. Além do Ping-Pong tutti-frutti, meu predileto, podia me fartar à vontade de bala Juquinha, Jujuba e Delicado; Chokito, picolé da Gelato, Dadinho e maria-mole. Passar a tarde na venda, depois da aula, era pura epifania.

Voltava de lá com Chiclé na boca e tatuagem de mentirinha no dorso da mão. Dez entre dez crianças tinham. Vinha na embalagem do Ping-Pong e do Ploc. Desenhinho ordinário, era só molhar o papel e grudar na pele. Durava dias, para horror das mães. Não saía nem no banho. Depois de uma semana, a pseudo-tattoo era apenas uma sombra pálida e encardida. Que beleza.

Eu tinha medo de engolir chiclé. Falavam que grudava nas tripas, a pessoa ia parar no hospital, poderia até bater as botas. O controle pelo medo, como se vê, é estratégia secular. Nunca soube de ninguém que tivesse morrido por causa disso. Por garantia, eu mantinha os meus longe da garganta.

Além da tattoo, os chiclés vinham com outro bônus, igualmente divertido: faziam bola. Os mais velhos classificavam a performance como falta de educação, na mesma categoria de mostrar a língua. Já eu considerava aquilo uma arte (exceto quando explodiam no rosto do próprio artista). Quanto maior e mais tempo durasse, maior a habilidade do chicleteiro.

Depois, os ping-pongs e suas bolas deixaram de exercer fascínio. Migrei para o politicamente correto Trident, sem o bandido açúcar. E sem bola, por favor. Nem dava; só se colocasse uns cinco tabletes na boca. Por fim, abandonei a mascação. Aderi, porém, às tatuagens de verdade. Que me acompanharão até o derradeiro banho nesta vida de meu Deus.

Outro dia, vi no supermercado o Bubbaloo, neto do Chiclets. Não vem com tatuagem temporária, mas tem recheio. Criança ainda gosta? Olhei ao redor. Nenhum gingado de maxilares detectado, em uma pequena amostra de pessoas entre 5 e 80 anos. Posso estar enganada, mas chiclé é guloseima em extinção. Basta olhar embaixo das carteiras escolares, das cadeiras e mesas dos fast-foods, nas paredes dos banheiros públicos. Nenhum.

Será a superação do ato de mascar uma clara evidência de evolução da espécie? Se sim, viemos das vacas, e não dos macacos.

Deu saudade da venda. Das tardes regadas a glicose, o baleiro antigo, a vitrine de madeira cheia de doces. Meu pai servindo Tatuzinho e Cynar aos fregueses, enquanto fazia preleções sobre a vastidão do universo. Minha mãe pesando arroz e batatas para as freguesas, suas mãos sempre cheirando a café moído. A máquina de cortar frios que quase decepou meu dedo (culpa minha), a sulfa mágica do farmacêutico estancando o sangue. Guardo na cabeça uma enorme goma de mascar lembranças. E não tenho medo de engoli-las. Se grudarem nas tripas, faço delas coração.

O boneco feio

Dos poucos brinquedos que minha mãe teve, quando criança, um permaneceu. É um bebê de louça, acabou ficando comigo. Se hoje ela teria oitenta e quatro anos, ele beira os oitenta. Apesar da idade, continua bebê. Não tinha nome de gente, como Alfredo ou Sérgio. Minha irmã lembrou: a Angelina-criança, minha mãe, o chamava, vejam só, de Boneco.

Se Boneco era o bebê de mentirinha da minha mãe, eu sou irmã de mentirinha dele. Além de compartilharmos a orfandade, tornei-me, nem sei desde quando ou por que, tutora dele. Dia desses, tirei-o do armário onde vive, envolto em xales, protegido dos perigos deste mundo. Nina, minha filha, neta de Angelina, sobrinha de mentirinha do Boneco, assustou-se ao vê-lo na sala. Já Luca não poupou o desaforo: “Que feio!”.

Eles têm razão. Boneco, o boneco, é feio.

Tem cabeça, bracinhos e perninhas de louça pintados à mão, em cor de pele sem vida. Seus olhos são fundos, inertes, perturbadores. A boca mal desenhada em cor de rosa, a balbuciar o nada. As mãozinhas, fechadas como as dos recém-nascidos, parecem de gente velha, cheias das marcas do tempo. Seu corpinho, de tecido estofado, está puído. Falta-lhe a ponta do pé esquerdo, quebrado sabe-se lá como. Na nuca, um misterioso buraco que acabou por lhe rachar parte da cabeça. Como é oca, alguém enfiou ali um chumaço de pano. Pois, todo mundo sabe, cabeça vazia é oficina do diabo.

Minha irmã e eu, de pequenas, também brincávamos com ele. Minha mãe deixava (o que, talvez, explique os acidentes). Crescemos, ninguém mais brincou com ele. Pudera. Que criança, hoje em dia, há de querê-lo? Não é bebê rosado, gordinho, fofo. Não se pode pegá-lo de qualquer jeito. O Boneco é durão, não fecha os olhinhos quando o deitam. “Não faz nada”, como diriam. E, duro dizer, é feio pra burro. Aqui em casa, nunca lhe arranjei merecido lugar, como num museu afetivo. Então, ninguém o embala mais. Resignado em sua condição de relíquia, Boneco é brinquedo esquecido. Nem por isso ele chora. Se ele é de louça, o coração deve ser de lata. Já chorou um dia, porém. Em suas costas há uma espécie de alto-falante inativo, enguiçado, podre. Devia ser desses bonecos que, se lhe apertam a barriguinha, choram metálico.

Tenho vontades de lhe dar um banho, mandá-lo a um hospital de bonecos, fazer-lhe curativos, vesti-lo decentemente, providenciar um bercinho. Não se pode esconder um pequeno irmão mais velho assim, num armário, para sempre. Ele precisa de cuidados. Boneco, o boneco feio, é frágil. Embora ninguém que chegue aos oitenta com apenas um pé quebrado e um buraco na cabeça deva ser considerado frágil.

Frágil sou eu. Que pareço de louça e me quebro inteira, imaginando a Angelina-menina dando-lhe papinha, trocando a fralda do xixi invisível, passeando com ele para lá e para cá, conversando com ele, ninando-o, fazendo-o adormecer. Ensaiando a mãe que já era desde sempre.

Boneco, o feio, deve ter sido bonito, um dia.

Ovos mexidos

Resolvi fazer ovos mexidos para o café da manhã. Enquanto quebrava as cascas e os deitava na vasilha, lembrei.

Era tradição na escola: no aniversário de alguém, os colegas levavam ovos. Guardados nas mochilas, nos bolsos do avental branco ou embaixo da carteira, com cuidado para não quebrar, até a hora da saída. Época em que se sabia de cor o dia do aniversário do amigo, sem precisar de aplicativo ou rede social para evocá-lo.

Terminada a aula, bastava o aniversariante cruzar o portão para ser alvejado, na calçada e à queima-roupa. Cabelo, rosto, costas, pernas, material escolar – nada era poupado. Uns levavam farinha também, para incrementar a, digamos, comemoração. O coitado da vez se tornava seu próprio bolo. Boa parte da sala aderia ao ataque coordenado. Quem não, ficava apenas de cúmplice na zoação. O ritual da ovação era o “Parabéns a você, nesta data querida” da turma.

Apanho o garfo, espeto de leve as gemas, que resistem. Mostro quem é que manda, elas se entregam. Clara e gema se amalgamam num creme liso, uma pitada de sal.

Havia dois tipos de aniversariante. Os que encaravam a homenagem com bom humor e, resignados, nem corriam, facilitando o bombardeio e abreviando o suplício. E os que não suportavam a humilhação. Pediam, em vão, socorro ao bedel. Tentavam fugir. Logo eram alcançados e a ovada, mais intensa. Eu admirava os resignados. Tinha sabedoria naquela atitude.

Ao chegar em casa, após deixar o rastro de meleca pelas ruas do bairro, o filho-omelete era recebido pela mãe furiosa. Só ela sabia a trabalheira que a aguardava. Inconformada com o desperdício – quantas tortas não dariam aquela dúzia de ovos? –, providenciava desinfetante com xampu para os cabelos, botava o uniforme de molho no sabão, oh fedor. E orava para que, no próximo ano, os colegas se esquecessem da data.

Levar ovada, no entanto, não era para qualquer um. Era preciso algum nível de popularidade na escola. Uma bela ovada era sinal de respeito e consideração. Ninguém virava gemada ambulante à toa.

Derreto um pouco de manteiga na frigideira, despejo os ovos batidos e assisto à lenta solidificação. No filme da minha vida devo ter, sem querer (ou não), editado algumas partes. Se tive o privilégio de feder a ovo no dia das minhas primaveras? Aí é que está: não me lembro.

Espeto minhas recordações com o garfo, elas resistem. São elas quem mandam, porém: delas não sai quase nenhum registro imagético dos meus aniversários antigos. Festa, presente, gente em casa, balões coloridos, nada. Nem de quando criança, tampouco de adolescente.

Logo eu, que tenho memórias para dar e vender.

Talvez eu só precise quebrar as cascas.

Street view

street view
ilustração: Zansky

Na quarentena, sem poder saracotear, dei para passear de carro. Não no meu. No do Google. Do meu sofá, abro o Street View e lá vou eu. Sigo pelas ruas (quase) como se estivesse nelas. Dobro a esquina, faço o retorno e, feito a Calcanhoto, presto atenção em cores que não sei o nome. Não é a mesma coisa, mas andar no carro do Google tem suas vantagens. Posso parar, de repente, e ninguém buzina atrás. Posso dar o zoom que meus olhos não são capazes. Andar na contramão à la volonté. Nem gasto combustível. E o melhor: posso ficar um tempão na frente de algum lugar, só olhando, sem levantar suspeitas.

Como ontem. Em um clique, fui parar na rua onde nasci, a cento e quatorze quilômetros do meu sofá. Outra vantagem: pensou, está lá. Não deixa de ser uma espécie de teletransporte. Meu Deus, o futuro chegou e eu nem percebi.

Estacionei em frente à pequena vila onde morei por trinta e três anos. Sua entrada não era tão feiosa como agora. Ou sempre foi e nunca me dei conta. Uma entre tantas vilas da Mooca. Quatro casas geminadas, a nossa era a 1. As câmeras do Google não alcançam lá dentro, mas lembrei-me dos vizinhos da minha infância. Não deixa de ser um misto de teletransporte com máquina do tempo. O passado do futuro chegou, Bello.

Na casa 2 morou, por pouco tempo, a Rosana. Alguns anos mais velha que eu, éramos amigas. Um dia, ela chegou toda feliz, havia comprado o LP do Ruy Maurity. Sem antes falar com a mãe, porém. Apanhou feio, ouvi tudo.

Na 3, a Elizabeth. Moça doce e bonita, que costumava levar uns safanões do marido. Fiquei triste quando eles se mudaram. Tempos depois, a encontramos no Mappin. Quis perguntar do marido brucutu, achei melhor não. Também viveram ali o Marcos, meu quase-amigo, e sua mãe Julieta. Ela morreu em casa, o velório foi na sala e eu achei estranhíssimo.

Dona Antonia e Seu Manoel na casa 4. Os únicos na vila que tinham telefone, cujo número ainda me recordo: 92-6405. O cachorro Lulu, que mancava de uma pata. Contavam que alguém jogara água fervendo no pobrezinho, que zanzava livremente no bairro.

Ainda com os olhos emprestados do Google, vi as três casas da frente, que davam fundos para a vila.

A da Dona Amália, mãe da Tunheta – apelido ruim para Antonieta. Garota diferente, tinha dificuldade na fala e sofria bullying, antes mesmo de isso se chamar bullying. Ela gostava do meu irmão. Embora dissessem que também gostava do Osmar, outro vizinho. Nunca foi correspondida.

A do Seu Inácio e da Marilisa. Ela e minha mãe eram muito amigas, num tempo em que vizinhas conversavam pelo muro. Uma vez, eu estava doentinha e o caçula dela foi me visitar, levando um presente. Um bichinho recortado em espuma. Eu tinha cinco anos, ele também.

Por fim, a do Tenente. Certa vez, minha irmã estava com os amigos na porta da vila, colada à casa dele. Não se sabe qual sua motivação, mas ele veio mostrar para a turma um LP do Kansas, que acabou morando na nossa vitrola por muito tempo. Até hoje, ouvir “Carry on wayward son” tem mais ou menos o mesmo efeito do Street view.

Aboletada no banco da frente do carro do Google, fui observadora invisível de um bairro inerte. Surpreendi-me mais uma vez com a feiúra e sem-graceza da entrada da vila. Não vi ninguém aparecer n’alguma janela, para eu dar um alô. Melhor assim, não conheço mais ninguém.

“Podemos ir embora?”, pedi ao motorista do Google. Igualmente invisível, o silente cúmplice de meu passeio virtual-memorial.

Um clique e estou de volta ao sofá. Entre saudade e lembrança, a dúvida. Afinal, a Tunheta gostava do meu irmão ou do Osmar?

Sagu

sagu

Fiz sagu.

Enquanto despejava na panela cheia d’água os grãos crus, tão redondinhos e branquinhos, lembrei do presépio montado todo dezembro, quando eu era criança. Parecem as microbolinhas de isopor que a gente usava para decorá-lo, fazendo de conta que era neve. Presépio que se prezasse tinha que ter neve.

Minha mãe era craque no sagu. Usava o vinho mais barato que tinha. De vez em quando, colocava pedaços de abacaxi no meio. Foi um dos deleites gastronômicos da minha infância, ao lado do nhoque de batata e do bolo nega-maluca. Eu gostava de morder as bolinhas, uma a uma, adorando-as na boca como a um deus. Deus Sagu.

No doce pronto, as bolinhas cozidas ficam todas juntas, grudadas. E, ainda assim, mantêm-se separadas umas das outras. Deve haver alguma metáfora importante nisso, que eu não sei qual é.

Da primeira vez que fiz sagu em casa, meu filho perguntou, antes de provar: Que gosto tem?

Não sabia se respondia que, na verdade, sagu tem gosto de nada, que não passa de uma fécula boba, e que o vinho e o açúcar é que são o segredo, ou se contava que sagu tem gosto de assistir minha mãe, avó dele, fazendo casaquinhos de tricô na Lanofix, para vender. Ou que tem gosto de ouvir o LP da novela Selva de Pedra na vitrola, a Françoise Hardy murmurando lindamente “Je ne sais pas qui tu peux être, Je ne sais pas qui tu espères”. Tem gosto, talvez, do chão de caquinhos vermelhos do nosso quintal. Ou até gosto de encapar os cadernos novos da escola com plástico xadrez.

O importante é que ele gostou. Ele que faça suas próprias associações ao sabor do sagu, quando for mais velho. É isso que os doces nos ensinam, não?

Se a tradição do sagu está mantida, a do presépio, não. Talvez por medo de os gatos comerem ou quebrarem as peças. Talvez porque tenha perdido a graça, mesmo. Ou porque não há mais necessidade de inventar neve. Presépio bom é presépio dentro da gente.

Sagu é barato, ordinário. Porém, se vou a um restaurante e tem sagu de sobremesa, “de cortesia”, já colocado em potinhos de alumínio ou plástico, o self-service por quilo vira, na hora, fino bistrô. Sagu é um doce luxo memorial.

Já fiz sagu com vinho caro, não contei a ninguém. Gourmetizei a lembrança. Já errei a medida, deu um panelão que durou mais de uma semana.

É que sagu rende muito. Feito a saudade da gente.

Água e sabão

bolha sabão
arte: Guenevere Schwien

A brincadeira consistia em 1) jogar bastante água no quintal, 2) espalhar um pouco de sabão em pó e 3) ficar escorregando pra lá e pra cá a manhã toda.

Diversão da qual eu, caçula, não era autorizada a participar. Minha irmã e meu irmão mais velhos, privilegiados pelo tempo, deslizavam pelo chão vermelho de caquinhos, felizes da vida. Eu só assistia. E desejava, com toda determinação que garotinhas de quatro anos são capazes, crescer logo para entrar naquela farra também.

O quintal, pequeno, tinha bom formato para a pista ensaboada. Na lateral estreita, quinze metros, no máximo, os tombos não importavam. Eram, aliás, a melhor parte. Com direito a adrenalina extra: ao final do corredor, havia uma bela escadaria que dava para o portão de entrada. Se mal calculada, a brincadeira poderia acabar em choro. Ou coisa pior. E quem se importava?

Um dia, enquanto meus irmãos capotavam, às gargalhadas, meu pai me chamou na porta da cozinha, que dava para o quintal. Abaixou-se um pouco e me olhou, sério. Pediu que eu tirasse a blusa. Era de botões, eu me lembro. Fiquei só de calcinha, já vislumbrando o anúncio. Ele desfranziu o cenho e, sorrindo, proclamou o tão sonhado alvará: “Vai!”.

Finalmente, eu estava liberada para a epifania aquática. Já não era mais criancinha, então. Joguei-me naquele pequeno parque de diversões caseiro. Imitei o quanto pude meus irmãos, veteranos do sabão. Acatei suas dicas, Ó, faz assim, Olha a escada!, e nunca me diverti tanto.

Era a água e o sabão, lavando a alma dos três filhos de Antonio e Angelina.

Nina, a neta caçula deles, lembrou esta semana de quando sua escola montou para a turminha do maternal uma lona ensaboada. Pediram até para levar biquíni. No fim da tarde, quando a busquei, vi em seus olhinhos castanhos e nos cabelos molhados: foi dos dias mais alegres que ela passara ali.

Será que transmiti a ela, em algum gene, a experiência do pequeno quintal? Hereditariedade é mesmo um barato.

Pandemia

virus

Doutor Fuad era o médico da família. Sisudo, tinha implante capilar e voz grave. Tratava de tudo e de todos. Da diabetes da minha avó à minha catapora. Seu consultório ficava na avenida Sapopemba, só indo de ônibus. A portinha na calçada, permanentemente aberta. Uma longa e reta escada dava acesso à pequena sala de espera. Sem recepcionista, nem TV ou revista velha. O atendimento era por ordem de chegada, em fila gerenciada pelos próprios pacientes. Diziam que aquele era seu consultório para os pobres, com consultas a preços módicos; os ricos eram tratados em um bairro chique, distante dali. Certamente, com recepcionista, TV e revistas novas. No da Sapopemba, nenhuma possibilidade de passatempo para crianças como eu que, dependendo do dia, aguardariam horas para serem examinadas.

Certa vez, reparei na plaquinha pendurada na parede, a pedir: “silêncio”. Naquela tarde, ela foi minha salvação. Silenciosamente, brinquei de formar palavras com aquelas letras. Sol, lince, sino, liso. E, como eu inventara a brincadeira, inventei também as regras; podia duplicar letras ou não utilizar alguma, se assim conviesse. Assim, conseguia formar mais palavras. Sócio, colo, leciono, sono. De repente, eu era uma fábrica de anagramas.

Nesta quarentena, é como se eu também me encontrasse num tipo de espera, mas pelo momento de retomar a vida normal (o que é normal?). Estou, não em uma sala de espera, mas em uma casa de espera. Nela, aguardo as boas notícias, enquanto recebo as más. Confinada, com TV na palma da mão e revistas virtuais do mundo inteiro e, graças!, café. Recorro, então, ao passatempo que um dia me salvou. Que anagramas possíveis existem para pandemia? Essa palavra que não é nova, mas se tornou mortalmente incluída no vocabulário do mundo inteiro? Essa, inscrita em uma plaquinha invisível, grudada em todas as paredes da minha casa, da sua, tatuada na minha pele, na máscara estranha que uso para ir ao supermercado, nos meus pensamentos e, eventualmente, meus sonhos também? (Sonhei que encontrara uma prima que não via há décadas, dei-lhe um abraço e pus-me agoniadamente a repetir, feito autômata, “Meu Deus, peguei!”.)

Da palavra pandemia, extraio “pai”. O meu, aos oitenta e oito anos, vive inédita situação de não poder visitar, nem ser visitado. Leitor de jornais, mantém-se informado e arrisca suas teorias conspiracionistas.

Sigo no passatempo e, em pandemia, encontro: “aipim”, “empada”, empada de aipim. Minhas horas na cozinha, em um mês, já superam as do ano passado inteiro. “Andaime”. Na volta do supermercado, passo pela obra na avenida e avisto homens trabalhando, rindo e conversando. Sem máscara! “Piedade”: peço a Deus por eles, por nós. Finalmente: “nada”. Eu sei, nada será como antes.

Esta não é uma crônica de Páscoa

P1020370 - Copia VÔ PASCHOAL NOV1958
Vô Paschoal – arquivo pessoal

Era grandinha, já, quando liguei os pontos: o nome do meu avô vinha do nome do feriado do coelhinho.

Cresci chamando e falando do Vô Paschoal, sem nunca juntar lé com cré. O que não fez, depois, a menor diferença. Uma coisa era o dia de ganhar ovos de chocolate; outra, completamente distinta, era meu avô. O filho de imigrantes italianos, de sorriso largo e gargalhada fácil. Torcedor inabalável do Palmeiras. Que mal sabia escrever, mas dominava os números. Que todo santo dia, depois da laranja finalizadora do almoço, tirava a sesta, sentado na poltrona, braços cruzados sobre o peito. Que inventava traquitanas, elétricas e mecânicas, para tudo em casa. Que perdeu parte do dedo em um acidente de trabalho nos Moinhos Minetti Gamba, na Mooca, e eu tinha certa aflição daquele toco sem unha. Que gostava de gato e cachorro, mas fazia de conta que não, porque minha avó detestava. Que ia em duas feiras diferentes, só para aproveitar os preços das frutas. Que pegava o carrinho de mão e saía para comprar tijolo e cimento e areia na Casa São Pedro, na rua Teresina. Que tinha um exército de santos num altar sobre o guarda-roupa, iluminado com um sistema que ele próprio instalara, e que eu morria de medo. Que nunca ficava doente. Que subia no telhado para verificar as calhas, mesmo depois do 90º aniversário, e nunca aconteceu nada, porque os anjos todos eram seus chapas. Que morreu numa véspera de Carnaval. E não de Páscoa.

Sendo assim, esta não é, nem de longe, uma história de Páscoa. Não deixa de ser, no entanto, pascoalina. A língua tem seus caprichos.

Meu avô tinha um armário cheio de ferramentas e uma pequena bancada de trabalho no nosso quintal. Eu era encantada com a morsa. Um dia, lhe pedi madeira, serrote, prego e martelo. Queria fazer uma cama para minha boneca Vivinha. Ele parou seus afazeres – ele sempre tinha afazeres, não parava quieto – e providenciou. Ensinou-me a usar os aparatos todos. Não sem algumas bufadas impacientes quando eu fazia algo errado, como entortar prego ou serrar fora da marcação.

Eu não tinha ideia da beleza daquilo: avô e neta martelando, serrando, construindo juntos. A gente nunca sabe direito a real importância das coisas. Só quando elas vão parar, feito quadro raro, na galeria da memória.

Depois da caminha, peguei gosto e o resto da mobília da boneca veio: armário, sofá, mesa, cadeira. Não podia ver um toco de madeira dando sopa. Tão fácil, a marcenaria! Não ficava perfeito, nem muito bonito, é verdade. Mas a Vivinha até que levava uma vida confortável.

Eu devia ser a única garota da escola que tinha, à disposição, um arsenal ferramenteiro daquele em casa. E um avô talentoso, apelidado pelas primas de Professor Pardal. Em paralelo às bonecas e coleção de papéis de carta decorados, eu também me divertia com porcas, parafusos, brocas, limas, colher de pedreiro, enxada, cal, cimento, brita, gesso. Sabia a diferença entre chave de fenda e de boca. Lugar de menina também é, por que não?, na oficina.

Meu avô me chamava de “joia rica”. Achava engraçado. Não era nem joia, tampouco rica. Carinhoso a seu modo, ele afagava meus cabelos e ria das minhas molecagens. Embora não fizesse questão de esconder: o preferido era meu irmão mais velho. Primeiro e único neto homem. Ganhou uniforme completo do Palmeiras quando pequenininho. Minha irmã e eu, não. Porque menina não jogava futebol. Mas podia brincar com serrote e plaina e parafuso à vontade. Pirraça inconsciente ou não, fui corintiana por alguns anos.

Seu Paschoal era dono de coração enorme, simpatia maior ainda. Religioso, era grato à vida simples que tinha. Onde quer que tenha renascido, está contando piada, ajudando alguém ou inventando alguma engenhoca.

Desconfio que o feriado é que leva o nome do meu avô, e não o contrário.

Wanda

casa antiga desenho

Chique era a Wanda. Longos cabelos estilo pantera, óculos escuros tipo Jackie Onassis. Bem vestida, a qualquer hora. Morava ao lado da nossa vila, na casa dos meus sonhos.

Acompanhe comigo, com olhos de Google Maps: rua, calçada, casa da frente da vila, área comum da vila, nossa casa na vila. Essa era a extensão da casa da Wanda, cujo limite coincidia com o da nossa. Cinquenta metros no total. Uns oito de largura. Casarão, para os modestos padrões da Mooca da minha infância. Nos fundos do terreno, exatamente ao lado da nossa casa, um pomar.

Completando a quimera, a Wanda. Moça bonitona e, na minha avaliação, rica. Moderna, tinha carro e dirigia. Nada lembro do marido. Nenhum registro sequer em minha memória. Se alto, baixo, feio, bonito. Nada. Não tinham filhos, mas cachorro: Gueibin. Não sei como se escreve. Gaybin? Gabin? Um cachorrão deste tamanho, alegre e saltitante. Eu os via e ouvia chamando o peludo para lá e para cá, Cuidado com o portão!, Para, Gueibin!, Não deixa ele sair! Da mesma forma, nunca soube: Wanda com W ou com V? Nunca conversamos.

Gueibin era da raça setter irlandês. Jamais brinquei com ele. Quando eu passava na rua, em frente ao seu portão, nunca o via. Não era cão autorizado a latir para carros e gentes. Pena.

Antes de eles se mudarem para essa casa, havia outra vizinha. Uma senhora, cujo nome não me recordo. Só sei que dava jabuticabas para nós, por cima do muro. Depois que ela se mudou, o muro cresceu, a Wanda veio. Adeus, jabuticabas.

Nossa casa da rua Natal era pequena, ampliada na base do puxadinho. Eu passava bastante tempo pensando nas casas do bairro onde eu gostaria de morar. A da Wanda era a campeã. Em segundo lugar, um sobrado bacana na rua Jaboticabal, com pomposa rampa ligando o portão à porta de entrada. A janela da sala era um espetáculo: de parede a parede, do teto até quase o chão. A da nossa sala era tão mirrada. Para piorar, dava para o tanque de lavar roupas, no quintal. Por isso, quase nunca ficava aberta. A porta, então, fazia as vezes de janela também. Somada a outras limitações, não é de admirar que eu tenha dedicado tanto tempo sonhando com as casas do pedaço.

A única janela que me conectava ao mundo externo – fator de grande frustração – era a do quarto da minha mãe, que dava para a vila. Meu observatório geral de fundos de casas e telhados e horizontes, em um bairro predominantemente térreo, ainda imune à especulação imobiliária. Apenas ouvia os ônibus, as motos, o vendedor de biju, o sorveteiro. Dali, via a Wanda saindo. A Wanda chegando. A Wanda ralhando com o pobre Gueibin, que devia aprontar as suas.

Se viva for, Wanda deve beirar os setenta anos. Mais, até. Será que ainda usa óculos escuros? Será que tiveram filhos, netos, bisnetos? O Gueibin, se foi papai naquela época, talvez esteja na centésima geração. Que centésima o quê; tricentésima. Quem sabe já não topei, por esse mundo e sem saber, com um descendente seu, rolando n’alguma grama, batizando poste?

Depois que Wanda, marido e Gueibin se mudaram de lá, um japonês comprou a casa. O homem não era sofisticado, não usava óculos escuros. Nem cachorro, tinha. Ainda por cima, trocou o delicado portão de madeira da frente por outro, feioso.

Namorei um rapaz que tinha um setter irlandês. Como gosto de inventar reencarnações para os bichos, não demorou para que eu estabelecesse a conexão. Nunca confessei ao namorado, mas houve vezes em que cochichei ao ouvido do cão, como se segredo nosso fosse: “Eu sei que você é o Gueibin”.

Passou “Um peixe chamado Wanda” no Telecine. Aquele, dos anos 1980. Eu poderia fazer um filme também, “Uma vizinha chamada Wanda”. Nele, uma garotinha sardenta narraria, em primeira pessoa, suas filosofações sobre janelas, memórias e jabuticabas. Seu melhor amigo seria um cachorro. Igualzinho ao Gueibin.

Wilson

O ano? Não me lembro. Estávamos no Primário, hoje Fundamental. Ao subir as escadas, estranhei os colegas no corredor, quando deveriam estar na sala de aula. Ninguém correndo ou fazendo bagunça, que seria o normal. Uns com olhar espantado, outros conversando baixinho. Perguntei o que havia acontecido. Um deles contou: O Wilson morreu.

Wilson era da nossa classe. Oito, nove anos? Fora atropelado na rua Florianópolis, onde morava, enquanto brincava. Caminhão, disseram.

Até então, nenhuma criança, que eu tivesse conhecimento, havia morrido naquele nosso pedaço da Mooca. Tão perto de mim. O ineditismo da morte pegou-me de jeito. Um estranhamento, uma tristeza recheada de susto.

Não fui ao seu enterro. A professora deve ter ido. As aulas continuaram sem ele. Seu nome era o último na chamada. Que ficou mais curta.

Daquele dia em diante, a cada vez que eu passava pela sua rua, pensava nele. (Ninguém sabe, mas até hoje, se acontece de eu passar por ali, penso.)

Não que fôssemos grandes amigos. Pouco sabia dele. Se assistia Família Dó-ré-mi ou se preferia Perdidos no Espaço. Para qual time torcia. O que gostava de pedir na cantina na hora do recreio. Não conhecia seus pais. Mas era alguém que eu via todo santo dia útil, entre cadernos e livros e provas de matemática e brincadeiras no pátio. De repente, nunca mais.

A morte, às vezes, pode marcar mais que a vida.

Não há uma fotografia dele sequer em minhas recordações da escola, já procurei. Para lembrar de seu rosto, preciso me concentrar. Então, ele surge por alguns segundos, para logo se misturar com os de outros colegas e desfazer-se em uma imagem difusa. De concreto, apenas isto: Wilson, meu colega de classe no Primário, morreu. Tinha oito, nove anos? Caminhão, disseram.

Nota: devo registrar, a título de assossego interno, que quando recebi a notícia dos colegas, ali no corredor, talvez por distração, ou por não ter ouvido direito, entendi outra coisa. Algo como o professor ter faltado, que não haveria aula. Soltei, para espanto geral, um infeliz “Graças a Deus!”. Só depois me dei conta do vexaminoso mal-entendido. Por instantes, e apenas por instantes, fui a sem-coração da turma.

Quem me ensinou a nadar

De elemento água, não sou. Como autêntica taurina, meu negócio é terra firme. Nem wet, nem wild.

Reza a lenda que, em certo passeio a Santos, fui derrubada por monstruosa onda. Certamente, nada além de uma marola júnior. Para uma garotinha de dois anos, no entanto, devastador tsunami.

Costumo contar o episódio para justificar a paúra das águas. Eu, de costas para o mar, olhando minha mãe na areia. Vem a danada da onda e me dá um capote. O resto é história.

Não entro em barco, já empaquei atravessando pinguela, nunca enfio a cara no chuveirão. Houve uma vez, no entanto, em que o trauma pareceu arrefecer.

Tapiratiba, final dos anos 70. Visitando parentes do meu pai, a turma resolveu ir à cachoeira. A sardentinha aqui vestiu-se de coragem e foi no embalo. Afinal, não era possível que as águas fossem assim tão terríveis. Nem que nadar fosse coisa tremendamente difícil. Disposta a viver, ali, minha história pessoal de superação, entrei em suas águas calmas, onde as quedas se transformavam em piscinão. De roupa e tudo. A Isabel, esposa do Tião, quis certificar-se que eu sabia nadar. “Aham!” – respondi, determinada.

Quem me ensinou a nadar

Quem me ensinou a nadar

Foi, foi, Marinheiro

Foi os peixinhos do mar

Primeiro (único) tchibum e Oxum surgiu, rindo da minha esdrúxula performance aquática. Eu era uma espécie de peixe fora d’água – só que ao contrário. Afundei, me debati, engoli água. Avistei a Dona Morte se aproximando, metida em um maiô grafite estampado com foicezinhos em verde neon, querendo me levar para um rolê. Foi quando a Isabel percebeu que aquilo não estava indo muito bem.

“Tira a menina da água!”, “Puxa o braço!”, “Tião, ajuda aqui!”.

Salvamento realizado com sucesso. Minh’alma encharcada. O rolezinho ficou para depois. Quando, enfim, recuperei o fôlego, a Isabel estava inconformada: “Mas você não disse que sabia nadar?”.

Muita autoconfiança aos dez anos de idade dá nisso. Insisti que sim, eu sabia nadar. E completei, para incredulidade dos presentes: “Eu treino na cama”.

Foi assim que protagonizei, talvez, a melhor piada da família. Lembrada até hoje nos encontros e festinhas.

Minha sorte é que, naquela época, não existia internet.

Horóscopo

Minha avó gostava de ouvir o Omar Cardoso no rádio. Todo santo dia. Embora não fosse assim tão crente em previsões astrológicas, dona Josephina não perdia um programa. Ligava o aparelho na cozinha, bem alto, e ia cuidar da louça, da roupa, da casa.

Eu, por tabela, ouvia também. A voz empostada do radialista servia de trilha sonora para minhas manhãs, enquanto me divertia no quintal. A escola era só à tarde. Vez por outra, prestava atenção ao que ele dizia. Áries, seja mais assim. Câncer, seja menos assado. Peixes, dia propício para isso. Gêmeos, melhor evitar aquilo. Em minha meninice, achava que fazer horóscopo era um bocado divertido. Bastava inventar as coisas.

No quintal da minha infância, tão imenso, dava para brincar de balanço, esconde-esconde, de professora (dei muita aula para alunos imaginários; será que se formaram?), de casinha, andar de bicicleta, ter cachorro e gato e tartaruga, construir móveis para a boneca Susi com as ferramentas do meu avô. Cabia mesa e cadeiras, de vez em quando almoçávamos ali.

Não pode ser o mesmo quintal de quando me mudei de lá, quase duas décadas atrás. Tão estreito, tão apertado. Hoje, tão silencioso. Onde cabia a vida de todos nós, cabe nem meu choro. Algumas tralhas amontoadas, esperando o destino que nunca vem. Fechada há anos para morada dos vivos, agora a casa 1 da vila deve ser lar de almas que não podem pagar aluguel. Casa tem signo?

Éramos sete: meus avós, meus pais, meus irmãos e eu. Cinco signos diferentes. Toda família é uma salada zodiacal.

Certa vez, o Omar Cardoso anunciou uma tal pedra da lua. Que tinha poderes terapêuticos, energéticos e tal, uma beleza. Pois minha avó fez que fez, e só sossegou quando meu avô comprou a dita cuja. Deve ter custado uma fortuna. Que eu saiba, não serviu para nada.

Meu avô a chamava de Zéfina. Os parentes, de Pina. Eu achava ‘Josephina’ tremendamente feio. Ainda mais com ph. Só fui simpatizar com o nome depois de ler “Mulherzinhas” e saber que o nome da personagem principal, a porreta Jo March, era Josephine. E há quem diga que livros não são importantes.

Minha avó faria aniversário esta semana, dia 6 de novembro. Ela era de Escorpião. Um tantinho venenosa, feito o temido artrópode. Longeva, no entanto; viveu 81 anos. O que os astros lhe reservaram, no dia em que morreu? Omar Cardoso teria profetizado, “É hoje, Zéfina”.

De acordo com o horóscopo que acabo de estabelecer, hoje, sexta-feira, oito de novembro, passado e presente estão em harmoniosa conjunção. Bom dia para cavoucar as lembranças. Tenho uma constelação delas no céu do meu peito. Sou Touro com ascendente em saudade.

Voltinha

“Fusca com família”, Gustavo Rosa

À noite, meu pai pegava a chave do Fusca, dava uma chacoalhadinha no chaveiro, olhava pra nós e já sabíamos: dia de dar voltinha! O destino? Nenhum. O programa era a voltinha. Breve ou longa, dependendo do nível no tanque e da disposição do Seu Tonico, único motorista da família. Ele e minha mãe na frente; nós três, os filhos, atrás. Rodar pelos bairros, só pelo prazer de andar de carro. Uma espécie de peregrinação a Santiago de Compostela sobre rodas, onde o caminho é mais importante que o fim.

Desde que me entendo por gente, tivemos carro em casa. Nem por isso o encantamento se esgotava; não era sempre que o usávamos. Matinê no Cine Comodoro, para assistir a “Uma janela para o céu”? Ônibus. Visitar a Vovó Carmela na Vila Diva? A pé. Tia Zinha, em Mauá? Trem. Passear de carro, para meus poucos anos de vida, ainda era acontecimento recheado de novidade e finesse, coisa de gente rica.

A discussão era sobre quem iria nas janelinhas. Geralmente, Seu Tonico e Dona Angelina ajudavam nos pitacos. Negociações feitas, lá íamos. Sem cinto de segurança, que nos anos 70 a gente mal sabia onde ficava. Era comum o item permanecer enroladinho em um elástico, tal qual saíra da fábrica. Acho até que o Fusca nem tinha. Nunca sofremos acidente. São Cristóvão era nosso chapa.

Sob o ronco das mil e trezentas cilindradas, a gente pedia para meu pai passar aqui e ali, ou seguia a esmo, guiados pelo nada. Eu gostava das avenidas, dava para correr mais. Quando era minha vez,  aproveitava a janelinha particular (para o céu?), decorando a cidade e treinando a leitura nas placas. Torcia para passar em frente à casa de alguma amiga. Quem sabe ela não me veria e, admirada, diria, “Olha, a Silmara!”. Ah, se nosso Fusca falasse.

Hoje, caso eu sugerisse um passeio assim aos meus filhos, acostumados ao carro desde o bebê-conforto, eu seria bombardeada por questionamentos incrédulos – Pra quê?, Mas aonde vamos?, Que graça tem? – e ganharia debochada recusa a tão besta convite.

São poucas as novidades para quem nasceu neste século, e os encantamentos, outros. Definição de simplicidade, para eles, é uma velha conexão 3G, o pacote básico da Net, pizza sem borda recheada.

Já meu pai, piloto-herói da minha infância, hoje se embanana todo na hora de entrar no carro, confunde as portas, não se entende com o cinto de segurança. Agora, sou eu que o levo passear. O destino, geralmente, é o médico. Para ouvir que está tudo bem com seu motor 8.7. O que não é para qualquer um.

Por pura nostalgia, hei de ter um Fusca. A caçula avisou: estou proibida de buscá-la na escola com ele. Em silêncio, penso: o mundo dá voltas. Deixa estar.

O pato

ilustração: Aimee Marie

Já tive um pato.

Não o que faz quém-quém. Patinho de brinquedo, do tamanho do meu dedão. Todo preto (cinza?), de plástico, desses que param em pé. Uma amiga do primário me dera, nem sei bem por que. Só sei que o brinquedinho simplório e, aparentemente, sem graça, estava sempre ao meu lado. Como um fiel animalzinho de estimação.

Batizei-o, em notório arroubo criativo, de Patolino. Patolino pra lá, Patolino pra cá. Ninguém podia pegá-lo, tampouco desdenhar dele. Eu virava fera, encarnava a pata-mãe furiosa.

Não que não houvesse, em casa, outros brinquedos à minha disposição. Apesar da vida apertada, eu tinha lá minhas bonecas, como a Susi (prima da Barbie, que ninguém conhecia), a Vivinha, a Fofolete, as de papel. Bichos de pelúcia e outros divertimentos, inventados com coisas comuns, como caixinhas de fósforos vazias, pedaços de madeira que sobravam na oficina improvisada do meu avô. Tive também bichos de verdade, muitos. Desde meu primeiro dia de vida neste planeta convivo com eles, em especial os gatos.

O fato é que me afeiçoei ao patinho de plástico, como poucas vezes o fiz a um brinquedo. E podia jurar que o Patolino, pelo teor dos nossos papos (sim, nós conversávamos), também gostava de mim. Fui dando corda a esse antropomorfismo afetivo, sabido e aceito pela família. Até que, um dia, o pior aconteceu.

Vô Paschoal, sem querer, pisou no Patolino. Quem mandou largar no meio do quintal? Quando o vi destruído no chão, e meu avô bufando (para piorar a situação), só consegui recolher o que restara do Patolino, e me recolher à cama para chorar.

Chorei copiosamente a ‘morte’ do patinho como fizera, por tantas vezes, pelos nossos gatos que se iam. Soluçava, lamentando não ter me despedido do Patolino. Condenei-me ao título de criança mais infeliz do mundo, que não sabia como ia viver dali em diante.

Então ganhei outro patinho de plástico. Parecido com o Patolino, só mudava a cor. Não me recordo se foi presente da mesma amiga ou se meu avô, redimindo-se do patocídio culposo e vendo a neta caçula inconsolável, tratou de providenciar. Batizei-o homonimamente em homenagem ao velho amigo, e dediquei sinceros esforços ao novo relacionamento.

Mas o Novo Patolino não era o Velho Patolino. Não se substitui um amigo assim, do dia para a noite. Talvez eu devesse ter dado outro nome. Além disso, faltava-lhe a ânima que o Patolino, em meu julgamento, tinha de sobra. Quem sabe, a diferença não estava nem no pato de plástico, mas em mim. Depois de viver a fundamental e necessária fase de ‘luto’, superei a perda e reconstruí a vida (os dramas infantis são tão imensos!), eventualmente me distraindo com alguma roupa nova, um dinheirinho ganho da madrinha, os passeios a Santos no velho Fusca, os bichos de verdade. E passou.

Patolino brotou na lembrança porque, dia desses, pisei, sem querer, em um pequeno brinquedo de plástico da Nina. Fui checar: um cachorrinho cor de rosa, menor que meu dedinho. Talvez da turma da Polly (neta da Vivinha). Recolhi os caquinhos e joguei fora. Lembrei com carinho do meu velho patinho querido, mas sequer cogitei se aquele cãozinho significava algo para minha filha. Se ela perguntar, jogo a culpa na gata. Ela que pague o pato.

Farofa

Se o tempo amanhecesse bom no domingo, meu pai anunciava: “Vamos!”.

Pega a esteira, o chapéu, não esquece o bronzeador Bozzano, “Mãe, já vou com o biquíni por baixo?”, as toalhas, os sanduíches, o refrigerante, o guarda-sol, a prancha – de madeira, não existia de isopor.

Fusca cheio, vambora. O programa: farofar em Santos. Seu Tonico no volante, Dona Angelina ao lado, eu e meus irmãos atrás. Todos sem cinto de segurança. Deus existe, meu bem.

O Google diz que da Mooca até o litoral são setenta quilômetros. Bom para um bate-e-volta. Como não existia GPS nos anos 70, eu perguntava de quinze em quinze minutos se a gente já estava chegando. Era minha maneira de calcular o tempo e a distância da viagem.

No caminho pela Estrada Velha de Santos, ou Via Anchieta, tinha Cubatão. Ouvia tanta história sobre a cidade, as chaminés das indústrias lançando fumaça preta no ar, dia e noite, crianças nascendo sem cérebro, que esse nome – Cubatão – já havia, para mim, virado metonímia para poluição. Lembro-me também de achar graça no nome de uma rodovia no pedaço, a Pedro Taques, que eu acreditava ser Pedro Táxi. Por certo, um taxista muito famoso.

Ao mesmo tempo que amava passar o dia na praia, comendo salgadinho, brincando com meu baldinho e fazendo castelos na areia, eu também sofria; o sol mandava a fatura. Vermelha como a roupa do Papai Noel, logo eu me encheria de bolhas doloridíssimas. Minha mãe tinha lá suas panaceias para essas horas e, quando a dor passava, eu gostava quando ela – que nenhum pediatra me ouça – as furava com agulha de costura e linha. Era meio nojento quando vazavam. Depois vinha a fase de descascar; uma coceira dos diabos, mas a despelação era divertida. Não existia protetor solar naquela época, só bronzeador – um veneno para minha tez de Branca de Neve. Fui uma criança sardenta, não por acaso.

Certa vez, Seu Tonico estacionou, como sempre, em uma rua próximo à orla. Passamos a manhã na praia e, na hora do almoço, voltamos ao carro. Surpresa: o Fusca havia sido arrombado. Lembro-me da expressão preocupada dos meus pais, contando os trocados que haviam sobrado num cantinho do porta-luvas que passara despercebido pelo ladrão. Se a farofada já estava em andamento, o frango assado estava garantido.

Então, quando fiz seis anos e entrei na escola, meus pais compraram a venda. Como o batente era de segunda a segunda, o fim dos passeios a Santos foi decretado.

Tanta coisa mudou. O advento do protetor solar com fator 50 cancelou as queimaduras e as bolhas. Moro a mais de setenta quilômetros da praia, não entro num Fusca há décadas (suspiro). Na Estrada Velha, agora, só gente e bicicleta. Cubatão, vejam só, deixou para trás o estigma de “Vale da Morte”. O sanduíche da minha mãe é só saudade, e meu pai mal sabe em que dia da semana estamos. Meus filhos não sabem o que é andar de carro sem cinto de segurança, não conhecem Santos, tampouco o prazer da legítima farofagem. E, apesar da minha atual pouca disposição para a dupla mar & areia, minhas lembranças daquele tempo continuam ensolaradas. Arrisco dizer que foram as farofas mais bem temperadas da vida.

Caneta

A professora Genoveva Lé anunciou: “Hoje vocês vão usar caneta para fazer a lição.” Terceiro ano do primário, só dava lápis nos livros e cadernos. A caneta, portanto, representava um upgrade na minha vida escolar.

Fiquei secretamente eufórica. Estava, oficialmente, autorizada a usar a ferramenta de escrita dos adultos – como se meus rabiscos à caneta, em casa, não contassem. Olhei ao redor, os colegas também se sentiam assim? Não importava. Então pronto, eu já era grande. Isso bastava. Quando bateu o sinal da saída e eu cruzei o portão, devo ter descido a rua com expressão igual à da garota do comercial do primeiro sutiã.

A primeira lição à caneta é uma espécie de primeiro sutiã.

Sobre a máquina de costura da minha mãe, onde eu fazia o dever de casa (uma Singer com gabinete, quando fechava virava uma mesa), ajeitei caderno, livro, lápis e borracha para apoio moral, e a Bic azul. E se eu errasse?

O lápis era o cara legal, condescendente com meus erros. A caneta bancava a impiedosa. Com ela, sem o recurso do “branquinho”, que também estava proibido, era como gravar na pedra. Manejá-la demandava certeza. E alguma autoconfiança.

A professora ensinara a fazer tracinhos verticais, paralelos e levemente inclinados sobre a palavra errada, escrevendo a certa em seguida. O que era desvantajoso, pois revelava o erro. Se escrevesse ‘giboia’, ou confundisse um tempo verbal, ela ficaria sabendo. Para disfarçar, o jeito era encher de tracinhos, até que o erro se tornasse ilegível. Quem preferisse, poderia fazer a lição a lápis, e depois passar a caneta por cima. O que levava duas vezes mais tempo e não me parecia um bom negócio.

Nos dias seguintes, quando havia ditado ou problemas de matemática, a turma, na dúvida, perguntava com qual, lápis ou caneta, era para fazer. Crescer, às vezes, carece de confirmação.

Logo depois, fomos liberados para usar as borrachas bicolores, que prometiam resolver o problema das palavras riscadas, enfeiando a lição. A parte vermelha apagava lápis, e a azul, tinta esferográfica. Foi minha primeira decepção como consumidora. Além de não apagar direito, borrava o papel e, às vezes, o rasgava. Mas o importante é que eu havia sido promovida na hierarquia estudantil, deixando para trás o universo das criancinhas dos primeiro e segundo ano. Eu já tinha nove anos, oras.

Depois da caneta azul, pudemos introduzir a verde e a preta. Vermelha não, que essa era reservada à professora. Uma paleta bastante restrita, comparada ao arco-íris infinito das Stabilos de agora.

Hoje, quando digito no smartphone ou no notebook, é como se eu escrevesse a lápis o tempo todo. Escrevo, apago, reescrevo. Tenho à disposição uma borracha mágica, invisível e eficaz, que nunca acaba. E o melhor: não deixo rastro. Isso quando não sou corrigida automaticamente – o que pode ser tanto o céu como o inferno, mas essa é outra história.

Tecnologias à parte, a verdade é que as canetas seguirão registrando o mundo. E sempre haverá uma garotinha secretamente eufórica usando uma pela primeira vez.

Mãos ao alto

Como havia vinte e cinco anos que eu não era assaltada, a vida achou que estava na hora de quebrar esse jejum.

Estacionei na rua, para quê pagar estacionamento, não é mesmo?, fui fazer o que eu tinha que fazer, voltei, abri a porta do carro, entrei, ajeitei a bolsa no banco, afivelei o cinto de segurança, apanhei o celular, conectei-o ao carregador, estava mais tranquila que buda em feriado prolongado, o homem encostou o carão na janela do passageiro, por um segundo achei que fosse pedir informação, ele abriu facilmente a porta, entrou, sentou-se ao meu lado, praticamente sobre minha bolsa, que, aliás, é nova, mandou eu ficar quietinha e não fazer nada, que era para passar o celular, obedeci, que não sou besta de reagir, entreguei meu aparelho com mil e quinhentas fotografias que não estavam salvas na nuvem, dos últimos aniversários dos meninos, das viagens, dos gatos, então ele quis dinheiro, eu pedi licença para pegar a bolsa sob seu bumbum, abri a carteira, tinha quarenta contos, ele reclamou, “Só isso?”, pensei, “É agora que morro e vão rir da minha calcinha de bolinhas no IML”, que ousadia, a minha, andar com esse miserê financeiro!, mas ele foi bacana, Síndrome de Estocolmo, versão campineira, catou meus trocados, guardou o meu celular (dele, daquele instante em diante) no bolso da calça, confesso que não sei se ele estava armado; eu que não ia perguntar, o homem desceu do carro, e antes de fechar a porta e ir embora tranquilamente, ainda ordenou que eu continuasse quietinha, claro, sim, senhor.

Quando eu era pequena, gostava de desenhar. Um dia, não sei por que cargas d’água resolvi ilustrar uma cena de assalto. Nela, um homem empunhava sua arma, anunciando o assalto à vítima. No balãozinho, escrevi com letra caprichada a fala do meliante: “Monzoalto!”. Para mim, pequena alfabetizanda atenta à oralidade, era assim que se escrevia “Mãos ao alto”. Acho até que escrevi com S, o que, nesse caso, seria completamente incorreto, todo mundo sabe que monzoalto se escreve com Z.

Naquela tarde ensolarada de segunda-feira, o homem do carão na janela não disse “Mãos ao alto”, tampouco “Monzoalto”. Não se usa mais. Agora é o rude “Fica quieto(a) e não faz nada” ou o vago “Perdeu, perdeu!”. Considero “Mãos ao alto”, no entanto, bem mais elegante e educado.

Voltei para casa, fiz B.O. pela internet, chorei, passou. Dias depois, celular novo, contatos restaurados, dados recuperados, inclusive algumas fotografias. Já o meu desenho de criança… ah, esse está arquivado, permanentemente, na memória. Que é minha grande nuvem particular. Essa, meu chapa, ninguém tasca.

A rua

“Street”, Lea Vervoort

As casas perfeitas eram sempre de frente para a rua. Onde, da calçada, já se entrava na garagem, e da garagem, na sala. Nessa sala, idealmente, a janela tomava a parede frontal toda, nada de janelica. E dela se podia ver o movimento lá fora: quem vinha pela calçada, quem passava de moto, de carro, os vendedores de tudo, os ônibus, os vizinhos. Glória, então, se fosse sobrado: além da escada, que eu considerava chique, o quarto da frente, sobre a sala, virava camarote.

Não fui criança de desejar viver em mansões, palacetes, nada disso. Modesta, bastava-me um sobrado geminado de frente para a rua – típico da Mooca, meu universo natal e então única referência arquitetônica – e eu estaria realizada.

Quis o destino, esse fanfarrão de marca maior, que eu fosse viver em uma pequena vila, de onde não se via absolutamente nada da rua, nem uma nesga de calçada. Ainda se fosse a casa 4, da Dona Antonia, que era a última e única alinhada ao corredor de entrada da vila. Mas não: a vida colocou-me justo na casa 1, a do canto, a mais distante de tudo e de todos. Quando o moço do biju passava com sua matraca, teleq-teleq-teleq, era preciso sair correndo para alcançá-lo já quase na esquina, pois nem sempre ele adentrava a vila para oferecer seu quitute. Quem morava de frente para a rua não passava esse apuro.

Suspirava quando ia à casa das amigas. Em frente às suas salas, seus quartos, suas garagens, se dava a adorável e mágica dinâmica da rua. Como elas deviam ser felizes! Era como pertencer à grande festa cotidiana, fazer parte do filme urbano, viver, enfim. Na vila, eu me sentia fora do cenário, do enredo, do baile.

Não que detestasse a vida na vila; ela acabava sendo uma extensão do nosso diminuto quintal, onde se podia brincar à vontade, andar de bicicleta e skate, sentar no chão e ficar conversando até tardão.

O problema surgiu à medida em que a adolescência chegava. A rua era o cosmos onde circulavam os amigos, os inimigos, os paqueras. E, da janela da nossa sala, eu não avistava nada, além do tanque onde meus avós lavavam roupa. Do quarto dos meus pais, que dava para a vila, só os fundos das casas da frente. E alguns telhados do quarteirão, com eventuais gatos zanzando. Pouco, para minha sede juvenil de acontecimentos (e pertencimento).

Movida pela quimera da moradia ideal, punha-me a desenhar, obsessivamente, casas imaginárias sob medida para a minha felicidade. Caprichava na planta, me dedicava às fachadas. Talvez tenha escolhido Técnico em Edificações no segundo grau por conta disso. Ainda bem que a opção mostrou-se, a tempo, puro delírio.

Mudei-me da vila já adulta. Outros lares vieram, e a vista para a rua nunca mais foi requisito. Os sonhos envelhecem.

Há anos moro em um condomínio horizontal, que nada mais é que uma vila grande. Retornei às origens, por deliberada vontade. Nossa casa é uma das últimas, escolhida a dedo. Quanto mais longe da rua, dos barulhos, dos ônibus, das fumaças, das buzinas, das motos, dos escapamentos adulterados, melhor. Não que tenha deixado de gostar da rua; agora, eu decido quando quero vê-la. Passei a apreciar, sem sofrimento algum, o silêncio e o sossego. A melhor coisa de se ver ao acordar, descobri, não é a rua. É um bem-te-vi carregando um galhinho no bico.

Sinto falta, porém, do moço do biju. Em compensação, tem o sorveteiro. Aos sábados, ele passa na rua de trás, anunciando no alto-falante sabores de creme e de frutas. Que eu nunca comprei.

O baleiro

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Da venda dos meus pais, não é da balança Filizola vermelha ou do cheiro do café moído na hora que mais me lembro. Nem da máquina de cortar frios que quase decepou meu dedo. É do baleiro.

Eu tinha seis anos quando meus pais resolveram empreender e compraram o ponto. Fiquei triste porque Dona Angelina não ficaria mais em casa o dia todo comigo, e sim pesando arroz, feijão e batata para a freguesia do bairro, com Seu Tonico ao lado, servindo Velho Barreiro aos homens do pedaço. Em compensação, quando eu fosse na venda, poderia comer doces à vontade e, no meu entendimento, de graça.

Roda, roda,

Roda baleiro, atenção

Quando o baleiro parar

Ponha a mão

De vidro, três andares, o baleiro estava sempre abastecido. Bala Juquinha, 7 Belo, bala de goma, delicados e caramelos, numa profusão de cores e sabores, tão ao alcance das minhas pequenas mãos. “Só mais um!”, eu pedia. Queria morar naquele baleiro.

Havia também uma vitrine de madeira com portinhas de correr, espécie de portal para outra dimensão, feita de glicose. Maria-mole, pé-de-moleque, doce de batata-doce, chiclete Ping Pong e suas tatuagens fajutas, chocolate de guarda-chuvinha, Dadinho, paçoca Amor. Eu não sabia por onde começar.

Pegue a bala mais gostosa do planeta

Não deixe que a sorte se intrometa

Por dezoito anos, o baleiro fez parte do negócio de secos e molhados da família. Girando feito planeta, ora num sentido, ora noutro. Mas o sentido não estava na boca? Já grande, suas balas não me encantavam mais. Continuavam, no entanto, fazendo a alegria das novas gerações de fregueses-mirins.

Quando meu pai se desfez da venda, anos depois de enviuvar e cansado de tocar o barco sozinho, alguém perguntou, E o baleiro?”. Ninguém quis. Uma velharia, candidata a estorvo.

Perguntei aos irmãos esta semana, “Que foi feito dele?”. Não se lembram. Eu deveria tê-lo guardado, nem que fosse no porão. O arrependimento não é doce.

Vi um para vender, dia desses. Novinho em folha, réplica dos originais. Prestei atenção em suas tampas, tão perfeitas e lustrosas. Não havia nelas nenhum amassadinho, ou qualquer outra cicatriz deixada pelo uso. Que graça tem baleiro sem história?

Queria tanto uma bala Juquinha agora.

Museu

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Quando era criança, inventei de montar um museu. Com o tema para a curadoria da primeira exposição em mente, saí catando coisas – aparentemente aleatórias – pela casa. Uns chumaços de algodão, um pente velho, uma moldura de espelho, sem o espelho (daqueles cor de laranja, que vendiam nas feiras) e o que mais estivesse dando sopa.

Nossa casa na vila tinha um pequeno quintal na lateral. Quintal é sempre território de imaginar. Foi ali que instalei meu museu de coisas. Distribuí, com rigor técnico, as peças da exposição ao lado do tanque, na prateleira onde meu avô guardava a cândida e onde mais considerei adequado.

Cuidei, também, de garantir ao público as informações necessárias. Escrevi num papelzinho do que se tratava cada item do precioso acervo.

E, assim, fui identificando os objetos de altíssima relevância histórica e cultural para o país: “algodão do travesseiro de Pedro Álvares Cabral”, “pente de José Bonifácio”, “moldura do espelho da princesa Isabel”. Não lembro de todos os objetos do inventário imaginário. Só sei que deu uma curiosa exposição. Temporária, porém; no dia seguinte tudo teria que sair de lá, minha avó tinha que lavar roupa.

A única visitante foi minha irmã. Eu fui sua guia. Disse ela que estava tudo muito bonito. Nada como ter alguém para reconhecer nosso talento. Pena que não há, na família, um registro sequer. Tirar fotografia naquela época não era algo corriqueiro, como hoje. Só em eventos especiais. Tinha que ter a máquina fotográfica, filme (12, 24 ou 36 poses), dinheiro para mandar revelar e paciência de aguardar. Levava quase uma semana para voltarem do laboratório. E não dava para editar nada. Compartilhar com alguém, só entregando em mãos ou pelos Correios.

Quis o destino que, mais tarde, já na faculdade, meu primeiro emprego fosse em um… museu. Museu Paulista. Museu do Ipiranga, para os chegados. Eu era estagiária de comunicação visual. Fui alocada na sala da numismática, em uma das torres laterais (a direita, para quem olha o prédio de frente), e para chegar até ela era preciso – acredite se quiser – cruzar uma parte pelo telhado, já que não havia acesso direto por escada, nem elevador. Havia um caminhozinho partindo da torre central, devidamente protegido por uma pequena grade para que ninguém rolasse telhado abaixo. Só complicava em dia de chuva.

Primeiro job: uma exposição intitulada “Ser negro hoje”, comemorativa do centenário da abolição da escravatura nesta Pindorama. Era 1988 e eu tinha 21 anos. Ali, tudo novidade para mim: trabalhar, ter salário, o tema abordado em si. Em minha jovem vida, nunca havia parado para atinar, pra valer, sobre o tema. Piada de preto era normal. Eu, confesso, ria. Dei minha contribuição, desenhando em madeira, à mão livre, a silhueta de vários bonecos em tamanho natural, representando negros e brancos. O chefe ficou bem satisfeito.

Lembrei da minha pequena exposição no quintal. Se a filha de Dom Pedro II tivesse um espelho com moldura cor de laranja, que teria visto refletido nele no dia em que assinou a Lei Áurea?

Ainda bem que trago um museu de histórias, sons e imagens dentro da cabeça (levemente falho, às vezes). A vida tem essa mania de ligar tudo o tempo todo, por um fio compridíssimo e invisível chamado memória.

Lactobacilos

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Arte: Peter Chan

A mulher do Yakult passava toda semana. Entrava na vila empurrando seu carrinho refrigerado e tocava a campainha nas quatro casas. Não vendiam a bebida nos supermercados, ainda. Só de porta em porta. Da janela do quarto da frente eu via, não sem algum desapontamento, minha avó no portão, agradecendo: “Hoje não!”.

Era raro termos Yakult em casa. Para ter o resultado prometido – intestino nos trinques – diziam que tinha que tomar um por dia. Éramos em três irmãos, ficaria caro. Mas eu adorava aquele leite fermentado geladinho, meio doce, meio azedo, que deixava a língua da gente nojentamente esbranquiçada. Lia no frasco: lactobacilos vivos. Viajava na ideia de estar tomando um troço cheio de bichinhos se mexendo lá dentro.

Só crianças ricas tomavam Yakult todo dia, eu pensava. Felizes das casas onde a vendedora era recebida com “Hoje sim!”.

A garrafinha era (ainda é) tão pequena. Nunca entendi o motivo. Por que não faziam maiores, do tamanho do guaraná de um litro? Diziam que soltava o intestino, se a gente tomasse muito de uma vez. Lorota, descobri anos depois.

Um dia, abri a geladeira e lá estavam: cinco garrafinhas! É que, com o tempo, a invenção do senhor Minoru Shirota foi ficando relativamente barata e a gente já podia tê-la com mais frequência. Não tive dúvida, tomei tudo de uma vez. O que era para ser dividido entre eu e os irmãos, foi devorado em minutos. Oh néctar dos deuses!

Não tardou, fui descoberta. Neguei o quanto pude – ainda nego, aliás. Mas a verdade é que não houve efeito colateral. Não passei mal. Aquela história de piriri era pura fake news.

Quando Nina e Luca eram menores, eu costumava comprar Yakult. Não das folclóricas vendedoras ambulantes, que nunca mais vi pelas ruas. Eles gostavam quando eu furava a tampinha, fazendo uma espécie de chuveirinho. Depois, enjoaram e não comprei mais. Não tem muito tempo, Nina lembrou e pediu para trazer. Hoje outras marcas fazem o probiótico. Nem cogitei trazer os concorrentes, fidelidade afetiva é coisa séria. Passei pela gôndola repleta e apanhei o kit com seis, reeditando o “Hoje sim!”. Cheguei em casa, lavei as garrafinhas, arranjei-as caprichosamente na porta da geladeira. Por um segundo, encantei-me com a visão, exatamente como no dia em que cometi o crime lácteo.

Eram os bichinhos das minhas lembranças, vivíssimos da silva.

Memórias de uma ditadura militar

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As praias do Brasil ensolaradas

Lá lá lá lá

O chão onde o país se elevou

Lá lá lá lá

A mão de Deus abençoou

Mulher que nasce aqui

Tem muito mais amor

Eu botava o disco na vitrola e ia para o quintal, brincar no balanço. Um compacto com “Eu te amo, meu Brasil”, d’Os Incríveis. Decorei a letra e cantava bem alto, enquanto ganhava impulso no balanço e via, atrás de mim, o quintal de ponta-cabeça. Era começo dos anos 70, Brasil tricampeão.

Pouco depois, em 1973, entrei na escola. Uma vez por semana cantávamos o Hino Nacional e hasteávamos a bandeira. Nada contra o Joaquim Osório ou o Francisco Manuel, tampouco contra o símbolo augusto da paz. É que eu preferia ir brincar no pátio com meus amigos. Achava normais, porém, os rituais cívicos. Assim como soavam normalíssimos os versos ufanistas de Dom e Ravel na canção.

Já no ginásio, aula de Educação Moral e Cívica. Muitos tinham medo do Professor Vadim. Eu tinha. Ele era baixo e andava com dificuldade, tinha uma perna mais curta que a outra e usava um calçado estranho. Não era por isso que eu o temia. Austero, não me lembro de um sorriso seu. Mas lembro do livro que copiávamos no caderno com letra bonita, fruto das aulas de caligrafia, lições sobre amor à pátria e de como deve funcionar um país. E, nas entrelinhas que eu ainda não podia ler, o que um brasileiro de bem não devia fazer, dizer ou pensar. Achava normal ter aulas de Educação Moral e Cívica. Assim como hastear bandeira fazendo continência, feito mini-soldados, cantar hino com a mão sobre o coração, brincar no balanço ouvindo “As tardes do Brasil são mais douradas, Mulatas brotam cheias de calor, A mão de Deus abençoou, Eu vou ficar aqui, porque existe amor”.

Na mesma vitrola também rolava Chico Buarque. Achava “Cálice” linda. Mas, aos doze anos, talvez considerasse apenas uma letra meio maluca que falava do Deus bíblico e do Deus mitológico Baco, com aquele negócio dos vinhos. Mais tarde, entendi a genialidade do Chico. Mas achava normal que ele, assim como outros, precisassem, para poder cantar os horrores que sabiam, disfarçar suas letras para driblar a censura que vigorava na ditadura militar. A normalidade pode ser um perigo.

Eu te amo, meu Brasil, eu te amo

Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil

Eu te amo, meu Brasil, eu te amo

Ninguém segura a juventude do Brasil

Enquanto eu fazia coro com Os Incríveis no balanço do quintal, em junho de 1972, a um quilômetro e meio da nossa casa, uma moça chamada Ana Maria almoçava no restaurante Varela, também na Mooca, com mais três companheiros da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Eram guerrilheiros, se opunham ao regime militar. Diz que o dono a reconheceu em um cartaz do governo que caçava “gente subversiva”, e resolveu chamar a Polícia. Ao saírem dali, foram mortos. Apenas um escapou. Eu, que passava sempre em frente ao restaurante, nunca imaginei. Só soube da história muitos anos depois, já grande. Desta vez, não achei normal. Nem Dona Anadyr e Seu Mário Henrique, os pais de Ana Maria Nacinovic. Para eles, era mentira o verso final da canção. Sim, conseguiram segurar a juventude de sua filha. E de tantos outros.

Meu primeiro amor. Ou segundo

ilustração: Lubi
Fragmentos de memória: 1977, São Paulo, Teatro Municipal, Irene Ravache, calça Levi’s, menino loiro.
Pronto. Agora é costurar tudo e montar a colcha que cobre a história do meu primeiro amor. Ou segundo. Tirando, claro, as dezenas de namorados inventados da minha infância e que constaram de uma lista, redigida pela irmã mais velha, que incluía o moço que aplicava injeção na farmácia, o Sérgio Chapelin e o goleiro Leão.
Eu tinha dez anos e era a primeira vez que eu ia ao Teatro Municipal. As cadeiras ainda eram forradas com veludo verde. Não há qualquer chance de eu me lembrar do que assisti. Rei Davi, talvez? De certezas, somente três: primeira, era algo com a Irene Ravache; segunda, eu usava uma adorada calça Levi’s bege, e terceira, havia um menino loiro e lindo do outro lado do foyer, igualmente numa Levi’s bege.
Bati os olhos nele – que devia ter a minha idade e também estava com os pais – e não desgrudei mais. Se ele, de lá, me via, não sei. Desconhecia aquele meu sentimento, embora já suspeitasse do que se tratava. Apaixonar-se é grudar nos olhos uma fotografia da pessoa amada.
Foi assim o espetáculo inteiro. Quando acabou, fiquei triste porque não iria mais vê-lo. Como seria seu nome? Sua voz? Ia bem em matemática? Seria bacana ir à sorveteria com ele depois das aulas, de mãos dadas e com nossas Levi’s.
Não contei a ninguém o que senti. Só guardei a imagem do menino bonito. Tão bem guardada, que ei-la aqui. E o leitor que me desculpe pela decepção. Pois não se trata de uma história de amor típica, com começo, meio e fim distribuídos em uma linha do tempo recheada de acontecimentos e emoções e conversas de amor e beijos escondidos. A história do meu primeiro amor (ou segundo) é só isto mesmo. Vocês podem continuar fazendo o que estavam fazendo. Ou continuar lendo.
Naquela época, dadas a pouca idade e limitações mundanas, seria praticamente impossível tornar a vê-lo. Hoje, bastaria um apelo na internet (se meus pais deixassem, o que duvido). “Alguém sabe quem é este garoto?” encabeçaria, na rede social, o post esperançoso, com uma foto feita pelo celular em precário zoom. Daria o serviço – dia, hora e local – e imediatamente se formaria na tudosfera uma corrente engajada de compartilhamentos, dedicada a encontrar meu pequeno príncipe encantado. Já vi isso nas notícias. O amor é a melhor hashtag que há.
Em meus devaneios, às vezes, me ponho a imaginar por onde andará o garotinho de calça Levi’s bege no foyer do Teatro Municipal. O que se tornou, de quê gosta de falar, se prefere pão francês branquinho ou queimadinho, se ainda é loiro. É devaneio desinteressado, registro – eu que não quero treta com meu marido. Daqueles ingênuos, que brotam no meio de um dia atarefado como um sopro de leveza. É respeito (ou asas) às lembranças que compõem minha biografia.
Depois daquela noite, estive tantas outras vezes no Teatro Municipal. Eventualmente, enfiada numa Levi’s. Nunca mais, no entanto, me apaixonei por ninguém do outro lado do foyer. A vida nunca foi de me pregar – vejam só – peça.

Trégua

Julieta, lembrei. Julieta era o nome dela. A vizinha da casa 3, que morrera em seu quarto. Marcos, o único filho. Um garoto da minha idade, sete anos.

Eu batia boca com ele sempre que podia. Não que fôssemos inimigos, brincávamos juntos. Mas não perdíamos a oportunidade de provocar. Ele dizia algo, eu rebatia, ele soltava outra e assim exercitávamos nossa retórica – com sofisticação intelectual no nível de “Nunca viu, cara de pavio?” e “Você não é de nada, só come marmelada”. O objetivo era ver quem daria a palavra final, a resposta lacradora que calaria o outro. Lembro vividamente de uma vez que ele falou: “Você tem resposta pra tudo”. Fiquei em dúvida se era elogio ou não.

Câncer, disseram. Julieta era jovem, miúda, morena, pintas no rosto. Educadíssima. No dia em que ela morreu, fiquei consternada. Como um garoto de sete anos iria viver sem a mãe? Pai já não devia ter, nunca o vira por ali. Quando minha mãe morreu eu tinha vinte; tempo que já me calçara de certa força e autonomia para enfrentar a vida. Além disso, eu contava com pai, irmãos mais velhos, avós. Mas e o Marcos, que estava no primeiro ano e usava franjinha?

O velório foi na sala. O cômodo onde os dois assistiam TV à noite, juntos, agora exibia outro programa. Eu não fui. E tive que lidar com a ideia de haver um defunto a duas casas da minha. Antes da Julieta, eu não tinha notícia de alguém na vizinhança que houvesse batido as botas em casa. Morria-se em hospital, na rua, longe. Não em casa, lugar de viver.

O portãozinho ficou aberto, um entra-e-sai dos poucos parentes. O Marcos ficou zanzando na vila. Chutando pedrinhas pelo chão, cabisbaixo. Da janela do quarto dos meus pais, eu o observava. Ele via que eu o via. Naquele dia, porém, não tive vontade, nem coragem, de provocá-lo. Como se a morte requeresse trégua entre nós. Era preciso alguma paz. Tampouco fui conversar com meu amigo. Saber se gostaria de comer biscoito champagne com Nescau, ouvir o LP dos Carpenters. Nada. O silêncio foi a trégua.

Logo ele se mudou. Comentaram que fora morar com os tios. Não me despedi. Perdi, então, meu parceiro de embates verbais. A casa 3 ficou vazia por um tempo. Depois, chegaram novos inquilinos. Pensei em avisá-los sobre eventuais problemas com almas penadas, mas desisti. Por via das dúvidas, levei anos para entrar ali de novo.

Mães que morrem conseguem, de algum jeito, cuidar dos filhos? Por que eu tinha sorte de ter minha mãe e ele não? Por que médicos não conseguiam curar tudo? Por que gente viva não vê gente morta?

Fiz-me muitas perguntas, na época. E o Marcos estava enganado. Eu não tinha tantas respostas assim.

Verde-prússia

verde prússia 2

De todos os meus lápis de cor, o favorito era o verde-prússia. Não sabia, porém, o que era Prússia. Aprendi o nome e repetia, feito autômata. Só sabia que era o tom mais lindo do mundo para colorir meus desenhos.

No papel, em verde-prússia – ou verde-da-prússia, como alguns falavam – eu tingia a pipa que o menino empinava, a água da piscina que sonhava ter em casa, os olhos da moça que eu queria ser. Um dos primeiros lápis a acabar, o que mais visitava o apontador. Era preciso economizar, portanto. Aquele verde tão especial só vinha na caixa com 24 cores, e não era sempre que eu ganhava uma. Geralmente, usava a de 12 mesmo, com apenas duas variações: claro e escuro. Fosse a caixinha de 6, paciência, só o escuro. A unidade da felicidade era a dúzia, meu bem.

Na geografia da humanidade (aprendi depois nas aulas de História) a Prússia foi uma poderosa nação que ficava na costa sudeste do mar Báltico. Através dos séculos, foi um tal de invadir aqui e conquistar ali, num forrobodó complicado que deu origem à Alemanha. Deixou de existir em 1932, ano em que meu pai nasceu.

Na geografia das cores, o verde-prússia se localiza ao norte da minha infância, na fronteira com o azul. Há, aliás, o azul-da-prússia, que ganhou esse nome por ser a cor dos uniformes do exército prussiano, e é deveras diferente do verde-prússia, que nunca descobri por que foi batizado assim. O assunto rende e geralmente causa polêmica nas conversas. Discutir azuis e verdes é mais ou menos como discutir geopolítica.

De vez em quando, alguém aparecia na sala de aula com caixa não de 24, mas 36 lápis de cor. Pura ostentação. A vida daquela pessoa deveria ser perfeita, pensava. Um quarto só para si, roupas novas sempre que quisesse, mãe em casa o dia inteiro, pêssego em calda de sobremesa no almoço e no jantar. A grama do vizinho é sempre mais verde-prússia.

Hoje, os lápis de cor não são mais tão caros. Ainda trazem o verde-prússia na paleta, sei porque reparo quando vou comprar o material escolar dos meus filhos. Eles não usam esse nome, é verdade. E tenho dúvida se saberiam apontar, no globo, onde ficava o reino de Guilherme II.

Lembrei dos meus desenhos de criança, os cadernos, os trabalhos ilustrados à mão. Não guardei nenhum. Sumiram do mapa, feito a Prússia. Que cor tem um lamento?

O maestro e o gato

siamês 1

Nos anos setenta, costumávamos ir à casa dos meus tios no bairro de Santa Cecília. Eles moravam (ainda moram) em um prédio na Alameda Barros, perto da avenida Angélica. Quando íamos visitá-los, eu gostava de cruzar o corredor e ir ao apartamento do vizinho, no mesmo andar. Eles tinham um gato.

Ali vivia o maestro Portinho. Minha tia falava dele com orgulho, dizia que era famoso e coisa e tal. Eu não estava nem um pouco interessada. Ia lá por causa do gato, mesmo. Bug era um siamês lindo, grandão, bonachão e vesgo. Passava um bom tempo brincando com ele, até minha tia me chamar de volta. Eu tinha seis, sete (oito?) anos.

Não era um apartamento comum. Três unidades, transformadas em uma só. Ficou um apartamentão. A decoração, coisa fina. Um piano, talvez? Vários sofás na sala – para mim, enorme. Sempre aboletado em um deles, o Bug. Eu, bem comportada, sentava-me ao seu lado e punha-me a afofá-lo. Lembro-me de alguém vir perguntar se eu queria um suco, uma água. Eu não queria nada. Só brincar com o grandão do Bug.

O maestro Portinho também era grandão. Muito alto, simpático. Se troquei três palavras com ele, foi muito. Não fazia ideia de quem eu estava diante. O dono do Bug foi um dos principais personagens da época dourada das big bands brasileiras, animando bailes e programas de rádio e TV. Produziu trilhas para novelas e, fora as obras que compôs, assinou arranjos para meio mundo. Cauby Peixoto, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Cely Campello, Vanusa, a turma inteira da Jovem Guarda. As gravadoras só queriam saber do dono do Bug.

Um dia, eis que o apartamento do maestro, no décimo sétimo andar, pega fogo. Meu primo conta que uma bituca de cigarro fora atirada do apartamento de cima e caiu justo onde? Na cortina de um dos quartos. O estrago foi grande. Suficiente para o Bug, sem ter como escapar, morrer asfixiado. Fiquei desolada com a notícia.

Logo arrumaram outro gato. O nome? Bug. Em homenagem ao antecessor. Também um siamês. Igualmente lindo, nem tão grande, nem tão bonachão. Vesgo, talvez? Fui conhecê-lo. Ele não me parecia tão dócil quanto o velho Bug. Influenciada pelo nome, esperava que ele fosse cópia integral do outro. Claro que não era. Então aprendi o que eu já desconfiava: gato não é tudo igual.

As visitas aos meus tios rarearam, não sei que fim levou o segundo Bug. Do maestro, sei: morreu em 1997. Seu legado para a música brasileira é imenso e valioso. Coisa linda, ser maestro. Uma pessoa que entende absolutamente tudo de música. Uma espécie de Deus do som. Gato também é uma espécie de Deus. Ou será que Deus é uma espécie de gato?

São quase dez da noite, estou me preparando para dormir. Sobre a cama, espio o Beto cochilando. É nosso siamês lindo, grandão, bonachão. Vesgo. Gosta de música, o bichano. Com ele que danço, de vez em quando (os outros detestam). Se é que esse negócio de reencarnação também vale para os bichos, gosto de fantasiar que o Beto é meu amigo Bug, do qual não pude me despedir. Pendência que ele tratou de resolver, aparecendo em nossa casa, numa tarde quente de fevereiro. Onze anos atrás.

Eu (não) uso óculos

Levei meu pai ao oftalmologista – “olhista”, como ele gosta de dizer. Aos oitenta e seis, a visão do Seu Tonico anda precária. Resiste aos óculos com receita, bom mesmo é o self-service da farmácia, com modelos prontos. Apanha na vitrine e vai testando, “Esse está ruim”, “Agora melhorou um pouquinho”, “Ah, esse está bom”. Leva ao caixa, paga e vai embora. Feliz da vida, enxergando vários palmos diante do nariz.

Quando eu tinha sete anos, usei óculos. Astigmatismo. Minha primeira grande provação, depois da botinha ortopédica. Não gostava da ideia, nem do modelo, tampouco do que via no espelho. Naquela época, a gente chamava oftalmologista de oculista. Só depois fui aprender: um é o médico que cuida dos olhos. Outro é a pessoa que faz os óculos. Não sei se nós confundíamos os dois, afinal oculista é mais fácil de pronunciar, ou se nossos óculos eram, de fato, prescritos e feitos pelo tal do oculista (o que nem pode). Só sei que fomos a uma ótica e saí de lá dividida: contente porque conseguiria ler a cartilha Caminho Suave numa boa, mas angustiada, antevendo os apelidos na escola.

O Banana, por conta das sardas, ganharia dos colegas um complemento fofo: Quatro-Olhos. Fiquei sendo Banana-Quatro-Olhos. Eles achavam aquilo engraçado. Eu não via, nem com óculos, graça alguma.

Dia desses, postei nas redes sociais um achado: minha foto do primeiro ano, com os ditos cujos. Rendeu imediata comparação com a Chiquinha, do Chaves. É preciso admitir que a semelhança procede. Infelizmente, no dia da fotografia não havia ninguém para dar uma ajeitadinha em mim antes do clique, nem uma penteada de leve nos cabelos. Resultado: o mal ajambramento e os malditos óculos eternizaram-se. Na época, rabisquei, de propósito, a fotografia. Inventei-me dentes e flor na camisa. Customizei a infelicidade, dando-lhe ares bufônicos para, talvez, sobreviver à desgraça.

O astigmatismo cedo foi embora, aposentei por conta própria os óculos. Adulta, fui brindada com leve miopia. Quando me perguntam se uso óculos, digo que não. Em seguida, lembro que sim – os de sol têm pouco mais de meio grau, iguais aos que ficam na bolsa, para o caso de uma rodovia à noite. Deve ser uma espécie de negação.

Há algum tempo, Nina cismou que queria usar óculos. Sem indicação para tal, quase me convenceu a mandar fazer uns sem grau, como se fosse um acessório, uma tiara. Diante das consecutivas negativas, fez birra, chorou, ficou infeliz. Lembrei de mim, sofrendo justamente pelo contrário: ter que usar o trambolho. Das inúmeras vezes que os “esqueci” sob a carteira, na sala de aula. Do sumiço que dei na peça, quando concluí que não precisava mais deles. Cada um com seu drama. No final, tudo depende de como você vê as coisas.

Hoje, quando olho a fatídica foto do primeiro ano, rio e tenho vontade de abraçar a menininha que fui. E, parafraseando a raposinha d’O Pequeno Príncipe, diria ao pé do meu ouvido: “Sabia que só se vê bem com o coração, e que você fica linda de óculos?”.

silmara gallicho 1o ano 1974

O nome da minha mãe

Ilustração: Juliana Cassab

De criança, eu não achava o nome da minha mãe bonito. Angelina. Achava-o levemente feio, sonoramente estranho. O problema, acredito, era o ina, que lembrava aspirina, vaselina, gelatina.

Certo dia, na escola, um menino perguntou o nome dela. Com vergonha, inventei, “É Angela”. Senti-me mal com aquilo, então emendei: “Mas todo mundo chama de Angelina”. Como se, sendo apelido e espécie de diminutivo, a coisa amenizasse.

Angela era bem mais lindo. Uma proparoxítona forte e, ao mesmo tempo, doce. O lance direto com o universo angelical. Além disso, tinha a Angela Maria, baita cantora. A Angela Ro Ro. Não havia naquela época, que eu soubesse, nenhuma Angelina importante ou famosa. Personagem da História, atriz de novela, nada. A Angelina Jolie era apenas uma bebê beiçuda.

Jamais contei o episódio da escola para minha mãe. Talvez ela achasse graça, talvez não. Para que correr o risco? Ela se foi há tanto tempo. E esta é a primeira vez que escrevo sobre. Se existe a internet dos mundos e a conexão for boa, ela vai ler. Talvez ache graça, talvez não. Agora eu corro, confiante, o risco.

Levou tempo para eu simpatizar com o nome. No colégio, já não lhe inventava nomes. O som, An-ge-li-na, começou, inclusive, a me agradar. Gosto é gosto, e ele muda. Passei a apreciá-lo. Tanto que o incluí na lista de nomes para minha filha. “Que tal Angelina, pra homenagear a avó?”, propus, no quinto mês de gravidez. Não houve adesão. Não que achassem feio. Acabei – coisas da vida – sugerindo Nina. Que ganhou. Então, “ina” não consistia mais em problema? Eu, definitivamente, estava em paz com o nome dela. E, de algum modo, sei que ela sabia. Na vila dos anjos também se comemora o Dia das Mães?

Pudesse, reencontraria o garoto da escola e explicaria tudo.

Sianinha

sianinha

A amiga comentou, quase en passant: no texto digitado aparecera a “sianinha” embaixo de uma palavra. O risquinho vermelho, sinalizando que a grafia estava incorreta. Mão na roda para escritores distraídos ou erráticos.

Parece uma sianinha, mesmo. Aquele fitilho ondulado usado nas costuras. Achei delicado, o apelido.

Minha mãe costurava. Cresci em meio a coisas enfeitadas com sianinhas de todas as cores. Algumas tão fininhas. Toalhas, roupas, lençóis, aventais. Além de alerta para imprecisões da língua, a sianinha ortográfica acabou cumprindo outro papel: ativadora de memórias.

Fui parar na sala da nossa velha casa, sentei-me no sofá de courvin marrom, o LP da novela Selva de Pedra (primeira versão) na vitrola. Minha avó lavando roupa no tanque, meu avô encerando a casa na enceradeira tão grande que sentávamos em cima dela e íamos junto, minha mãe ora na cozinha, ora em seus tricôs, crochês, costuras. Tão caprichosa, sempre.

Havia um bazar de aviamentos no quarteirão. Era a garagem de um sobradinho geminado, transformada em loja. Sempre íamos, minha irmã e eu, buscar alguma coisa que ela pedia. Até hoje gosto dessas lojas, quero comprar tudo e fazer tudo. Nunca compro nada e nunca faço nada. Sou só uma teoria descosturada.

Enquanto escrevo, várias sianinhas aparecem. O corretor não reconheceu a palavra courvin. É courvin mesmo, meu bem.

Corretor ortográfico é uma espécie de professor. Lembrei da Maria Olívia, minha professora no primeiro e segundo ano. Com delicadeza, ela sublinhava a lição – sem fazer sinhaninha – com caneta vermelha, ensinando que jiboia era com jota e não com gê. Anos depois, batizei uma gatinha com seu nome. Seria bonito dizer que foi em sua homenagem, mas não foi. Por gosto, mesmo. Maria Olívia, a gata, fora abandonada pela mãe, que dera cria no carro do vizinho. Um dia cheguei em casa e ela havia ido embora, levando todos os filhotes, menos ela. Era a mais fraquinha, sempre doente. Gostaria de reencontrar Maria Olívia, a professora. Maria Olívia gata também, se esse negócio de reencarnação também valer para os bichos.

Eu gostava de brincar com as linhas, agulhas, rendas, botões e sianinhas da minha mãe. Dona Angelina sempre deixava. Não havia nada que ela não nos deixasse brincar, aliás. Observava a arquitetura das minicurvas da sianinha, pareciam cabelo anelado de boneca. Ficava imaginando como é que faziam aquilo tão perfeitamente.

(O calçadão de Copacabana, repare, é uma sianinha gigante.)

A amiga que falei se chama Iana. Rima com quê? Siana. Que nem sei se existe, talvez sianinha seja palavra nascida no diminutivo. Igual carinho. Só sei que a vida não dá ponto sem nó.

Vou revisar este texto e ver se tem outras sianinhas para corrigir (ou não). Quem sabe eu me recorde de mais alguma coisa no meio do caminho. Quando escrevo, não uso apenas um editor de texto. Uso um editor de lembranças também.

Se as sianinhas enfeitam os panos, as memórias enfeitam toda a existência.

Para Iana Ferreira

Gorda

comida

Quando minha avó soube que tinha diabetes, Doutor Fuad foi logo avisando: ela teria que mudar a alimentação. Algumas coisas ficariam de fora do seu cardápio, para sempre.

E ela passou a comer a mesma comida todos os dias. Arroz sem tempero com carne cozida idem, pão sem glúten – ela falava “glúti” – com Becel, laranja de sobremesa. Não sei se levou a sério demais as orientações, se entendeu tudo errado, ou os dois juntos. Com raríssimas exceções, e sempre seguindo o mesmo modo-sem-graça de fazer, de segunda a segunda, incluindo feriados, lá estava a mesma gororoba no prato da dona Josephina.

Cresci achando que diabéticos só podiam comer aquilo. Que droga de vida, pensava. Ficava penalizada ao ver minha avó recusar um biscoitinho, um quitute diferente, ainda que sem açúcar. “Não posso”, sentenciava.

Então a Rô, minha melhor amiga, aos quinze anos, teve diabetes. E agora, o que seria dela?, lamentei. Só poderia comer arroz, carne cozida, pão sem glúten com Becel e laranja o resto da vida.

Um dia, fui à sua casa e ela estava almoçando. Tomei um susto quando vi seu prato. Que variedade de cores, sabores, texturas, cheiros. Depois, vi que o café da manhã e o jantar também eram assim. Os pais dela estavam doidos, deduzi.

Não estavam.

Fora minha avó, e mais ninguém, que decretara que sua comida, a partir do diagnóstico, seria a mais insossa possível. Falta de criatividade ou equivocada resignação? Sim, há diabetes e diabetes. Mas nunca conheci um diabético que seguisse dieta tão miserável quanto a da minha avó. Não precisava ter sido assim.

Confesso que já fiz, e ainda faço, muita dieta. Só que de ideias. Vou cozinhando verdades únicas, servindo-me de pensamentos estreitos e acabo me satisfazendo com um caldo ralo de vida. Adoeço.

Faço terapia. Psicólogo é uma espécie de nutricionista. Agora ando incluindo mais opções no meu cardápio mental. Tenho comido ideias novas, bem temperadinhas.

Quero ser gorda. Gorda de mundo.

Mortadela

O dindim para o lanche da escola tinha destino certo: sanduíche de mortadela e guaraná Caçulinha para acompanhar. Na minha tabela nutricional particular, não havia culpa, nem preocupação. Só alegria saturada.

A receita: pãozinho cortado ao meio, duas fatias – para justificar o preço camarada – de mortadela. Frio ou na chapa, dependendo do dia. Da escola, é a minha lembrança nota dez.

A mortadela divide opiniões gastronômicas e sanitárias. Posso afirmar, no entanto, que o sanduba de mortadela da cantina foi a síntese condimentada da primeira fase de minha vida escolar. Deveria constar em meu histórico acadêmico, ao lado das notas de geografia e matemática. Apesar de não botar a iguaria na boca há décadas, é dele que me lembro mais, tanto tempo depois. Das matérias, nem tanto. Quer dizer, nunca esqueci o que são, num verbo, radical e desinência. Achava linda essa palavra, desinência.

Vanderlei e Marli. O casal simpatia que tocava a cantina da escola, seu ganha-pão-francês. Como a dupla conseguia atender todos no breve recreio, era um mistério. Dava o sinal e um enxame de crianças famintas se aboletava no pequeno balcão. Que mané fila única, o quê. Éramos alunos selvagemente civilizados. Ou civilizadamente selvagens. Se eu fechar os olhos, posso vê-los na minha frente, entregando o troco que eu nem conferia e enfiava nos bolsos do avental branco.

(Parêntesis: espécie de jaleco, o avental era a alternativa prática e detestável ao tradicional uniforme. Ia-se com qualquer roupa por baixo. Charme zero, tornando impossível desfilar a Levi’s ou a US Top novinha em folha. O meu vivia rabiscado de caneta e encardido, o chão era uma extensão natural dos bancos. No fim do ano, os colegas o assinavam, como lembrança para a eternidade. A eternidade dos meus não durava muito e logo eles iam para o lixo.)

A distância entre os hábitos alimentares de uma geração e outra é quase abissal. Ninguém se preocupava com glúten, lactose. Teor de sódio e prazo de validade não passavam pela nossa cabeça. E sobrevivemos. Mudamos muito no quesito comida. Recebo reclamações constantes dos meus filhos, por não fazer batata frita. Belchior estava enganado: não somos e nem vivemos como nossos pais.

Quando terminei o ginásio e precisei me mudar de escola, foi do sanduíche de mortadela que mais senti falta. Na nova não tinha. Eram as frustrações da vida se apresentando, fatia por fatia.

Nunca mais entrei na velha escola. Os amigos daquela época, nunca mais encontrei. O Vanderlei e a Marli? Nunca mais os vi.

Parece que toda saudade vem com um “nunca mais” dentro.

Bengala

bengala

Não se comprava pãozinho. Em casa, só bengala. Precisei explicar aos meninos do que se trata, porque hoje se fala baguete. “Mas bengala não é aquilo que os velhinhos usam?” Não, meus queridos. Bengala era o pão comunitário, que dava para todos. E a da minha infância era generosa, com jeitão de mãe que alimenta o mundo inteiro. Não era magrela, feito as francesas.

A padaria ficava na rua de cima. Eu gostava de ir com minha irmã. A calçada não era lá essas coisas. Então, invariavelmente, eu levava algum tombo. Chegava em casa ou chorando, ou de joelho ralado, ou no colo da minha irmã. Às vezes, as três coisas juntas.

Lembro do meu avô chegando em casa com a bengala, parcialmente embrulhada, embaixo do braço. E era a coisa mais normal. Vê lá se hoje alguém põe uma baguete no sovaco e fica por isso mesmo.

Quando foi que demitimos a bengala do cardápio brasileiro e contratamos a estrangeira baguete? A bengala é patrimônio da panificação nacional. Deveria estar na base da pirâmide alimentar. É pão amassado por Deus. O Pai Nosso merecia, aliás, revisão: a bengala nossa de cada dia nos dai hoje. Bengala é cult.

Quando o assunto aparece nas rodinhas, tem sempre um doido varrido que resolve discorrer sobre as diferenças entre bengala e baguete: o formato, a textura, a casca, a receita, as origens. Tudo para explicar o inexplicável.

Da bengala, tinha quem gostasse do bico. E havia também quem insistisse na infame piada-rima: pra ficar rico. Sempre deixei o bico para os outros. Vivo a consequência.

Quando eu era criança, a gente fazia pão de frigideira. Consistia em fatias da bengala com manteiga dos dois lados, levadas ao fogo até ficarem douradinhas. Outro dia, no mercado, pedi: “Quero uma bengala”. E a mocinha, fingindo confirmar: “A baguete?. Não dei o braço a torcer: “Isso, a bengala”. Quando a gente é cinquentona fica, geralmente, ranzinza. Cheguei em casa e fui tentar reviver a iguaria. Busquei na memória a largura exata da fatia, tentei reproduzir a quantidade da manteiga, apanhei a panela mais parecida com a da minha mãe, calculei a altura da chama, o tempo. Evidentemente, não ficou a mesma coisa. Praga da mocinha lá.

A corda

pular corda
arte: Charlotte Voake

Um dia, ganhei do meu avô uma corda de pular. Não dessas de brinquedo, comuns. Corda de verdade, de amarrar carga em caminhão. Corda raiz. Seu Paschoal a comprara na casa de materiais de construção. Compridona, cinco metros. Eu a levava para a escola, enrolada dentro de uma sacola. E a brincadeira na hora do recreio estava garantida. Ninguém tinha igual. Cinco metros, meu bem.

Eu era boa em pular corda. Uma amiga em cada ponta, iam batendo bem devagar e aumentando a velocidade. A modalidade mais rápida se chamava foguinho, e não era para qualquer um – nem para quem pulava, nem para quem batia. Aprendi a entrar e sair com a corda em movimento, pensa que é fácil? Requer tanto cálculo quanto matemática, só que de outro tipo. Em matemática eu não era boa, não. Mas dava meus pulinhos.

E aquela corda virou unidade de medida, minha referência para tudo. Se eu queria calcular tamanho ou distância, bastava pensar nela. O Corcel do meu pai? Uma corda de comprimento. Da sala até a cozinha? Uma corda e meia. O pinheiro da vila, plantado por meu avô quando o primeiro neto, meu irmão, entrou na faculdade? Ficou com duas cordas de altura, antes de ser cruelmente abatido. Depois era só converter em metros, a unidade padrão aceita mundialmente pelos homens sérios que não entendem nada de pular corda, nem de árvores.

Aliás, ainda se pula corda? As crianças aqui do pedaço, não. Meus filhos nem têm uma – falha nossa. Dá tristeza pensar que, um dia, isso se torne coisa do passado. Feito latim, a língua morta. A gente sabe que existe, topa com ela de vez em quando, mas não usa para nada. O que foi feito do passa-anel, da uma-na-mula, do telefone-sem-fio, da cabra-cega, do corre-cotia, da amarelinha, do esconde-esconde? Sumiram dos páteos das escolas, das ruas, são brincadeiras mortas. A vida seria mais interessante se as brincadeiras legais de ontem andassem juntas às brincadeiras legais de hoje. Pois cabem todas numa infância. Ou, quem sabe, isso é papo furado de quem já passou dos cinquenta, de gente que ainda fala papo furado. E sobre isso eu poderia falar horas. É só me dar corda.

Ontem me peguei tentando calcular uma distância no meu quintal. Recorri, sem perceber, à velha corda. Lembrei do Vô Paschoal que, se ainda vivesse neste planeta, faria 110 anos. Tentei medir o tamanho da súbita (quase doída) saudade que me deu dele. Não houve corda suficiente.

Besourada

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— O que você fez no Carnaval?

— Desvirei besouros.

No sítio, à noitinha, a varanda vira um besouródromo. Como não têm um bom plano de voo, esses bichinhos errantes se lançam no ar como dá. E, às vezes, não dá. Esborracham-se nas paredes, nas janelas venezianas. Não é fácil ter exoesqueleto.

Quando vou ver estão no chão, as perninhas pro ar. Feito baratas – certamente há parentesco entre eles – tontas. Debatem-se à espera do milagre. Alguns alcançam a graça da desviração. Outros, não.

Compadecida, entro em cena. Com um galhinho do pé de romã, vou desvirando um por um. Aconselho-os a não voarem próximo às paredes. Eles não me ouvem, sequer agradecem. Onde ficam os ouvidos do besouro?

Na escola, li O Escaravelho do Diabo. Por obrigação, ia ter prova. Esqueci o enredo, mas sei que não tem samba. Recorro ao Google. Enquanto desviro mais um, dos grandes, sinto o arrepio que vai de ponta a ponta do meu endoesqueleto: será que também morrerei amanhã com uma espada cravada no coração? As vítimas do assassino em série, na história, recebem uma misteriosa correspondência contendo um besouro. São ruivas e sardentas. Sardenta eu sou. Os cabelos deram uma desbotada depois que tingi. Estou salva? Se o assassino for exigente e só escolher legítimos vermelhos, sim.

Na primeira noite, desvirei uns dez. Manhã seguinte, tristeza: muitos chegaram depois que fui dormir e, quedados, não conseguiram se desvirar. Consumidos pelo cansaço, os foliões alados pereceram antes do raiar do dia. À noite, lá estavam outros desfilando seu voo incerto pela varanda, vários já de pernas pro ar. Pacientemente, fui desvirando todos. Na verdade, estou interferindo na seleção natural, desequilibrando o sistema, causando uma besourada. Que bicho tem coragem de comer um besouro? Só os de mandíbulas (e garganta) corajosas.

Vendo os besouros, lembrei dos nossos Fuscas. Meu pai teve dois, quando eu era criança. Um cor de pérola, chegamos a farofar em Santos várias vezes com ele. Inexplicavelmente, recordo sua placa: BG-7542. Informação sem qualquer serventia. O outro era azul, transformado em táxi. Seu Tonico trabalhou durante anos, como se dizia, “na praça”. Esse não tinha o banco direito da frente, e para fechar a porta quando o passageiro entrava havia uma cordinha que ia do freio de mão até o puxador da porta. Eu gostava da cordinha. Por vezes fiz escândalo, queria ir junto nas corridas. Ele e minha mãe explicavam que não podia, onde já se viu, o que os passageiros iriam pensar. Isso se algum passageiro fizesse sinal, pois logo veriam uma cabecinha atrás e concluiriam que o carro estava ocupado. Eu prometia ficar bem abaixadinha. Quando se é criança, nada é impossível. Besouros são, do ponto de vista aerodinâmico, bichos impossíveis.

E quando me perguntam o que fiz no Carnaval, digo, basicamente, que desvirei besouros. O Bloco dos Encouraçados Voadores só saía à noite. Eu ficava de prontidão com o galhinho de romã, sentindo-me a rainha da bateria dos coleópteros.

Cada um com sua fantasia.

Reveiôn

foto: Simone Huck

Contabilizo, com o que inicia nas próximas horas, meu 51º ano novo. Sou dona, portanto, de cinco décadas de anos velhos.

Anos passados merecem respeito. Lembra? “Respeite os mais velhos”. Apesar disso, nem sempre cuidamos bem dos nossos velhos. E eles têm muito a ensinar. Ano velho também dá no couro, tem gás, pode ser útil. Não precisa se aposentar e ficar o dia inteiro de pijama (embora ficar o dia inteiro de pijama seja a quinta-essência). O fato é que ano velho não merece o adeus da velha canção, em contraponto à (incerta) felicidade do que está por vir.

O reveiôn a gente passava em casa, tinha comida especial e roupa bonita. Alguém estourava o champanhe barato e o ano novo estava oficialmente inaugurado. Depois da meia noite, os amigos da minha irmã, mais velha que eu, passavam em casa, para de lá irem às casas de outros amigos, formando uma comitiva em homenagem ao ano estreante. Se o Natal era em família, Ano-Novo deveria ser entre amigos. Eu não via a hora de ser grande para fazer o mesmo. Cresci e isso não aconteceu. As vontades mudaram, os amigos envelheceram. Alguns morreram novos, permanecendo assim nas lembranças. A morte congela a idade. Quem morre jovem se divorcia do tempo e não envelhece nunca.

Confundia-me ao escrever Réveillon. Errava o lugar do acento, dobra o L ou não? Certeza, só a de que mais cinco meses e seria meu aniversário. Aniversário é o ano novo da gente.

Aprendi depois que réveillon é uma palavra francesa, derivada do verbo réveiller, que significa despertar, acordar, no sentido simbólico. O que não deixa de ser interessante; no réveillon a gente não tem hora para dormir.

Tem gente que desfila, com pompa e orgulho, sua galeria de anos velhos pelas fotografias da estante. Há quem os coloque no asilo da memória. E só os visite – que ironia – uma vez por ano. Ou nem isso.

O reveiôn da minha infância não se parece em nada com o Réveillon da minha adultice, exceto pela similaridade calendárica. Aquele, sem L e sem sotaque estrangeiro, perdeu-se em algum ano velho e eu não consigo mais encontrar.

A gente tem saudade de ano velho, não de ano novo. Ano velho é porto seguro. É colo familiar, cheiro sabido, música conhecida. Ano novo é incógnita, palpite, candidato a ser feliz.

Com quantos anos velhos se faz um ano novo?

O amolador

foto: arquivo pessoal

Ontem vi o amolador de facas. Daqueles que andam com suas bicicletinhas pelas ruas.

Poderia jurar que eles não existiam mais. Que estavam extintos, feito o rinoceronte negro. Que haviam sucumbido à obsolescência programada, “Compre facas novas!”. Que tinham, enfim, ficado na Mooca da minha infância.

Como o que de tempos em tempos adentrava a vila pedalando sua bicicleta mágica, tocando a inconfundível melodia na flauta pan, avisando as freguesas que ele estava no pedaço. Meu avô, às vezes minha avó, atentos às mensagens sonoras do bairro, desciam as escadas trazendo os utensílios que precisavam de um trato. Uma faca embotada, alguma tesoura cega, um alicate de unha. Então a bicicleta, tal um Transformer, virava a geringonça de afiar. As rodas ficavam suspensas numa espécie de cavalete e, ao pedalar em falso, o esmeril girava. O ritmo era importantíssimo: nada de corrida, que aquilo não era aula de spinning. Devagar, ele ia pedalando e afiando, afiando e pedalando, parando de vez em quando para conferir se já estava bom. Eu achava engraçado o nome da profissão, “amolador”. Amolar, para mim, era incomodar. Tinha um garoto na escola que me amolava. Puxava meu cabelo, inventava apelido. Ninguém sabia onde o amolador das facas morava, nem mesmo seu nome. A gente só sabia que ele aparecia de vez em quando. Um senhorzinho acima de qualquer suspeita. Deveria ser o avô querido de alguém, um tio zeloso, um pai de família. Pode ser também que não tivesse ninguém e vivesse sozinho. Sabia que o rinoceronte é um dos animais mais solitários do mundo?

A freguesa apareceu no portão. Ela traz a faca de cortar bife. Ele examina o fio, faz muxoxo. É, não está boa, não. Hora de o Transformer entrar em ação. Pena, cheguei tarde; não sei se ele anunciou sua chegada no quarteirão, como fazia o amolador do meu passado. Que não incomodava ninguém.

Na minha rua não passa afiador. Nem de faca, nem de alicate, nem de tesoura. Nunca mandei, aliás, afiar minhas facas. Existe amolador de alegria? A minha bem que anda precisando. Às vezes, sinto-me como o amolador: pedalo, pedalo, e não saio do lugar.

A freguesa avalia o resultado, faz sinal de aprovação com a cabeça. De longe, ela se parece com minha avó. Minha avó tinha facas bem afiadas. Língua também.

E eu pensando que os amoladores ambulantes haviam ficado na Mooca da minha infância. Vai ver, o de ontem é um deles. Veio pedalando, no tempo e no espaço. Levou quarenta anos. Finalmente chegou.

Lição de empatia

cesto lixo

Depois da aula, eu e uns amigos tivemos a brilhante, a estupenda, a fabulosa – só que não – ideia de virar o cesto de lixo que ficava na sala de aula, dentro da sala. Por que, nunca soube. Quando se tem nove anos, nem tudo carece fazer sentido.

Só que a mãe da Gislaine era faxineira na nossa escola.

Ela, claro, não participou da brincadeira sem graça. Quando viu aquilo, sentiu um misto de tristeza e raiva: “Poxa, gente. É a minha mãe que vai ter que limpar isso, vocês sabiam?”.

Gislaine usava óculos grossos, meio “fundo de garrafa”, como se dizia. Gostava dela. Quando chamou nossa atenção, fiquei desenxabida. A ideia não era chatear a sua mãe. Então, pensei grande: uma coisa era ela recolher o lixo naturalmente produzido nas salas, aquele que se acumula no final do período, papéis amassados, rascunhos de lição, restos de lápis apontados. Era o trabalho dela. Outra coisa, completamente diferente, era recolher um lixo intencional, jogado ali de propósito, quase na maldade (ainda que não fôssemos maus).

Mais tarde, pensei maior: a gente não deveria ter feito aquilo. Não porque se tratava de alguém com uma espécie de vínculo conosco que limparia a sujeirada. Uma pessoa teria que fazê-lo. E eu não gostaria de estar no lugar da mãe da minha amiga, ou de quem quer que fosse encarregado da tarefa.

Empatia também se aprende na escola. E nem precisa de livro.

Saudade da Gislaine.

Manhatã

manhattan

Passei horas vendo fotos antigas dos meninos. Ele e ela são novos, mas já têm fotos antigas. O tempo é democrático.

Para além dos penteados que há muito eles não usam, reparei bem nas suas roupas. Ativada pelas imagens, lembrei-me de todas, todinhas. Vestidos, bermudas, camisetas, casacos, gorros que viraram apenas registro fotográfico e memorial. É a desvantagem do ser crescente – as roupas se vão, sempre – , contrapondo à vantagem do ser crescido: mantenho comigo algumas peças de quase vinte anos atrás.

Na lembração, abri o imenso armário da memória, revirei velhas gavetas da infância e me vi diante das minhas próprias roupas tamanho 10.

A camiseta com estampa de pequenos polvos, um clássico da Hering. A bata de lastex com alcinhas que amarravam no ombro. Outra bata, de algodão verde-água (usada na primeira vez que fui ao Teatro Municipal e me apaixonei pelo garoto loirinho que estava com seus pais no foyer, mas essa é outra história). O jeans US Top que raramente ia para o tanque, eu não queria que desbotasse. O vestido longo azul-marinho de micro-bolinhas brancas e alguns babados, comprado com sacrifício na loja da Rosinha e que esteve presente em vários casórios da família, até ficar curto.

Remexi mais alguns cabides imaginários e lá estava ela. Aquela camiseta. Tão simples, de malha. Regata? A inscrição na frente: Manhattan. Que eu ainda não sabia exatamente o que era. Eu a adorava, isso eu sei. A camiseta do Manhatã. Ma-nha-tan, e não Man-rá-tan. Se não estou delirando, ela tinha desenho de uns prédios e um macaco. King Kong?

Na brandura dos meus nove anos, não fazia questão de decifrar a ilustração. Também não me recordo de alguém ter ensinado, “Manhattan é um distrito de Nova York”. Isso não tinha a menor importância. Eu só gostava dela, assim, despretensiosamente. Talvez, pelo macaco. Jamais questionei o fato de levar no peito mensagem de coisa tão distante do meu mundo.

Adulta, visitei Manhattan, digo, Manhatã. Gostaria de poder narrar um fabuloso insight associando o passeio e a velha camiseta. Falhei miseravelmente. Na época, esqueci de me lembrar dela. Ela, que me acompanhou nos passeios, e também ficou em casa comigo em meus nada-fazeres. Ela, que quando ficou pequena ou puída demais, foi embora, como todas as outras. Ela, que não tenho um registro sequer. Ela, que permanece vestindo minhas memórias com sua doce trama de algodão e saudade.

Encerrei a sessão de fotografias recém-antigas. Meus filhos cresceram, em tamanho e em vida. As roupas que decoram os cliques foram, há tempos, agasalhar outras histórias. Mas continuam guardadas em nossos armários digitais. Até que as traças do esquecimento, impiedosas, as devorem.

O sapato cinza

salto alto

Desde sempre, Nina é doida por um certo par de sapatos meus. O cinza, de salto alto, largas tiras de camurça. Coisa de mulher, não de criança. Ela, de pequena, sonhava com o dia em que iria usá-los. Prometi que os guardaria, seriam dela quando crescesse. E, como os uso pouco, estariam conservados para a nova dona. Uma espécie de herança, de mulher para mulher.

Enquanto esperava o tempo fazer seu trabalho, ela brincou de desfilar com eles pela casa, tal aquelas cenas dos comerciais e anúncios de revista. Pezinhos número vinte e sete perdidos na imensidão do trinta e cinco, arrastando o sapatão para lá e para cá. Fazia pose, mirava no espelho sua silhueta torta, necessária ao equilíbrio anti-natural.

Embora não me recorde com precisão, devo ter brincado com os sapatos da minha mãe. Fingindo a mulher que nem brotara, em clássico exercício de feminilidade. Mas diverti-me muito, disso me lembro bem, com suas jóias e bijuterias. Dona Angelina, bastião do desapego, não ligava se íamos para o quintal com seu anel de rubi. Aliás, também não se importava de promovermos chás das bonecas com suas delicadas xícaras de porcelana. E minha vontade de ser mulher grande ia além: um dia, inventei de sair de casa usando Modess. Eu devia ter oito anos. Nos anos 70, não tinha esses absorventes fininhos, eficazes e ultradiscretos de hoje. O volume extra na calça não me pareceu muito confortável, voltei para casa e joguei fora. Sem contar as bolas de meia no sutiã surrupiado da irmã mais velha, inventando os peitos que ainda demorariam para aparecer. Eu não via a hora de, enfim, ser grande. Entendo a Nina.

– Você está guardando os sapatos pra mim, né mãe? – ela checava, de tempos em tempos. Sua alegria morava no meu sim.

Não por muito tempo, no entanto.

Grandona, Nina, aos dez, já calça dois números a mais que eu. Cedo, ainda, para o almejado sapato cinza. Partiu meu coração sua decepção, quando se deu conta. Por um tempo, ela continuou brincando com eles. Os dedinhos, espremidos, denunciavam o não-cabimento. Aos poucos, desistiu. Uma experiência importante a compor sua fundamental coleção de frustrações, rumo à maturidade.

Hoje, ela se contenta em elogiar quando eu os coloco – mesmo sabendo que eles jamais a acompanharão em seus passeios. São seus sapatos, sem nunca terem sido. Ela questiona por que não saio com eles todos os dias, afinal, tão bonitos. Logo eu, filha! Que, apesar de ter ido para a maternidade tê-la – e seu irmão – com plataformas altíssimas, para desespero da Dra. Clara, hoje fujo de todo salto que ultrapasse a medida de quatro dedos da mão.

Envelhecer é, entre outras sabedorias, não considerar mais um suprassumo usar Modess (ou qualquer de suas variantes), nem sutiã (ah, a liberdade que os peitos pequenos conferem), tampouco saltos que desafiam a gravidade e o bom senso.

Num futuro próximo, Nina terá seus próprios saltos. Seus próprios absorventes e sutiãs. Sua própria mulherice, enfim. E as lembranças das brincadeiras com o velho sapato cinza também ficarão pequenas. Mas continuarão a servir no coração – dela e meu.

O disco

vinil

A vizinha da casa 2 veio mostrar, toda feliz. Comprara o LP do Ruy Maurity, que tinha o hit Nem Ouro, Nem Prata. Nem de um, nem de outro; eram de chumbo os anos 70. Mas a gente não sabia disso.

Subimos correndo a escada de sua casa, pegada à nossa. Ela aumentou o volume no máximo que a vitrolinha ordinária permitia. O chiado da agulha. Em seguida, a batida:

Eu vi chover, eu vi relampear

Mas mesmo assim o céu estava azul

Sabíamos a letra de cor. A felicidade era feita de vinil, meu bem.

Eu tinha nove anos; ela, uns treze. Ficamos amigas assim que se mudaram, ela e a mãe, para a vila. Rosana, seu nome.

Ouvimos a faixa à exaustão, nem quisemos saber do resto. E sua mãe chegou. Costumeiramente simpática e sorridente, naquele dia ela escalou, visivelmente cansada, o lance de escadas. Cumprimentou-me. Rosana abaixou o volume, beijou-a. Achei que era hora de voltar para minha casa, ainda tinha lição para fazer.

Mal terminara de descer os degraus, a música parou. Ouvi tapas e gritos. A Rosana estava apanhando. Pelo tom da briga, entendi. Quem mandara comprar disco? Onde já se viu gastar, sem autorização, o ouro suado, a prata rara?

Desacelerei o passo, enrolando para chegar ao meu portão, a menos de cinco metros dali. O ouvido em pé, o coração apenado. Quis voltar lá, defender minha amiga. Mais gritos, mais tapas. Melhor não. Fechei rápido meu portão, subi as escadas e sumi quintal adentro.

Ontem a música, tão esquecida quanto minhas vizinhas, tocou na rádio. A lembrança surgiu num átimo, e ficou girando na minha cabeça feito disco riscado. Por onde elas andariam?

Nunca apanhei. Quer dizer, já tomei (ao menos) um grande tapa. E já tive que devolver uma coisa que comprara sem permissão. Nunca levei surra, no entanto. Nem quando desenhei com canetinha na parede da sala. Ou quando tomei todos os Yakults de uma vez e jurei que não tinha sido eu. As infrações da minha infância estavam sujeitas a um código penal bem mais camarada.

Não me recordo dos dias que se seguiram. Se fui procurar a Rosana para saber se estava tudo bem. Se sua mãe ficou brava por muito tempo. Se tornamos a ouvir o disco, pivô da sova. Tempos depois, elas se mudaram dali. A vida na casa 1, a nossa, era assistir vizinhos chegando, vizinhos partindo. E a gente ficando. Isso dá música.

Só sei que naquele dia choveu e relampeou feio na casa 2. Mas mesmo assim o céu na nossa pequena vila estava azul. Fui fazer minha lição. Que a Rosana havia, por torto método, aprendido a dela.

Que cor?

esmalte

Nunca antes na história deste país houve tanta cor de esmalte.

Na manicure moderninha os vidrinhos ficam expostos em prateleiras embutidas na parede. Organizados por cor, formam uma hipnotizante escala Pantone e causam-me palpitações. A felicidade tem secagem ultra-rápida, meu bem.

Mamãe quase não fazia as unhas. Além da grana curta para ir ao salão e da absoluta falta de tempo, o trabalho na venda não colaborava. Moer meio quilo de café, fatiar cem gramas de mortadela, pesar um quarto de feijão, lavar dúzias de copos do bar. Mãos que não paravam nem por um minuto. Pra quê enfeitá-las, se não durariam até os fregueses do dia seguinte?

Quando dava, dona Angelina gostava de usar um tal Zazá, espécie de lilás. Às vezes, ia de Misturinha, de tom vago, indefinido. Tudo clarinho, sempre. Nunca a vi com Rebu, o sanguinolento. Lembro da pequena vitrine sobre o balcão na farmácia do Archimedes, achava lindo aqueles vidrinhos todos enfileirados. Mas criança não pintava as unhas, tirante as brincadeiras.

Faço as minhas toda semana, no salão. Um exagero, de acordo com o marido. Incompetência para a automanicure, na minha avaliação. De vez em quando, levo meus próprios esmaltes, compulsivamente colecionados a cada ida à farmácia ou ao supermercado. Assim compenso, eu sei, os flertes proibidos da infância. Guardo-os em uma caixa, e me divirto escolhendo o tom da vez.

A gente deveria poder guardar as mães em vidrinhos, também.

Enquanto lixa minhas unhas, a manicure quer saber: “Que cor você vai passar?”. Como desta vez não trouxe nenhum do meu acervo particular, avalio o círculo cromático disponível e ensaio pedir um que se chama Café, de marrom fechado e profundo. Para relembrar as vezes em que minha mãe chegava em casa à noite, depois do trabalho. Ela me abraçava e eu sentia o cheiro das suas mãos, impregnadas de pó. E cansaço.

Mudo de ideia e, ajeitando minha mão direita sobre a toalhinha branca, anuncio: “Cor de saudade”.

Os sonhos envelhecem

sapatos

Meu sonho, na infância, não era ir à Disney com a Stella Barros.

Não que não gostasse do Mickey e sua turma; os gibis e desenhos que passavam na TV bastavam.

O sonho era comprar sapatos na Romão Magazine. Loja comum, popular, de bairro – mas só descobri isso muitos números de sapato depois. A Romão era a minha Louboutin. Ficava no 4974 da avenida Celso Garcia, no bairro do Tatuapé. Ou Belém, nunca soube exatamente onde começa um e termina o outro.

Nunca soube, também, por que nunca comprávamos sapatos lá. Jamais perguntei, é verdade. Tinha receio de deixar minha mãe chateada, a resposta poderia ser “É caro” – ainda que fosse loja comum, popular, de bairro. A incompreensão e a conformação também se confundiam na minha cabecinha. Nunca soube exatamente onde começava uma e terminava a outra.

Cheguei a ir à loja, acompanhando uma amiga prestes a ganhar sapatos novos. Era passeio de admiração, apenas. Como se as vitrines abrigassem obras de arte. E os sapatos fossem um tipo de obra aberta; eu até podia tocá-los e experimentá-los e andar com eles pelo tapetinho. Mas não podia levar nada para casa.

Nina cismou que quer uma roupa de uma tal loja. Achei tudo meio caro, desconversei, disse que ia pensar. Ela voltou ao assunto, outro dia. Será essa loja candidata a ser uma “Romão” da infância dela? Ter alguns pares de sonhos não-realizados, no final das contas, pode ser bom. Pedagógico. Boas memórias também são feitas deles.

E ser freguesa da Romão é não-memória, quimera antiga, não mais realizável. Ficou pequena. Primeiro, porque a loja não existe mais em seu endereço original, o que tiraria 99,9% da graça. Fica em um dos shoppings centers da região, entre os vários erguidos no pedaço enquanto meus pés cresciam e foram conhecer outros chãos. Segundo, porque hoje, depois de passear com o Google Street View pela velha Celso Garcia e ver o nada que sobrou da loja, resolvi entrar no site deles. Nenhum modelo, nem mesmo o logotipo representando o (para mim) lendário pezinho amarelo e preto, despertaram sequer uma fagulha do fascínio daqueles tempos.

Os sonhos envelhecem, sim. Preciso dar um jeito de dizer isso para aqueles mineiros.

De comidas e ausências

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“presença”, 2014 – Simone Huck

Tinha que ser nhoque de batata, naquele domingo. Igual ao que minha mãe fazia. Não haveria, porém, a menor graça em comprar pronto. Ir ao mercado, pegar pacotinho na prateleira refrigerada, código de barras, data de validade, informação nutricional, CPF na nota, obrigada, eu que agradeço, bom dia, pra você também, próximo. Nada disso.

Não cheguei a aprender a receita com dona Angelina, então tive que me virar com a internet. A internet também é uma mãe.

Tablet na bancada, ingredientes alinhados, linha de montagem planejada. Cadê a vasilha? Ih, não tenho. Quer dizer, tenho. Mas quando vou fazer alguma coisa maior, esparramo tudo. É vasilha boa, mas às vezes é pequena, apertada.

Na rua de baixo tem um mercadinho. Vendinha de bairro. Uma alternativa à complicação dos supermercados: não preciso descer até o G2, não pego tíquete de estacionamento e, portanto, não preciso validá-lo no caixa; não ando oito corredores para alcançar o que quero. Está certo que na vendinha só tem um tipo de manteiga, dois de xampu e três de macarrão. Mas tudo na vida tem um preço. E o do mercadinho costuma ser mais em conta.

Calcei os sapatos, fui e voltei com uma bacia verde de plástico. Grandona, espaçosa. A felicidade custa três reais e noventa, meu bem.

Chamei a Nina, ela queria ajudar a preparar a massa. Seguimos o passo a passo da receita, fantasiei secretamente que era minha mãe ensinando. E que ela estava encarapitada no armário, invisível, feito os anjos dos filmes, rindo do meu cabelo enfarinhado e admirando a neta que não conheceu.

Enquanto misturava os ingredientes reparei que, além de bacia, preciso de uma vida maior, também. A minha é boa, mas às vezes é pequena, apertada. Quando penso em fazer alguma coisa maior, esparramo tudo. Acabo reproduzindo apenas as velhas receitas de viver que nela cabem, ao mesmo tempo em que vou inventando desculpas para não arrumar logo uma vasilha-vida maior.

Saquei o macete da massa – dona Angelina que soprou, lá do topo do armário –, que é não amassar demais, nem usar força. Não se sova massa de nhoque; não compreendo como isso não é ensinado no Fundamental. Caso contrário, sempre se precisará de mais e mais farinha, e a gororoba será incomível. O principal ingrediente de um bom nhoque, aprendi, não é batata. É delicadeza.

Fizemos as “cobrinhas” com a massa, como eu chamava quando era criança. Fomos cortando com a faca, igual minha mãe fazia, e enfarinhando os nhoques para não grudarem. Nina e eu comemos um montão, crus mesmo. Do mesmo jeito que eu comia quando tinha a idade dela. Senti-me numa reprise de um domingo qualquer da década de 70 na velha casa da Mooca, só que com outros personagens. Se a vida se repete, que seja na base do nhoque.

Ficou igualzinho ao da dona Angelina. Tão bom, que desconfio que ela veio acertar o ponto da massa, bem naquela hora que eu atendi o interfone e a Nina foi colocar um elástico nos longos cabelos castanhos.

Nhoque pronto, ajeitamos a mesa, as cadeiras e chamamos todos. Pena que ela não veio para almoçar com a gente. Ou veio.

Verde-água

sutiã

Noite de Natal. Foram todos dormir, menos eu. Fiquei na cama, admirando meu presente. Um sutiã de “menina moça”, como se dizia. Verde-água, a cor. Minha mãe achou que estava na hora e que eu ficaria feliz. Feliz eu fiquei, mas não era hora. Demorei a usá-lo. Não havia necessidade. E, ainda que houvesse, tinha a vergonha.

A adolescência é uma fase verde-água. Não é exatamente verde, mas também não é azul. Um meio termo confuso, que não deixa de ser bonito.

Fecho os olhos e quase posso vê-lo, aqui em minhas mãos. Miniatura dos sutiãs da minha mãe, tão maiores. Quando escolheu o meu modelo na loja, Dona Angelina não imaginava os dramas que viveria com os próprios peitos.

Na escola, eu observava as meninas de treze, mais velhas e iniciadas nas curvas e nos sutiãs. Fora da curva, eu só tinha retas. Pensava, “Quando eu tiver treze, então”. Os treze chegaram, as curvas não. Otimista, concluía: “É com quinze”. E assim os anos se passaram, tangenciando minha frustração. Aos poucos, eles se instalaram. Eu que não estava madura, antes. Estava verde. Verde-água?

Primeira boneca Suzy, primeiro par de botas, primeiro relógio. Tem presentes que ficam eternizados na lembrança. Embora não me recorde com precisão quando ganhei cada um. A gente deveria ter um memorial de datas importantes, válido para outras coisas, também. A primeira vez que comi nhoque, por exemplo. Ou o dia em que, criança, ainda, ouvi o disco do Renaissance e achei a voz da Annie Haslam a coisa mais linda deste mundo. Quando foi que um gato ronronou no meu colo pela primeira vez? E a primeira mordida de cachorro? O primeiro (blargh!) beijo. Queria as datas exatas, dia, mês e ano. Para quê, exatamente, não sei.

Depois que minha mãe operou, passou a usar um sutiã com bojo recheado de minúsculas sementinhas, para disfarçar a ausência de uma das mamas. Ela mesma o confeccionara, até que ficou bom. Anos depois, ela morreu. Se é verdade que o primeiro sutiã a gente não esquece, o último também não.

Que terá sido feito do meu, o verde-água? Um dia, ficou pequeno. Ou foi para o lixo ou habitar o armário  de outra garota, também estreante na adolescência. Num mundo redondo e circular, o tempo todo há algo começando.

Dia desses, olhei minha gaveta. Está na hora de renovar meus sutiãs. Ou aposentá-los de vez. Notei também que a Nina logo, logo vai usar. Quem sabe ela não ganha um bem bacana? Verde-água, para perpetuar a tradição que acabei de inventar. Próximo Natal, talvez.

Pra tirar o gosto

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O menino viu a colher do xarope, catou sua bola e tentou se teletransportar para Netuno. Havia tido aula sobre o sistema solar na semana passada. Não funcionou. Buscou, então, abrigo sob a mesa – pareceu-lhe mais próximo que o longínquo planeta. Acabou detectado pela Nave Mãe.

– Sai daí, Gustavo. Precisa. Senão, você não vai sarar.

Antevendo a gororoba espessa e intragável descendo-lhe pela goela, o garoto fez uma careta assustadora conforme, imaginou, faria um Netuniano. Revirou os olhos, emitiu sons ininteligíveis, bateu os pés. Nada, no entanto, foi o suficiente para se safar.

Com a mão direita a mãe, misto de monge budista (pela compaixão) e general (pela determinação e disciplina), levou a colher até a boca do garoto. Na esquerda, o prêmio.

– Depois come o brigadeiro, pra tirar o gosto.

“Pra tirar o gosto”. A estratégia – comer algo gostoso depois de engolir algo ruim – é uma forma de administrar o insuportável. Quem não sabe disso?

De pequena, minha irmã precisou tomar um remédio por muito tempo. Horrível, segundo ela. Mamãe, mais monge que general, lhe dava sempre um pedaço de banana para tirar o gosto. Sem direito a variações. Resultado: minha irmã não come banana até hoje. Desenvolveu asco irreversível da fruta, eternamente associada à triste experiência. É capaz de detectar vestígios dela a anos-luz de distância. Se houvesse banana em Netuno, minha irmã a farejaria daqui.

Repare: a gente sempre deseja a anulação dos padecimentos. Algo que nos tire o gosto ruim, embora eventualmente necessário, da boca. Ou do coração. Qual doce é capaz de neutralizar o azedo de uma despedida inevitável? Como engolir uma separação amarga que, no fim das contas, é a cura? E será que viver plenamente o sabor desagradável das coisas pode também fazer bem?

Não sei. Só sei que o Gustavo acabou tomando o xarope todo. Depois, devorou o brigadeiro e saiu quicando sua bola pelo quintal. Desistiu de Netuno, vai ficar por aqui mesmo. Lá não se joga futebol.

Piolho

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A aula mal havia começado e a diretora entrou na sala, anunciando: a professora iria olhar a cabeça de todo mundo. Piolho. A turma se remexeu nas carteiras, o burburinho começou. Congelei, a cabeça começou a coçar. E se eu estivesse com piolho? Seria denunciada, ali, na frente de trinta crianças?

A professora chamou um por um à sua mesa. Os minutos se transformando em horas. O sofrimento da espera era maior do que qualquer véspera de prova de matemática. Em pé, ela vistoriava as cabeças com ajuda de dois lápis, separando as melenas. E o nojo de colocar as mãos naquelas cabecinhas, sabe-se lá como eram cuidadas em casa?

Chamou a Angélica. Menina estudiosa, obediente, sempre tirava notas boas. Não tinha perfil de piolhenta. Naquele dia ela estava de banho recém-tomado, os cabelos ainda úmidos, cheirando a xampu. A professora, baseada no asseio evidente, nem prosseguiu com a inspeção e a liberou.

Minha vez. O coração pulsava forte no peito e reverberava na garganta, seca por completo; eu deveria estar vermelha como um tomate. Não era estudiosa feito a Angélica. A professora cutucou-me o couro cabeludo por completo. Mandou-me sentar. “Próximo!” – chamou. Salva, enfim.

Alguns anos depois, reclamei que a cabeça estava coçando. Mostrei à minha mãe: bingo.

Com os meninos a solução era simples: raspavam o cabelo e pronto. Mas eu tinha cabelos até a cintura, e eles eram inegociáveis. Livrar-me dos piolhos foi tarefa excruciante. Passei o dia sentada em uma cadeira no quintal, toalha nos ombros, os cabelos lambrecados de veneno fedido. Foi minha avó que, armada de pente-fino e paciência, deu início à catação, só concluída ao entardecer. A piolhada, zonza, caía sobre a toalha. Problema mesmo eram as lêndeas. Resistentes até a uma hecatombe. Era preciso puxá-las uma a uma dos fios, com as pontas dos dedos. A posterior dor de cabeça era inevitável. E eu fedi a veneno por um bom tempo.

Meus filhos pegaram piolho, uma vez. Como minha avó, bisavó deles, armei-me de pente-fino, paciência, amor e uma TV, e dispus-me à faxina capilar. Nada como três décadas de avanços tecnológicos: bastou usar neles um xampu, nem tão fedido. As lêndeas, no entanto, permanecem indestrutíveis e demandaram o método artesanal. Mas em vez da cadeira-castigo no quintal, eles assistiram desenho durante a operação. Tudo evolui.

A cada lêndea aniquilada eu lembrei dos meus piolhos do passado, e me senti primitivamente humana. Então a vida é isso. Somos os mesmos, desde sempre. Podemos ficar modernos, inventar a internet e carros que dirigem sozinhos. Cuidar uns dos outros – em ordem descendente – ainda é o ato mais ancestral de todos, justamente o que nos garante no planeta. Toda espécie bem sucedida passa pelo pente-fino do bom zelo. E não importa para onde o mundo caminhe. Sempre haverá uma mãe catando piolho nos seus filhos.

Crônica de minuto #60

engraxate

Uma vontade da infância: ter meus sapatos lustrados por um engraxate, na Praça d­­­­­­­­a Sé.

Ele me chamaria de chefia e, enquanto fumaria um cigarro, daria um trato nos meus pisantes. Eu folhearia o jornal. Pessoas importantes leem jornais e têm sapatos engraxados, pensava.

Nunca via, sentada nas cadeironas de madeira, uma mulher sendo atendida. Também nunca me perguntei por que. Cresci, ficou sendo uma espécie de vontade não-autorizada. Talvez eu não achasse aquilo adequado para mulheres. E a vontade, perdendo o lustro, feneceu.

Quantas vontades se sepultam, em nome da adequação? Quais, de fato, mereceriam esse fim?

Nunca mais passei pela Praça da Sé. Desconfio que não existam mais engraxates por lá. Sumiram, assim como somem as vontades desautorizadas.

Fiado

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Na minha rua tinha uma lojinha. Lojinha de bugigangas, bijuterias, tranqueiras em geral. Ficava entre minha casa e a escola, que era na esquina. A vendedora se chamava Jane. Moça de cabelos castanhos, lisos e compridos. Uma simpatia.

Quase sempre, na volta da escola, eu parava na lojinha da Jane para flertar com os anéis, as pulseiras, os colares, as presilhas. Universo colorido e cheio de charme para uma garota de seus oito ou nove anos. Ficamos amiguinhas. Trocávamos meia dúzia de palavras, eu me despedia e ia para casa com meus cadernos e livros e lancheira.

Um dia, Jane sugeriu que eu levasse o anel de pedrinha vermelha. Afinal, eu havia gostado tanto, não? Respondi que não podia, não levara dinheiro. A Jane, que além de simpática era esperta, ali, naquele dia e naquela hora, apresentou-me ao maravilhoso mundo do cartão de crédito. “Pode levar, depois você paga”.

Desci a rua feliz da vida, o acessório novo reluzindo no dedo. Praticamente um rubi raro.

A alegria não durou nada. Ao me ver radiante, dedo enfeitado, Sílvio, meu irmão mais velho, fazendo as vezes de pai, quis saber a origem. Contei.

Se a Jane me introduzira ao universo do fiado, agora o Sílvio pregava o sermão da educação financeira. Eu não podia sair por aí comprando as coisas, quem havia deixado? No “pendura”, ainda por cima.

Menos de cinco minutos depois eu estava na lojinha da Jane. “Vim devolver.”

“O Sílvio bem podia namorar a Jane, que é gatinha. Tudo ficaria bem e o anel, garantido” – pensei, enquanto assistia a Jane devolver o anel à vitrine. Voltei tristonha. Os cem metros que separavam a lojinha de casa foram os mais longos da minha infância. Acho que, quando abri o portão, eu já era dois anos mais velha.

Se você pensa que conto esta história para mostrar a importância de ensinar às crianças como lidar com o dinheiro, eu lamento. Errou de texto. Nem todo ensinamento dado a uma criança será, necessariamente, carregado pela vida. Uns sim, outros não; a linha que os separa é fina e frágil como as correntinhas ordinárias que a Jane vendia.

Conto porque comprei um anel, dia desses, e paguei no cartão de crédito. Afinal, eu havia gostado tanto, não? Compra por impulso, sem necessidade, facilitada pelo fiado moderno. Enquanto lia “processando” na maquininha, o espectro da Jane, com seus cabelos castanhos, lisos e compridos, surgiu do outro lado do balcão. Vi minha rua, a lojinha que deu lugar, depois, à tinturaria dos japoneses. Vi os meus cadernos e a velha escola. Saudade é uma fatura eternamente a ser paga.

Só não vi o anel de pedrinha vermelha, meu por breves minutos; perdeu-se no sumidouro da memória. Era bonito, ao menos? Talvez. Bonito mesmo era o cabelo da Jane.

Inquebrável

osso

Tem criança que sonha em ser super herói. Tem a que quer ir à Disney. A que deseja ter um macaco de estimação. Eu não queria nada disso. Queria quebrar o braço.

Quimera infantil, coisa besta de almejar. Achava lindo quebrar alguma parte do corpo, andar por aí de gesso, usar agulha de tricô para driblar a coceira, os amigos assinando naquela coisa que ia encardindo com o tempo.

Quis o destino, no entanto, que eu nunca quebrasse nada. Nem braço, nem perna, nem pé. Dedinho, que fosse. Nada. Fui uma criança inquebrável.

Inconformada com a minha resistência óssea, tratei de dar um jeito. “Você é do tamanho dos seus sonhos”, cunhariam os livros de autoajuda, décadas depois.

Assim que a aula terminou, fui sozinha até o Depósito São Pedro, loja de material de construção pertinho de casa, na Mooca. Pousando meus trocados sobre o balcão, anunciei: “Preciso de gesso”.

Voltei para casa com um quilo do material e refugiei-me no quintal. Só meus avós estavam em casa, cuidando de seus afazeres, e não desconfiaram da arte. Procedi com a mistura de pó e água. Escolhi o braço: esquerdo. Caprichei na modelagem, limpa daqui, ajeita dali. Em quinze minutos o sonho estava realizado: eu tinha um senhor gesso, que ia da mão ao cotovelo.

Quando me perguntassem o que havia acontecido, eu teria que inventar uma história dramática, que caíra da bicicleta, que rolara as escadas, que fora atropelada. Com a significativa vantagem (só eu saberia) de não ter sentido dor, nem de ter havido pânico, chororô, corre-corre ao pronto-socorro.

Improvisei a tipoia com uma atadura encontrada no armário do banheiro, ensaiei alguns gemidos e fiquei esperando o resto da família chegar. Já imaginava o dia seguinte, na escola, sucesso total. O braço esquerdo não fora escolhido à toa; assim eu conseguiria fazer as lições.

Foi quando o portão se abriu. Era minha mãe. Plantei-me na porta e encenei ligeiro drama. Ela, de longe e no susto, levou as mãos à cabeça, Meu Deus! À medida que subia as escadas, querendo saber que diabos eu aprontara, eu me enrolava na narrativa, e seu susto logo se desfez.

Em menos de um minuto eu fora pilhada na farsa. Mãe é mãe, claro. Mas meu trabalho na arte do gesso era, digamos, amador. Rimos. E precisei tirar aquela porcaria antes do jantar.

Hoje lembrei do Depósito São Pedro e da minha mãe. Os dois, há tempos, encerraram as atividades por aqui.

Eu sigo inquebrável. Assim como minhas memórias. Meus sonhos, hoje, são outros. E, pensando bem: eu já quis, sim, ter um macaco.

Para o Zé.

DNA

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Nem só de cor dos olhos ou formato de nariz vive uma herança genética. Há num DNA muito mais dos antepassados do que se pode, cientificamente, mapear.

Eu era criança (nove, dez anos?) quando ouvi no rádio sobre um concurso de redação. As melhores ganhariam um prêmio. Fiz a minha, caprichei na letra e na história. Mandei pelos Correios, direitinho. E esperei, confiante, meu nome ser anunciado no programa.

Semanas depois, chegou uma cartinha. Eu não ganhara o prêmio; minha redação era bonita, mas não tanto. Porém, havia um brinde, um prêmio de consolação para os participantes. Bastava retirar no endereço tal, tal dia. Pedi para meu avô me levar, era longe.

Lá fomos, de ônibus, buscar meu presente. Meu avô conhecia todas as ruas do mundo.

Chegando ao lugar, procura, procura, que número é mesmo? E eu repetia, afinal, havia decorado o endereço. No outro quarteirão, talvez? Às vezes, a numeração é quebrada. Nada. Foi quando meu avô resolveu perguntar:

– Mas não é rua Cachoeira?

– Não, vô. Rua João Cachoeira.

Uma fica na zona leste de São Paulo, no bairro Catumbi. A outra, zona sul, Itaim Bibi. Qualquer rima será apenas mera coincidência. Nem toda queda d’água vem com nome próprio.

Quando se deu conta de que estávamos no endereço errado, ele não escondeu a raiva, o desânimo, a preguiça, o ódio, a ira, a fúria, a cólera. Vô Paschoal, filho de italianos e torcedor do Palestra, bufou bonito. Bufada impaciente, os lábios apertados e os olhos revirados como quem buscava o céu e, ao mesmo tempo, mandava concurso, redação, prêmio e, eventualmente, eu ao inferno.

Da nossa casa, na Mooca, até o Catumbi deve ter levado bem quarenta minutos. Do Catumbi até o Itaim Bibi, no mínimo, mais uma hora. E ainda teríamos a volta. O dia do meu avô fora para o beleléu. Bufada, portanto, plenamente justificada.

Algumas conduções depois, e agora na cachoeira certa, achamos o local. Era uma loja de roupas. Meu avô nos identificou e em poucos minutos eu estava com meu prêmio de consolação em mãos. Um pequeno estojo escolar feito em jeans – a confecção era patrocinadora do concurso. Simples, o fecho era um botãozinho de pressão. Cabia meia dúzia de canetas. Lembro-me bem da etiqueta: Buzzy. Mas não tenho certeza dos dois zês. Voltamos para casa em silêncio, só quebrado por outras bufadas silenciosas que se seguiram durante o trajeto. E eu com meu novo estojinho no colo. Que foi usado por vários anos. Uma forma, talvez, de fazer valer a pena a trabalheira que meu avô tivera.

Lembrei da história porque, dia desses, as crianças aprontaram alguma – sem envolver logradouros, nem itinerários – e eu me flagrei bufando i-gual-zi-nho ao vô Paschoal. Eu, bisneta de italianos e torcedora de time nenhum, bufei bonito. Bufada impaciente, os lábios apertados e os olhos revirados como se buscasse o céu e, ao mesmo tempo, mandasse a cria ao inferno.

Vi, num lampejo, o velho rádio que ficava na cozinha, vi o estojinho ordinário de jeans com botãozinho de pressão, vi os ônibus, vi João, vi cachoeira, vi a decepção no rosto do meu avô. (Só não vi a redação; daria meu reino para poder lê-la, hoje.)

Se quando eu chegar ao céu, que é onde meu avô mora desde 4 de fevereiro de 2005, ele ainda quiser tirar essa história a limpo, serei irredutível: “Eu disse João Cachoeira, vô. Você que entendeu só Cachoeira”. Bufaremos juntos – e rindo, espero.

Porque nem só da cor dos olhos ou formato de nariz vive uma herança biológica. É também no código genético de um bufar, ou de uma saudade, que se reconhece os seus.

Sob controle. Ou não

Ganhei do ex-namorado. Uma máquina de escrever Underwood, garimpada num antiquário em Santana de Parnaíba. Era 1992, era sábado e tinha sol.

Eu nunca soube precisar sua data de nascimento. Uns batem o olho e atestam: anos 30. Outros  chutam, é cinquentinha. Minha intuição (mentira; pesquisei rapidamente no Google) diz que ela está no meio dos dois. É o presente mais cheio de passado que já recebi.

Ficou bom tempo encostada, sem lugar que a acolhesse. É grandalhona, pesa feito chumbo (embora eu nunca tenha pego em chumbo). Há pouco, resolvi colocá-la em exibição na sala de jantar. Desde então, não dá outra. Cada um que passa por ela – em especial, crianças que nunca viram uma – faz questão de testá-la como bem entende, tec tec tec tec tec tec. Falta-lhe certa lubrificação, então lá se vão as letras, ou tipos, encavalando.

Eu, como mãe zelosa-furiosa a controlar a apalpação excessiva de seu recém-nascido pelas visitas assanhadas, vivia barrando. “Não faz assim”, “Assim estraga”, “Não puxa desse jeito”, “Não fica girando o cilindro!” e outras ordens, cumpridas à revelia ou desobedecidas na cara dura.

Movida pela compaixão (nostalgia?), mostro (brevemente; não tenho tanta paciência) como funciona. Querem saber se era a minha, quando criança. Para quem nasceu neste século, qualquer coisa com mais de quinze anos é antiguidade. Então, tanto faz se eu usava uma Underwood dos anos 40 ou uma Olivetti dos anos 90. É tudo velharia, passado longínquo, matéria dos livros de história.

A própria época do namoro e do passeio à Santana de Parnaíba já é velharia, passado longínquo, matéria do meu livro particular de história.

Como não consigo frear a curiosidade dos pequenos (deveria, afinal?), uma decisão tomei. Não os detenho mais. Desisti. A Underwood permanece em exposição em seu altar (mentira; é sobre o bufê). As crianças seguem em suas investidas. Mas já não dou uma voadora em quem aperta o liberador e o carro dispara para a esquerda, pá, plim! Divirto-me, aliás; o pequeno infrator sempre toma um susto. Não ligo se brincam com os marginadores. Não reclamo mais se os tipos encavalam.

O exemplo é bobinho, mas o aprendizado tem valido para um bocado de coisa, digamos, não-bobinha. A gente é mais feliz quando para de querer controlar o incontrolável. Cansa menos. E isso é de uma obviedade, tão fundamental quanto oculta, impressionante.

Escreve (datilografa ou digita) o que estou dizendo.

Não vou de bike

Bicicletas de Parati/RJ, arquivo pessoal
Bicicletas de Parati/RJ, arquivo pessoal

Não tenho relação de amor com as bicicletas.

Elas não povoam minhas memórias com recordações do tipo “a primeira vez que andei sem rodinhas”. Nunca escrevi bilhetinho “Cadê minha Caloi?” para meus pais. Reajo com indiferença às campanhas que pedem ao cidadão para deixar o carro em casa e ir de bicicleta; não estão falando comigo.

Sei que, por conta disso, falta à minha formação humana um componente essencial. Não pedalo, logo, não existo.

Se até ETs andam de bicicleta e emocionam gerações, deve mesmo ser uma coisa muito legal. Pena que não descobrirei isso nesta vida. (Embora tenha chorado – e chore sempre – naquela cena do filme.)

Quando criança, tive um triciclo. Apesar de substantivo masculino, cismei que era menina e batizei-a de Crondiana, por razões que minha própria razão desconhece. Brinquei bastante com ela pela vila onde morávamos, grande o bastante (aos meus olhos infantis) para minhas supostas manobras radicais. Eu gostava, mas não amava. Não sei que fim levou Crondiana.

A paixão humana (quase uma obsessão) pelo icônico meio de transporte rende. É música (repare o tanto de letra falando de bicicleta), museu próprio, plataforma de governo em metrópoles mundo afora, estilo de gol. Estampa de camiseta nem se fala. Tem doido que viaja por uma dúzia de países só em cima da magrela. Tem doido que mata (ou morre) por causa de uma.

Depois da Crondiana, tive poucas bicicletas. Duas ou três. Nem nome ganharam, pereceram encostadas nos quintais. E, contrariando o dito popular, eu esqueci, sim, como se anda.

A verdade é: nunca aprendi a andar direito. Se Deus escreve certo por linhas tortas, quando o assunto é bicicleta eu ando torto até por linhas certas. Intermináveis aclives, aterrorizantes declives, trechos acidentados? Oh suplício. Nem vinte e uma marchas ajudam um corpo preguiçoso e, por natureza, sem talento para equilíbrio.

Saber andar de bicicleta – e fazê-lo regularmente – é o passe para a socialização em algumas tribos urbanas, que sequer aceitam analfabetos ciclísticos. Apenas ser a favor das ciclovias não basta. O não-adepto acaba excluído das conversas, dos passeios, sofre bullying.

É confessar que não pedalo, que não tenho “bike”, e logo se forma uma rodinha em torno de mim, a estranha. Determinados a investigar desde como foi minha infância até minha orientação política os algozes podem, em casos extremos, obrigar-me a demonstrar minhas inabilidades ali mesmo. Fugir – a pé, de carro ou ônibus – é a única solução.

Não vou de bike e zéfini.

A casa morta

fotos: arquivo pessoal

No último dia do ano passado fui lá.

Fui buscar a velha Lanofix. Fingi que ia só para isso. Mentira. Fui para ver a casa morta. A casa onde nasci e cresci. Fechada há sete anos, desde que o último de seus sete habitantes se mudou de lá. Três deles não precisam mais de casa: meu avô, minha avó, minha mãe. A tríade que, em parte, me justifica.

A casa número 1 da pequena vila na Mooca está à venda. Ninguém quer comprar. Pudera. Quem quer uma casa morta? Morreu de solidão, depois que todos nós saímos. O reboco de algumas paredes cedeu. Sua pintura está descascada. A casa morta não tem mais pele. Nem carne. É apenas um esqueleto sem ânima. Ossos sustentando, sem vontade, um punhado de coisas importantes, além da Lanofix, inexplicavelmente largadas para trás: o carrinho de mão do meu avô, a enceradeira tão grande que nós “passeávamos” nela em dia de faxina. Meu violão, comprado no Mappin em três prestações. Os santos, hoje carcomidos, no quarto dos meus avós. No chão da sala ainda está o antigo telefone, daqueles de tecla. Penso que ele pode tocar a qualquer momento. Não sei se eu o atenderia.

Lanofix era a máquina de tricô da minha mãe. Ela fazia roupas de bebê para vender. Até a ‘ajudei’, quando criança, arruinando uma encomenda inteira. Depois de grande, aprendi a usá-la direitinho e fiz várias roupas para mim. Acabou esquecida em um dos armários. E no último dia do ano passado foi dia de buscá-la. Visitar a casa vazia foi como exumar as lembranças e reencontrar meus fantasmas de lã.

Tive algum medo de entrar na velha casa desdentada, de puro osso. Medo de ver coisas esquisitas, gente flutuando. Dizia para mim mesma: “A Lanofix, Silmara. É só trazer a Lanofix e pronto”. Funcionou, pois não vi nada, nem ninguém. Todos os fantasmas haviam saído. Houve uma hora, no entanto – é preciso contar, ainda que ninguém acredite – , em que eu já estava fora da casa e uma porta rangeu lá dentro. Não ventava e as janelas estavam fechadas. Eram eles, voltando.

No quarteirão, antes feito de casas, agora se vê um monte de edifícios. Do meio da vila, que no passado já teve um jardim com limoeiro, seringueira e pé de mexerica, antes de dar espaço aos carros dos moradores das quatro casinhas geminadas, eu digo aos pálidos prédios erguidos ao redor: “Vocês não sabem de nada”. Não sabem que foi nessa casa, em 1957, que meus pais fizeram sua festa de casamento, no quintal. (Vejo as fotos e custo a crer que coube tanta gente ali. Hoje, nele, mal cabemos minhas memórias e eu.) Não sabem que foi no quarto da frente que meu irmão nasceu, dois anos depois. Não sabem que nessa vila organizei, numa tarde qualquer dos anos 70, a festa de batizado para nosso gato Tommy (que ganhou esse nome em homenagem ao musical – nada como ter irmãos roqueiros), e um bocado de gente compareceu. Não sabem, aliás, dos amados bichinhos de estimação, entre cães, gatos e passarinhos, enterrados nela (inclusive o Tommy). Não sabem que naquela casa ganhei meu primeiro sutiã, e que ali minha mãe chorou o seio tomado pelo câncer. Prédios bobos, não sabem nada de nada.

E eu não sei mais usar a Lanofix. Mesmo assim, a trouxe comigo para minha casa viva. Está abrigada em sua elegante caixa verde. Talvez eu consiga, na internet, o manual dela. Talvez a opere, na intuição, e consiga tricotar alguma roupa nela novamente. Talvez eu ligue os pontos que faltam na trama da minha história. Talvez.

Vergonha

Tenho vergonha de andar de trenzinho.

Veja bem: não de trem. De trenzinho. Aquele que toda cidade do interior que se preza tem. O veículo customizado que leva a criançada, pais e/ou responsáveis para passear, dar um rolê.

Para começo de conversa, não é trem. É ônibus. Adaptado e decorado com florzinhas, palhacinhos, bichinhos. Uns têm personagens vivos, Mônicas e Pernalongas para acompanhar e animar a turma. Dão a volta na cidade beeem devagar. Fazem até piuí.

(Eu sei: imitam trem porque trens são do imaginário infantil – e adulto – desde sempre, muito mais que ônibus. Que criança ganha de Natal ônibus que vem com ponto de parada, rodoviária? Foi para um trem, não para um ônibus, que Villa-Lobos compôs uma das músicas mais lindas deste mundo. Mineiro diz “trem” para representar qualquer coisa; vê lá se ele diz “ônibus” a torto e direito. Adoniran eternizou o quê, ônibus ou trem? Trem é fantasia pura, meu chapa.)

Apesar da vergonha, andei em vários. Pedido das crianças, fazer o quê. Sempre que possível delego a missão ao pai, a uma tia carinhosa, primos, invento compromisso. Na impossibilidade, vou. Desejando ser invisível durante todo o itinerário, mas vou.

Quando o trenzinho da alegria passa, as pessoas na rua sorriem, acenam para os passageiros, veem um encanto na coisa que eu simplesmente não vislumbro. Nunca retribuo os acenos dos estranhos, tampouco os sorrisos. Sou a rabugenta do trenzinho. Não estou ali, compreende?

A alegria dos meus filhos quando passeiam em um não é suficiente para que eu supere a vergonha que, tenho ciência, é boba. Sendo assim, além da vergonha intrínseca, há também a vergonha de sentir vergonha – cuja nascente eu desconheço. Sequer me lembro dos trenzinhos da minha infância.

Deve ser alguma memória descarrilada, talvez. Só fazendo terapia de trilhos passados.

Enriquecida com ferro e ácido fólico

Não se lê mais nos ingredientes das coisas: farinha de trigo. Dois substantivos com uma preposição no meio e só. Agora é farinha de trigo enriquecida com ferro e ácido fólico. Adjetivaram, mineralizaram e vitaminaram a farinha. Aquela com que minha mãe fez os bolos da nossa infância, aquela que tinha na vendinha, aquela que a gente fazia cola? Não tem mais. Acabou.

O pão nosso de cada dia está irremediavelmente impregnado de substâncias estranhas. E o macarrão e o biscoito. Panetone? Também. De janeiro a janeiro, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. É a onipresença do ferro e do ácido fólico na vida. Estamos todos mais saudáveis.

Até a hóstia consagrada foi enriquecida de ferro e ácido fólico. Ninguém mais comungou do mesmo jeito.

O binômio alimentar iniciático transformou-se em uma entidade sofisticada. Rebatizada de “farinhadetrigoenriquecidacomferroeacidofolico”, a matéria-prima dos nossos mingaus virou um termo imenso, indissociável, nos dizeres dos rótulos. Um palavrão de comer.

Algumas marcas ainda acrescentam “especial”, para tornar tudo mais belo – e maior. Não se enganem, porém: é tudo farinha enriquecida com ferro e ácido fólico do mesmo saco.

No mercado:

– Moço, onde fica a farinha de trigo?

– Não tem.

– Como não tem?

– Só farinha de trigo enriquecida com ferro e ácido fólico. Terceiro corredor.

Ferro é importante para a saúde, evita anemia. Ácido fólico idem, evita má-formação. Mas não há nada que evite a saudade dos bolos da minha mãe, que nunca mais comi.

Rodinhas

arte: Reuben Whitehouse
arte: Reuben Whitehouse

Quando avistei, ao longe, meu filho andando de bicicleta, notei. Faltavam dois elementos na cena, tão cotidiana: as rodinhas laterais. Ele tinha cinco anos e o pai acabara de removê-las. O pequeno estava pronto para duas rodas.

Depois foi a vez da mais nova, no seu tempo, se despedir das rodinhas.

As rodinhas laterais são o apoio, físico e moral, para quem está aprendendo a pedalar. Têm seu valor. São temporárias, com dia certo para sair de cena. Uns as dispensam mais cedo, outros mais tarde, não importa. A independência e sua irmã mais velha, a confiança, virão.

Ou não.

Há quem prefira manter imaginárias rodinhas laterais a vida toda. Com medo de, sem elas, cair. Medo de não saber viver sem. Medo de levar tombo, de se machucar, do Merthiolate. De se ferrar, enfim.

Desfazer, por exemplo, uma sociedade de anos, cujos sinais de desgaste são evidentes, para inaugurar seu próprio escritório, é tirar as rodinhas e ir.

Anunciar carreira solo, depois de sair da banda que lhe acolheu um dia, mas que não funciona mais, é tirar as rodinhas.

Terminar o velho namoro ou casamento, preso por um fiapo de amor e alguns nós afetivos, é tirar as rodinhas.

Pedir demissão do trabalho entediante, dizer adeus às férias, ao 13º salário e ao tíquete-restaurante, juntar as economias, se enfiar em planilhas e abrir o negócio dos sonhos, é tirar as rodinhas.

Aposentar a escova ou a chapinha diária a lhe torturar as melenas, saber-se livre da ordem estética e andar em perfeito equilíbrio sobre as ondas dos cachos que Deus lhe deu, é tirar as rodinhas.

Para quem cresceu, a casa dos pais e tudo que há nela – segurança, proteção, facilidade – é uma espécie de rodinha lateral. Sair dela é deixá-la para trás. É acreditar que dá para ser dono ou dona do seu nariz e das suas contas. É viver o inenarrável prazer de ter seu canto e, dia sim, dia não, dar uma passadinha ali, só para tomar o café fresquinho da sua mãe. (Às vezes, a dependência não é das rodinhas invisíveis, mas das visíveis roupas lavadas e passadas, do visível almoço sempre pronto, da visível e farta geladeira.)

Dizem que quem aprende a andar de bicicleta não esquece mais.

Sabe-se que quem anda sem as rodinhas não volta mais a usá-las.

Então, experimenta dar uma voltinha sem as suas.

Jardim da infância

arte: Julie
arte: Julie

Não é o diretor, a pessoa mais importante de uma escola. É o jardineiro.

Um diretor cuida de alunos. Um jardineiro cuida de plantas. Todo aluno é uma espécie de planta.

Seu Clóvis era o diretor. Sisudo, austero e formal, como exigia o personagem. Sempre de terno cinza. De poucas aparições. Às vezes, surgia de surpresa durante a aula, tínhamos de ficar em pé. Eu tinha medo dele.

Seu Teodoro era o jardineiro. Amável, calado e introspectivo, como exigia o personagem. Sempre de macacão azul-marinho. Podia ser visto quase todos os dias entre as roseiras ou podando os pinheiros. Eu não tinha medo dele.

O que aprendi nos nove anos que passei ali, do pré-primário ao ginásio, o que absorvi das ciências e das geografias, o que sofri com as matemáticas e o que viajei com as letras foi definido, de certa forma, pelo Seu Clóvis.

Seu Teodoro não me ensinou nada.

É dele, no entanto, que me lembro quando passo em frente à velha escola estadual de primeiro grau. Seus pinheiros, ladeando a escola inteira, ainda estão lá. Não me parecem mais tão felizes como eram sob seus cuidados. Ou eu que prefiro pensar assim. A nostalgia é uma lembrança com photoshop.

Procuro o Seu Clóvis no Google. Encontro várias referências, memórias de ex-alunos – de amor e ódio – espalhadas nas comunidades virtuais e em páginas antigas do Diário Oficial.

De Seu Teodoro não se encontra nada. Ninguém parece se lembrar dele, quarenta anos depois. Exceto a garotinha sardenta que morava a um quarteirão dali. Se vivo, ele seria do tipo que não acessa internet, não tem email, nem smartphone. As plantas são a única, fundamental e melhor rede social para um jardineiro. Nem tudo precisa estar no Google para ser importante.

O nome Clóvis significa “guerreiro célebre”. Teodoro, “presente de Deus”. Nada é por acaso.

Da rua, não se vê mais o jardim do velho Teodoro através das compridas grades de ferro. Porque não tem mais grade. É tudo muro, agora. Sinal dos tempos. Só se avista, da rua, os pinheiros da cintura pra cima. Seu Teodoro certamente não aprovaria a tristonha intervenção arquitetônica que escondeu do bairro o seu jardim e, por tabela, suas crianças de uniforme.

Nunca soube o nome, nem o rosto, nem nada, dos outros jardineiros que assumiram suas plantas depois que ele foi embora. Nem nas escolas onde estudei depois. Deve ser por isso, e somente por isso, que chamam essa época de jardim da infância.

Medo do medo que dá

Arte: Ricardo Lago
Arte: Ricardo Lago

De criança, eu tinha medo de perder meus pais. Hoje tenho medo de perder meus filhos. Nunca queremos ficar sozinhos no meio da história.

De criança, apavoravam-me a prova de matemática e a professora de matemática. Hoje, dá medo fazer as contas no fim do mês. O que só comprova: o assunto é mesmo um bicho de duas mais cinco, ou seja, sete cabeças.

De criança, escondia meu diário no guarda-roupa, atrás das blusas de lã, com medo de que lessem. Hoje, o medo me faz proteger tudo – celular, computador, cartão de crédito – com senha. E não tenho mais diário.

De criança, tinha medo de falar com estranhos. Cresci, perdi o medo. Depois do Facebook, então, nem se fala.

De criança, morria de medo de engasgar com bala Soft. Hoje, a única bala que me assusta é a perdida.

De criança, tinha medo de casa mal assombrada. Hoje, tenho é de casa mal construída.

De criança, tinha medo de ver gente morta. Hoje, tenho medo de não saber o que lhe dizer, quando topar com uma.

De criança, temia a injeção. Hoje, temo a bactéria.

Certa vez, li num livro: “Dome seu medo!”. Parecia simples. Afinal, era só inverter as sílabas. Medo, no entanto (só depois soube), não é animal selvagem para ser domado. De medo, fica-se amigo. E despede-se com abraço, quando ele se vai. Sempre há de se conhecer um novo.

Boneca de papel

No restaurante, brinco de colocar a saia azul da mulher de blusa xadrez, sentada na mesa em frente, na moça de sapatilha de florzinha, em pé ao lado da porta. Penso também que ficaria melhor a bolsa da que acaba de entrar, com longas alças e fivela de borboleta, na que está sentada aguardando a conta. E o vestido rodado da ruiva que traça um pratão de yakisoba bem que ficaria bonito na garçonete, limitada ao triste uniforme que lhe aperta as ancas.

Não devo ter brincado o suficiente com as minhas bonecas de papel, quando era criança.

Em cinco minutos, altero a configuração do público feminino do restaurante. Corrijo, melhoro, salvo. Pena que nenhuma delas ficará sabendo.

As bonecas de papel não eram como as de hoje, superproduzidas, compradas em loja. Nós mesmas as fazíamos. Minha mãe desenhou as primeiras para nós. Recortava a cartolina, criava os modelitos. Depois minha irmã e eu aprendemos a técnica e passamos a criar nossas próprias bonecas. Não podíamos esquecer de fazer a abinha para dobrar sobre os ombros, na cintura. Caso contrário, a roupa não parava. Eu não fazia somente roupas, mas os acessórios também: chapéus, bolsas, botas. Para um guarda-roupa completo, bastavam papel e lápis de cor.

Hoje, a brincadeira dispensa a cartolina e o lápis de cor e pode ser brincada em qualquer lugar: supermercado, fila de banco, escritório. Até na aula de meditação. Só não dá para chamar a irmã para brincar junto, agora ela mora longe. Também não posso impedir que as bonecas, no meio da brincadeira, vão embora.

As bonecas de papel só tinham frente. Não tinham perfil, nem costas. Mesmo assim, rendiam uma tarde inteira de diversão. Não havia vitrine impossível para elas. Os casacos mais sofisticados, daqueles longos, elas podiam ter. Vestidos de baile, botas até o joelho, chapéus maravilhosos. Minissaias, vestidos “de ficar em casa”. Não havia roupa que a minha imaginação não pudesse lhes dar.

As mulheres do restaurante têm frente, costas, perfil. São bonecas em 3D. Apressadas, trazem para o almoço, pendurados no pescoço, os crachás das empresas onde trabalham. Não querem brincar. Alheias a mim, servem-se das batatas e dos tomates, pedem refrigerante zero, riem alto, engolem a refeição, levantam-se, vão embora. O papel delas é outro.

Crônica de minuto para quem não acredita em Papai Noel

Arte: Kohei
Arte: Kohei

Luca quis porque quis saber se quem dava os presentes para ele e para a irmã no dia de Natal era o Papai Noel ou nós. Fui insistentemente inquirida ao longo do dia. Desconversei o quanto deu; Nina, a caçula, crente de carteirinha, estava sempre por perto.

Disse que não escreveria cartinha coisa nenhuma. “Quero ver se ele adivinha o que eu quero ganhar”. Expliquei que Papai Noel não é Deus, nem anjo ou qualquer outra entidade dotada de onisciência. E que não gosta de ser testado. Ele pensou, pensou, e anunciou: escreveria, então, mas a esconderia no quarto. Por um segundo, imaginei-me fuçando gavetas, revirando a estante.

Se ele apontou a opção – ele ou nós – é porque alguma pista ele já tinha. Não havia mais o que esconder. Mesmo assim, fugi da inquisição. Quem sou eu para desmascarar o bom velhinho?

A objetividade me doía. Foi como pisar descalça em um chão pelando. Falei sobre crença, fantasia, imaginação. Deixei na entrelinha. Fui covarde. Logo eu, sempre tão na lata. No fim, quem deu as respostas foi ele mesmo. Eu apenas confirmei.

Num misto de regozijo e decepção, ele ainda não sabe direito se desacreditar no Papai Noel é um bom negócio. Anda preocupado, questionando se sua ‘descoberta’ foi precoce ou tardia – ele tem nove, um pé nos dez. Receoso, também, pelos presentes que virão. Sobretudo, encasquetou que Natal perdeu a graça.

(Que podia eu, que não nutro simpatia pelo circo do Natal, lhe dizer? Que acho um saco o presente-obrigação? Que me cansam o peru, a neve forjada, a Missa do Galo? Só gosto de Jesus e queria lhe desejar feliz aniversário, sem firulas.)

Dei-lhe um beijo para selar sua descoberta e um abraço para me despedir da sua infância. Ele prometeu ajudar a manter o segredo para a irmã. Ganhei um aliado. E Papai Noel, mais um parceiro.

 

Com açúcar, com afeto, sem chantilly

Arte: Dabs
Arte: Dabs

O doce mais doce que o doce de batata-doce é o doce do doce de batata-doce. Certo? Errado. É o pêssego em calda. Ao menos, no quesito doçura-afetiva particular, é. Seu quase formato de coração há de justificar.

Só tinha pêssego em calda muito de vez em quando. Aniversário, data especial, comemoração, dia de pagamento. Era coisa de rico. Se acontecia de ter chantilly para acompanhar, virava banquete. Aliás, chantilly também era uma extravagância. Reis e rainhas, eu tinha certeza, comiam as duas coisas todos os dias, no almoço, no jantar e no lanche da tarde.

Primeiro, o furo inaugural. Em seguida, o roque-roque do abridor ao redor da lata mágica, revelando que a alegria vem do açúcar – ou vice-versa. A lata, só uma por ocasião, tinha que dar para todos. As metades eram minuciosamente aferidas e divididas. Não me lembro se tinha briga quando a partilha era inexata. De exata, apenas minha felicidade. A gente alça uma coisa à qualidade de transcendental quase que por nada. Um pêssego em calda é um pêssego comum, só que com roupa de festa.

Não sabia como o deixavam daquele jeito, tão amarelo, nem por que tinham que ficar partidos ao meio. Até hoje não sei, não quero saber e, admito, tenho raiva de quem sabe. Um pouco de ignorância dá o tom à fantasia. (Quando descobri que os maravilhosos pontos de luz cor de âmbar que sinalizavam as estradas em obras, à noite, não passavam de baldes de plástico cor de laranja com uma lâmpada dentro, foi uma decepção. Nem todo mistério precisa ser desvendado.) Eu nunca vou ler uma receita de pêssego em calda. Não me conte – tapo os ouvidos, lalalalá – , porque não pretendo reproduzi-los. Não se faz remake de um clássico.

Ontem fui ao supermercado. Passei reto pelo corredor dos doces. Já ia dobrando a esquina quando parei. Voltei, alcancei uma, não mais que uma lata. Não comprei chantilly, que nem precisa. A felicidade, que já custou mais, hoje sai por cinco reais e oitenta e nove centavos.

E, curiosamente, ainda me é tão cara.

Dos medos

“Homem do Saco”, Renata Miyagusku

Que tipo de gente eu seria se os meus mais-velhos não me assombrassem – sem querer, até – com a história do Homem do Saco, aquele que me enfiaria no dito cujo e me levaria embora caso eu não fosse uma boa menina?

Que espécime de mãe eu daria se, assim que comecei a andar, não temesse nunca mais ver o rosto da minha, toda vez que ela se ausentasse por mais de trinta minutos?

Em que modelo de adulto eu me transformaria se não morresse de medo dos seres indescritíveis e impiedosos que moravam não só embaixo da minha cama, mas sob todos os móveis da casa, e que me pegariam, zás!, se eu me levantasse de madrugada para fazer xixi?

Eu seria, hoje, uma pessoa mais autoconfiante, uma mãe menos intolerante, uma adulta mais corajosa e bem resolvida, se ocorresse de ter sido poupada lá atrás?

Certos terrores, pensei anteontem, são absolutamente fundamentais à vida humana. Nos primeiros anos, nos do meio e, por que não?, nos últimos. Um pavorzinho aqui, um fantasminha ali, não fazem tanto mal assim a ninguém. Na dose certa, ajudam a construir seres imaginativos, erguem mentes atentas, desencadeiam sinapses que são uma festa. Seus ‘danos’, aqueles que a terapia insiste em tratar, podem, no fundo, ser inofensivos. Quase producentes.

O que seria do cinema sem o sobressalto, da literatura sem o pavor?

Se eu, quando era deste tamanhico, não soubesse o que o escuro me propiciaria em termos de paúra, como mãos gélidas e ossudas surgindo do nada a tocar meus ombros, talvez eu não houvesse exercitado minha imaginação e hoje, quem sabe, eu seria uma pessoa menos empática com os medos e sofrimentos alheios – de qualquer natureza.

Pensei nisso anteontem quando, na praça, ouvi uma mãe fazendo ao filho uma ameaça qualquer acerca do Homem do Saco. Meu radar pedagogicamente correto a condenou de bate-pronto. Onde já se viu, dizer isso ao menino.

Que nada; a patrulha no folclore-afetivo alheio é que é danosa. Eu tive meu Homem do Saco (que era Homem Chato, em neologismo autorizado de infância, e também possuía um saco). Você teve seu Homem do Saco. Todos nós tivemos nossos Homens do Saco! Por que negar isso aos mais novos? Por que ceifar-lhes o direito inalienável de ter pesadelos? (Se é que o Homem do Saco, vilão-mor do imaginário infantil desde priscas eras, ainda está com essa bola toda.)

Pais, mães e responsáveis: perpetuem em seus pequenos meia-dúzia de medos mitológicos, deem-lhes corda, deixem que acordem assustados à noite. O colo bem dado na hora do pânico é o que verdadeiramente nos salva neste e deste mundo.

Gente feliz não é feita (só) de experiência feliz. Isso é lorota que a publicidade inventou e a psicologia certificou. Coisa que até o Homem do Saco, vejam só, deve achar uma chatice.

Memórias de uma boleira

Arte: Marie W.
Arte: Marie W.

Eu fazia bolo para vender na escola. Não lembro como comecei, nem por que parei.

Voltava da aula, tocava meus afazeres de estudante de segundo grau e me punha a preparar o bolo do dia seguinte. Com ingredientes de sobra – nada como uma vendinha na família – , eu buscava receitas no caderno da minha mãe e, vez em quando, inovava. Bolo de maracujá, bolo de café. O preferido da freguesia, no entanto, era o previsível e correto cenoura com chocolate. Aguardava esfriar, desenformava, partia em porções individuais, embalava. Aprimorei o negócio, passei a usar forminhas de papel. Fui precursora dos cupcakes e não sabia.

Manhã raiada, cadernos, livros, régua T (o curso era Edificações) e uma grande sacola tomavam o ônibus comigo. Ora rumo à Praça do Correio, ora à Praça da Sé. De lá, o metrô até a Estação da Luz. Descia em frente ao Batalhão de Polícia de Choque, a icônica Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), que fica junto ao Regimento da Cavalaria 9 de Julho. Mais seiscentos metros a pé na rua Jorge Miranda, em meio aos cavalos em treinamento e seus cocôs deixados pelo asfalto, até meu destino, o Liceu de Artes e Ofícios.

O sinal do lanche tocava e eu assumia meu posto no fundo da sala. Abria o tupperware e vendia cada pedaço por um cruzeiro e cinquenta centavos. Não fazia planilha, posto que não havia despesa com farinha, nem ovos ou açúcar. Nem com o gás que alimentava o velho forno da minha mãe. Ou seja, lucro de cem por cento; uma utopia para qualquer empreendedor. Chegava a vender quarenta pedaços num dia. Considerando que houve época de bolo de segunda a sexta, em uma semana o faturamento líquido chegava a trezentos cruzeiros. Não tenho ideia de quanto seria em dinheiro de hoje. Certamente, nada mau para uma adolescente de dezesseis anos.

***

Sábado fiz bolo para as crianças. Um pandeló tão simples e eles lamberam os beiços. (Embora meu veredicto tenha sido implacável: “Ih, embatumou”.) Passei o final de semana com uma secreta vergonha, um engasgado arrependimento. Conto nos dedos de uma mão as vezes que fiz bolo ou algum outro doce para meus filhos. Rendo-me, invariavelmente, aos prontos da padaria. O que ganho em tempo, perco em sorriso. A conta não fecha.

Outrora boleira semiprofissional, meu destino, eu sei, é ser boleira afetiva. Conheço o preço de cada clara batida em neve e cada elogio; não viso mais lucro. O único prejuízo foi privá-los de quitute de mãe. Embatumado ou não, vale pelo resto da vida – deles e minha.

Agora, faço bolo de graça e acho graça. Estabeleço um cartaz imaginário e visito minha própria cozinha.

Crônica de minuto para quem sabe escrever

Arte: Chrysti

Filho recém-alfabetizado dá nisso: Nina escreveu o alfabeto inteirinho, de A a Z, sabe onde? Na colcha da cama dela. Novinha, acabou de ganhar. Catou a Bic e foi lá, treinar letra de forma.

Em seu papel de algodão cru, caprichou na caligrafia e expôs o recente aprendizado. Criança não diferencia os meios de comunicação autorizados dos não-autorizados.

Eu me lembro muito bem de, mais ou menos na idade dela, ter decorado a parede da sala de casa com uma canetinha. O “painel” consistia em uma longa estrada que nascia por detrás do sofá, subia e descia algumas montanhas, dobrava a quina e terminava atrás da poltrona. Fiz vários carrinhos trafegando, para conferir realismo à cena. Achei lindo. Não me recordo do que aconteceu depois. Considerando que podíamos brincar com as peças do aparelho de jantar da minha mãe, bem como com seus anéis e colares, a bronca pela estrada não deve ter sido tão feia.

E agora?, pergunto à Hello Kitty estampada na colcha. Mas que bobagem, as colchas não falam. Tampouco a gatinha do desenho. Através do seu olhar, ela chama minha atenção para o K e o Z espelhados e diz que é preciso falar algo à Nina. Que ainda não sei o quê. Faltam-me as letras.

As batatas da Malásia

Abro uma daquelas latinhas de batata. Gosto de ver o modo como são organizadas na embalagem, sobrepostas à perfeição. Quem arrumou as batatinhas assim?

Leio: são feitas na Malásia. Enquanto abocanho uma, procuro o endereço no Google Maps. Não é mais suficiente saber a origem; preciso conferir, com meus próprios olhos, o lugar onde foram feitas. (São Tomé não teria grandes dificuldades nos dias de hoje.) Ativo o street view, o endereço é aproximado. Espio o galpão onde, imagino, é a fábrica. Dou zoom, inspeciono o entorno. A região é despovoada; só rodovias e indústrias. A câmera do Google não flagrou um humano sequer circulando por ali. Estão todos descascando batatas.

A ideia de comer uma coisa que foi produzida a dezessete mil quilômetros e cruzou dois oceanos e um continente até chegar à padaria da rua de cima é tão encantadora quanto assustadora. Se são fritas ou assadas, se são resultado de um grande bolo de batata fatiado, se são de batata mesmo, já nem importa. Tenho o improvável na ponta da língua.

As batatinhas – fritíssimas – que eu comia quando criança eram feitas muito mais perto, ali na cozinha. Meu mapa-múndi particular, na época, era reduzido; compreendia basicamente nossa casa e o quarteirão. No máximo, alguns bairros onde os parentes moravam e o centro de São Paulo, aonde eu ia passear de vez em quando. Hoje vivo a cento e dez quilômetros e treze anos de lá.

Meus filhos comem menos batata frita do que eu, na idade deles. A neurose da boa alimentação não existia. O Google não existia. Nem a Malásia existia no meu atlas, ainda. Só os sábados existiam; dia em que minha mãe preparava baciadas de batata frita e as levava para a sala. Uma festa que, hoje, não ouso promover em casa. De que adianta poder viajar até o outro lado do planeta num clique, se ficamos todos chatos?

Mastigo o mapa digital em português e arroto em malaio. Limpo, sem que ninguém perceba, as pontas dos dedos na calça jeans (nem me atrevo a ver onde ela foi feita). Também quero visitar agora, pelo street view, a velha casa da rua Natal. Observo o entorno, tão mudado. Dou zoom na memória e vejo de perto a baciada de batatas, meus dedos engordurados de pura alegria.

A saudade não é aproximada. É exata.

Crônica de minuto #47 ou Feliz Natal

O mais bonito no presépio instalado na sala de casa, quando eu era criança, não era a manjedoura. Nem José, nem Maria, nem as vaquinhas fungando atrás do berço improvisado. Não era nem o Menino Jesus, para ser honesta. O mais interessante no presépio era o laguinho, feito com um pedaço de espelho.

Quando as peças eram desencaixotadas, após longo exílio no armário desde o Dia de Reis, minha maior preocupação era se o espelho estaria intacto. Temia que houvesse quebrado. Mas alguém estendia o pano verde de cetim e o cenário natalino ia sendo produzido. Reis magos surgiam ao lado de camponeses, ovelhas. A neve de isopor dava o ar da graça em meio ao morno dezembro. O lago era desembrulhado. O Natal estava garantido.

Eu brincava com a serragem em volta dele, imitando terra. Assim, dava contornos diferentes à lagoinha, todos os dias. Ora colocava o carneirinho tomando água numa margem, ora na outra. Alterava a órbita dos personagens, mudava os patos de lugar. Eu não queria saber de nascimento, eu já tinha um Natal só meu; era esse o nome da minha rua. E eu só queria saber do espelho. Tal um índio encantado diante das bugigangas que o homem português traria ao nosso continente, tantos anos depois daquela noite feliz. Tal a rainha má e perguntadeira, obcecada pela própria beleza. Tal Narciso, o moço autoapaixonado. Mas eu não era nenhum deles; era uma menina, que via importância no desimportante.

Por isso, hoje tento prestar bastante atenção aos olhos dos meus filhos quando admiram um presépio ou falam de Natal. Que é para descobrir qual fotografia particular, do nascimento mais icônico do planeta, eles levarão consigo vida afora. Quais lembranças, quando adultos forem, lhes serão mais líquidas. Feito a água, imaginária e doce, que se entregava ao velho espelho, espelho meu.

Sarda is beautiful

Fui uma criança sardenta. E, tal vítima indefesa, acometida da praga das pragas, todos queriam me salvar das sardas. Inclusive eu.

De tudo ouvi, infância afora: sugestões de cremes mágicos, receitas de poções duvidosas, simpatias. Fabulosas panaceias, prescritas a torto e a direito por tias, vizinhas e mães de amigas, inconformadas com a manifestação singular da minha cútis. De acordo com as especialistas de plantão, os remédios eram imbatíveis no extermínio das “pintinhas”. As ideias para a salvação incluíam desde o icônico creme Sardalina até, pasme o pessoal da Vigilância Sanitária, meu próprio xixi. Se não estou enganada, fora ideia da madrinha; era só passá-lo diariamente no rosto. Econômico e autossustentável, ao menos, o método era.

Rendi-me a praticamente todos os conselhos. Menos o do xixi, que aí já era demais. Nada, porém, produziu o efeito desejado. Ao contrário; quis o destino que, a cada ano, mais sardenta eu ficasse. Culpa do atraso na invenção do Sundown.

Sofria. “Banana” não é exatamente o apelido que garotinhas de oito anos, obcecadas pelo mimetismo do bando, querem ter. Principalmente se as vistas não colaboram e, somado à pigmentação peculiar, vêm os óculos para ferrar tudo. “Banana-quatro-olhos”, afinal, era de lascar. Minha sorte é que não existia a Galinha Pintadinha. E sorte dos colegas era que naquela época ninguém falava em bullying.

Enquanto as amigas pediam ao Papai Noel a boneca que tomava mamadeira e fazia xixi depois, eu implorava ao bom velhinho que fizesse as sardas desaparecerem. OK, também pedi a boneca. Mas tinha direito a um presente só. Veio a boneca. E o xixi dela era de mentirinha; nem funcionaria.

Por anos, as sardas foram injustamente culpadas por tudo de chato que me acontecia. Achava que não tinha namorado, que ia mal em matemática, perdia os cadernos, não conseguia acordar cedo, era magra demais,  por causa delas. Quanto mais eu as rejeitava, mais elas se mostravam impávidas, alheias à minha repulsa, indiferentes ao meu ódio. Elas mandavam no pedaço, para meu desespero.

Mal sabia, mas aquela era minha constelação particular.

Cresci, as sardas também. Instalaram-se nos ombros, colo, braços. Chegaram a povoar as pernas, aproveitando-se dos raios ultravioletas por entre as brechas dos vestidos. Não são mais as sardas jovens de outrora; envelheceram comigo. Os apelidos também mudaram. O marido, testemunha da brabeza costumeira, diz que sou onça pintada. Para sua sorte – ou azar – , não estou em extinção.

Passei metade da vida tentando escondê-las. E metade da vida fazendo força para exibi-las, cheia de orgulho. Nunca é tarde para a paz.

Noel fez bem em não ter me atendido. Mantenho com carinho, até hoje, a boneca que faz xixi. As sardas também.

Estou salva.

Crônica de minuto #44

Nina, cinco anos, surgiu na porta. Afoita, chamou:

– Vem todo mundo ver!

Fomos, “todo mundo”, ver o que havia na rua.

No céu, um bando de pássaros fazia festa no ar. Vinte, trinta? Juntos em delicado balé aéreo, numa versão reduzida daquele fenômeno dos estorninhos na tal da “murmuration”, quando dezenas de milhares deles usam a imensidão azul para uma performance única, espontânea, breve e espetacular. Dessas de quedar bobo o mais apático dos sujeitos.

Naquele dia, não importava se eram milhares ou vinte pássaros. Meu embasbacamento foi igual.

Quando é filho, mãe aumenta tudo.

Crônica de minuto #43

Meus filhos, quando gostam muito de uma roupa, não querem saber se é “de sair” ou “de ficar em casa”. Eles querem usá-la todo santo dia.

Meus filhos, quando não querem falar com alguém ao telefone, mesmo que seja um parente fazendo aniversário, simplesmente não falam.

Meus filhos, quando veem algo interessante na rua, param. E não importa o que estavam indo fazer, nem que horas são.

Meus filhos, quando querem alguma coisa, fazem de tudo para consegui-la. Tudo.

Meus filhos, quando estão cansados, dormem. Quando tristes, choram. Com fome? Comem.

Tenho dúvidas sobre quem está educando quem na família.

A insustentável leveza da faixa de segurança

Arte: Johanesj

A garotinha de presumidos três anos atravessa a rua de mãos dadas com sua mãe presumida, na faixa de presumida segurança. A mulher, com pressa, muita pressa. A garotinha, pressa alguma. Tanto que inventa, nos quinze segundos de travessia, sua brincadeira particular: só pode pisar nas faixas brancas. O que, devido ao tamanhico de suas pernas, é um exercício e tanto. Lá vai ela, caprichando nos pulos, determinada em seu objetivo, rindo gostoso entre um salto e outro. A mãe, constrangida, tenta, em vão, abreviar a história. Quase leio o apelo em seus lábios, “A moça quer passar!”.

A moça – eu – quer mesmo passar. Estou atrasada (quando não?). A verdade é que não há como não deixá-las em paz. Como motorista, meu dever de dar preferência ao pedestre só não é maior que meu direito de curtir a cena.

Faço sinal para a mãe, “Relaxa”. Ela entende; mães são telepáticas. Não que eu seja boa nisso o tempo todo (pelo contrário) mas, naquele instante, os significados de urgência e importância, e a sempre duvidosa relação que transita entre ambas, ganharam clareza instantânea e inabalável.

O parentesco – mãe e filha – é adivinhado, posto a tipicidade do comportamento, digamos, repressor. Fosse madrinha da garota, esta não só a autorizaria pular à vontade, como talvez entrasse na brincadeira. Mas a pai e mãe parece não ter sido concedido o dom da paciência; só a segurança branca do relógio lhes sustenta.

A pressa ignora o universo da leveza. A espera o contempla. Feitos de pressa, somos a ignorância em forma de átomos de carbono.

As duas alcançam o outro lado da calçada. A mãe agradece o inagradecível. A garotinha não quer nem saber, já procura mais coisas para fazer.

Busco no retrovisor o reflexo dos rostos de meus filhos. Vem a insegurança: levarão eles consigo, vida afora, a lembrança das tantas faixas brancas não-brincadas?

Tão simples, ser mãe do filho dos outros.

Da costura e do corte (ou Crônica de minuto #2, revista e ampliada)

Arte: In Pastel

Juntou que fiz aniversário e, no mesmo dia, comecei um curso de corte e costura. Era parte dos desejos antigos e explicáveis: minha mãe costurava. Cresci em meio às linhas, agulhas, tesouras, fitas métricas.

Quando eu era pequena, sempre ganhava cortes de tecido de presente, geralmente das tias. Que viravam, pelas mãos da minha mãe, vestidos e blusas.

Inventei de perpetuar a tradição e, aos dezesseis, confeccionei para mim um macacão de popeline lilás, sob suas pacientes instruções. Foi a única peça que costuramos juntas – insuficiente para que eu absorvesse seu saber, o bastante para despertar a fome de pano.

Já sem ela, na faculdade, arriscava e abastecia meu guarda-roupa através do maquinário herdado. O corte e a costura tomaram ares de adivinhação, tentativa, erro, sorte. Funcionava. Faltava-me, porém, a técnica materna.

Ninguém mais me dá cortes de tecido. Acho que é porque nem tenho mais tantas tias. Ou então, porque minha mãe não pode mais fazer minhas roupas. As coisas todas têm suas razões.

Vasculhei os armários em busca de retalhos para a primeira aula. Encontrei uma panaiada tão antiga quanto o desejo de costurar direito. Cortes e retalhos do passado, gentilmente poupados pelas traças.

Foram todos comigo para a aula. Dentre eles, um, velhíssimo, intacto em sua abstrata estampa de cores, ainda tão cheias de vida. Presente de quem, afinal? Para mim ou para minha irmã, que também costumava ganhar os seus? Como surgira no acervo têxtil da família, e como resistira a tantas mudanças de endereço? Eu bem que já tentara, várias vezes, fazer algo dele. Sua personalidade, no entanto, sempre trouxera dúvidas sobre o que poderia vir a ser – blusa? Saia? Écharpe? Talvez nem ele soubesse direito o que queria ser. Cogitei, há algum tempo, usá-lo para outro fim – pensando na hipótese dele, de fato, não ter nascido para vestir ninguém. Era tecido arrogante, eu duvidava que fosse se dar bem com outros panos num mesmo traje. Como um animal de estimação ciumento, que não autoriza seu dono a ter mais ninguém. Deu nisso: ele sempre retornou ao fundo do armário, que é para onde vão as coisas da categoria “depois-se-vê”.

Professora bateu os olhos nele e vi ali certa surpresa. “É seda javanesa, não se faz mais dessas!”. Explicado estava, ele não era um tecido qualquer e sabia disso. E não era ele, era “ela”. Naquela hora, no turbilhão sereno das lembranças, vi as tias falando “javanesa”. Jamais havia associado: javanesa é gentílico de Java. Java fica na Indonésia. A gente vive falando coisas sem prestar atenção às origens, aos significados. Por que a camiseta é regata? E a gola, olímpica? A calça, capri? Só sei que a ancestral seda, num processo tardio, em breve sairá de seu casulo reverso. (Antes mesmo de eu tentar ler “O homem que sabia javanês”, aquele, do Lima Barreto.)

Corte é rompimento, morte. Costura, união. Corte e costura, de tão antagônicos, são complementares. Um não vive sem o outro, eles se precisam para que o feitio da vida se dê.

Por isso vou estudá-los. Para, além de ser autora da minha própria moda, aprender a viver com os dois. E também para mostrar que não perdi o fio da trama, tampouco abri mão dos sonhos já alinhavados. Será meu presente de Dia das Mães a longo prazo. Entregue à Dona Angelina com beijo e abraço apertado, embrulhado em papel-saudade.

Ao infinito e além

Ilustração: Backbone-flute/Flickr.com

– Eu não vou comer isso, parece um cérebro.

A mãe colocou as castanhas portuguesas de volta na vasilha, tentou as avelãs.

– Eca!

A única época que o menino via as oleaginosas era no Natal, e sempre na casa da madrinha. Não se pode amar o que pouco se vê.

– Mas você nem experimentou…

O garoto pousou o Buzz Lightyear no prato onde seria servido o jantar. Encarou a fruta e teve uma ideia – imagem é tudo.

– Quero Nescau Cereal.

– Não tem Nescau Cereal na ceia de Natal, Rodrigo.

– Tem, sim. Lá no armário da cozinha.

A mãe baixou os olhos. Suspirou.

– Pode até ter no armário da Dinda, mas você não vai comer e pronto. Viu como a mesa está bonita?

– Por que tanto enfeite?

– Porque é uma noite especial. A gente reúne a família, tem coisas gostosas que não tem todo dia em casa. Vai, experimenta a castanha.

O moleque examinou a iguaria, se animou.

– É de chocolate?

Pais têm sempre três opções quando falam com seus filhos: mentir, omitir e dizer a verdade. Silêncio não é opção, é saída pela tangente. Quando o assunto é alimentação, a tentação do vale-tudo pela nutrição é forte. Assim como ganhar tempo, dar uma chance à sorte, provocar o destino para ver no que dá.

– Vamos ver se você descobre.

Ele apanhou as avelãs, sentiu-lhes a textura, o cheiro. Abocanhou uma, atirou-a longe.

– Rodrigo, não cospe!

A madrinha, de longe e atarantada com as velas que não paravam nos castiçais, assistia tudo. Por certo, pensando: “Sai dessa, companheira”.

– Quero Nescau Cereal.

Se as crianças permanecessem com seus níveis de obstinação e persistência preservados na idade adulta, que seria do mundo?

– Já disse pra você que hoje não é dia de comer isso.

Bacalhau, canjica, peru. Algumas comidas obedecem a um finito calendário gastronômico, muito aquém das possibilidades criativas. Para muitos, elas não fazem sentido fora do contexto-padrão. Há também os que batem continência ao relógio (“Não é hora de pipoca”) ou ao figurino (“Você vai comer tomate com leite???”). As regras desenham os cardápios, para que as pessoas fiquem meramente ilustrativas.

– Mas eu quero.

A desistência, às vezes, é a melhor aliada de uma mãe. E madrinhas são as salvadoras da infância – quase tudo se resolve perto de uma. Ela tem ares de fada e pode até ser mãe dos seus, mas não é dos outros – o que lhe desonera um bocado. A Dinda, que dispensara os castiçais e enfiara as velas em pequenas xicarazinhas coloridas de café, apagou a brasa do fósforo entre dois dedos recém-lambidos e foi lá resgatar o afilhado da escravidão dos sabores:

– Vem comigo, meu bem. Aposto como lá na cozinha a gente vai achar alguma coisa gostosa para você comer.

Foram os dois, menino e Buzz Lightyear, voando. O infinito e o além eram logo ali.

Os queridos diários

Ilustração: Shelly/Flickr.com

L. perguntou, na lata e por e-mail: o que fazer com os diários antigos?

Eu, que não sabia se ela só compartilhava a dúvida, ou se assumira que eu já os tivera, gelei. Onde estão os meus?

O primeiro diário a gente não esquece. E também não lembra onde o guardou. Foi Silvana que fez para mim, eu tinha oito anos. O caderno comum ganhou capa especial em papel camurça cor de vinho, com um arranjo de flores e trigos (por que trigo, minha irmã?), feito com aquela técnica da raspagem. Vieram outros depois, aprendi a confeccioná-los. De mesma serventia, mas sem o mesmo encanto do original.

Recheado de ilustrações, era um relatório de bobajadas pueris: o que eu fizera e como, descrições das pessoas da família, pedidos de desculpas por não ter escrito no final de semana. Como se diários fossem pessoas, carentes de apresentações e explicações. (E não são?) Aos poucos, fui acrescentando crítica aos registros. Os primeiros pensamentos de gente grande. Com que idade o encerrei? Pudesse, reviraria a casa. Agora.

Diários são feitos para serem lidos; mente quem diz o contrário. Ainda que o único leitor esperado seja o próprio autor. Queremos ser lidos por nós mesmos e a escrita é, quase sempre, o melhor dos espelhos. Diário é uma longa carta onde remetente e destinatário são a mesma pessoa. Já nasce entregue.

Diário é uma espécie de caixa-preta. As informações mais importantes do nosso voo particular estão ali, protegidas. A boa notícia: não é necessário esperar pelo dia da explosão, nem da queda, para entender o que houve e há. Basta abri-lo numa página qualquer.

O revés: diário é um dos mais cruéis instrumentos de tortura e chantagem. Se dá sopa, é abduzido. Geralmente por irmãos mais velhos ou amigos-da-onça. Com sorte, terão sua liberdade negociada. Na maioria dos casos, porém, serão devastados, varridos. Ou, em tempos de internet, escaneados e postados para Deus e o mundo ler. Deus não costuma passar as coisas adiante. Já o mundo…

E o que fazer com os diários alheios, sob nossa guarda? Resgatei os da minha mãe, entre uma mudança e outra. Acessei sua caixa-preta (tarde demais) e fiz meu inventário particular de memórias. Diários também têm dessa; sabendo que serão lidos depois, seus donos escrevem neles o que não puderam (ou não quiseram) dizer em vida. Ainda não encontrei um jeito de dizer a ela que tudo ficou e sempre ficará bem.

***

Quanto à L., direi-lhe, assim que possível: o melhor a fazer com os velhos diários, querida, é nada. Próprios ou não, eles não precisam mais de nós, nem nós deles. A partir da última palavra publicada na última linha da derradeira folha em branco, não estamos mais no controle. Eles mesmos darão um jeito de sumir. E, mesmo destruídos, é bom que se saiba: suas histórias já foram impressas no imorredouro do tempo.

Desenhações

"Casamento de sóis", Nina, 2011

Filhos em ação: dezenas de folhas de sulfite e milhares de canetinhas espalhadas pelo chão da sala. Está certo, não são milhares. Duas dúzias, no máximo. Há um arco-íris sobre o tapete, qualquer hora descobrirão que é voador. Ensaio mandar recolher tudo – as pontas porosas são cruéis com a mobília. Leio a paciência tatuada em meu antebraço. Eles precisam de ar.

Vejo seus desenhos com olhos de mãe, ávida por sinais que garantam que eles são crianças alegres. Procuro sorrisos nos traços humanos, paz nos cenários caseiros, harmonia nas paisagens. Além do evidente, nunca sei direito o quê identificar; sigo considerando tudo bonito. Sei que ela é romântica e sempre me desenha de cabelos compridos. Ele passou da fase dos trens, ampliou seu repertório e faz plantas arquitetônicas com cortes transversais. Sei também que não gostaria de descobrir nos retratos algum resultado da minha habitual impaciência materna. Quando uma tatuagem alcança a pele do coração?

Na idade deles, meus desenhos eram feitos com canetinhas Sylvapen, unânime objeto de desejo da criançada. O luxo era o estojo com doze. Na maioria das vezes, porém, eu tinha que me contentar com o de seis. Agora as crianças ganham estojos com vinte, trinta, cem canetinhas. Não há cor impossível.

Hoje, especialmente hoje, eu precisava da minha mãe. Para saber dos olhos dela quando via meus desenhos. Se também buscava neles evidências de que tudo estava bem com sua caçula. Não lembro se ela guardava algum consigo, como eu faço com os dos netos que ela não conheceu. E também nunca mais fiz desenhos para ela. Ela não pediu mais.

Quando pequena, grávida de imagens, eu dava à luz macieiras carregadas. Montanhas simétricas com o sol por detrás do vale formado. Algumas esquisitices. Mulheres de perfil, mania perpetuada nos cadernos até depois da adolescência. Quando desenhava pessoas, logo alguém perguntava “Quem é?”. Coisa mais aborrecida. Não era gente de verdade, era gente inventada. Por via das dúvidas, não faço essa pergunta aos meus filhos. Faço outras. É minha maior contribuição à imaginação deles.

A parede da sala de jantar é o lugar das exposições de arte temporárias. Nela estão algumas de suas obras, grudadas com durex. Amanhã vai ter mais uma. Se eu ainda souber desenhar maçãs.

"Hora do banho", Luca, 2011

Enxergações

Ilustração: Fred Seibert/Flickr.com

Foi entrar na escola e o oftalmologista sentenciou: eu precisava usar óculos. Não enxergava bem de perto, apertava os olhos para fazer lição. Senso estético em formação e certa insegurança infantil não podiam dar noutra: saí da loja com os óculos mais feios do mundo. Percebi tempos depois, quando a fotografia do primeiro ano caiu nas minhas mãos. A moda muda com o tempo, e isso nem sempre é uma boa notícia. Talvez algum adulto – mãe ou vendedor, entenda-se – tenha palpitado na escolha, fui na onda. Ou era o modelo mais em conta, e não se falava mais nisso. Grandalhão, em nada ajudava a meninota sardenta que desejava pertencer ao bando das meninas bonitas e populares. Tampouco ajudou a ver o que, nem de longe, eu suspeitava: o pueril desejo não me levaria a lugar algum. Não, pelo menos, interessante. Criança, ainda, eu mesma me dei alta e convenci minha mãe de que não havia mais necessidade deles. Aposentados, acabaram sepultados na gaveta onde iam parar minhas bugigangas, restos esquecidos de nada e de tudo.

Vinte anos passaram. Senti, de leve, a falta das lentes para enxergar de longe. Desta vez, mais ajeitado, o novo modelo foi escolhido com ajuda do namorado, numa manhã de sábado. Em nada lembrava o trambolho da infância. Eram óculos para ver o que, de perto, eu já sabia. Que saudade, principalmente de infância, é a verdade mais líquida que há. Se deixar, ela preenche, facilmente, qualquer cantinho dentro de nós. Que terapeuta, igual freguês, sempre tem razão. E que a história de amor, com o moço do sábado de manhã, não tinha futuro. Porque já havia passado. Como da primeira vez, logo me dei nova alta. Deixei os óculos no armário, em outro ponto de encontro de bugigangas, agora atualizado. E eles sumiram.

(As gavetas de bugigangas mudam conforme a temporada e a idade. De pequenos, costumamos ter nelas um brinquedo quebrado, uma tampa qualquer, um pedaço de desenho feito com canetinha. Já adolescentes, o conteúdo é outro: fotografia recortada, cartas de amor e desamor, letra de canção impressa em propaganda de escola de inglês. De adulto, é chaveiro de candidato a vereador, caneta que não escreve, canhoto do talão de cheques.)

Menos de dez anos depois, novos óculos. Bonitos, de verdade (até que outra estética entre em cartaz). Moram na gaveta, mas não das bugigangas. Saem para dirigir somente à noite, se houver rodovia pesada no caminho. E olhe lá. De dia, mais pela ligeira fotofobia do que por outro motivo, quem passeia são os de sol, com lentes calibradas para o minúsculo grau. Nem tanto para longe, nem tanto para perto. Esses são para ver as coisas, reais e imaginárias, nas suas devidas distâncias.

Que óculos me reservam a velhice? Os de lentes gorduchas, bem-alimentadas, projetando sorrisos por onde meu olhar for? Os fotográficos, com o poder de congelar o instante flagrado? Os com zoom, para deixar pequeno o que é pequeno, grande o que é grande? Ou os de chocolate, para ler olhos de criança?

Vou é querer óculos de assistir os ciclos, a espera, os frutos, o sono, o amanhecer, a preguiça, o contentamento. Aqueles, de enxergar as horas em seu tempo justo – nem um minuto a menos. Aqueles, de olhar pai e mãe lá atrás. Aqueles, de avistar filho, neto, bisneto e a vida inteira ali na frente.

Flan de baunilha

Só tinha flan de baunilha em casa – aqueles pudins prontos, que vêm em potinhos plásticos com calda de caramelo – se alguém ficava doente, ou outra ocasião especial. Custavam uma fortuna quando eu era criança. Ou nem tanto, a gente que não podia comprar.

Ter meia dúzia deles na geladeira era o sacrifício dos meus pais para ver um filho mais alegrinho, menos injuriado por causa do sarampo, da catapora ou da febre que, glória!, livrava a gente de ir à escola. Era a recompensa para a doída injeção no bumbum, tomada em pé nos fundos da farmácia do Archimedes. Um prêmio para o remédio amargo, de seis em seis horas.

A degustação da iguaria exigia cerimônia e respeito, e tinha início já ao levantar da fina folha de alumínio que a cobria. A raridade era incrivelmente saborosa. Mais até que o tender de Natal. Eu torcia para que a febre não cedesse, só para ser autorizada a mais um flan. Com meu irmão mais velho o negócio ainda rendia figurinhas. Era adoecer e lá ia ele ganhar uns pacotinhos extras. Alguma coisa, enfim, precisava valer a pena passar o dia na cama, sem poder brincar lá fora. Pai e mãe sempre dão um jeito de por alegria na vida da cria.

Meu sonho gastronômico infantil era devorar vários flans de uma vez só e, de preferência, gozando de perfeita saúde. Sem me preocupar em deixar algum para os irmãos, nem se ia dar dor de barriga. Sonho nunca realizado, mesmo quando ele pôde ser financiado.

Três décadas depois, acertei as contas com o passado.

No supermercado, escolhendo o iogurte das crianças – minha cria, desta vez –, estacionei na gôndola repleta de pudins. Tantas marcas, sabores. Tão baratos. Chequei o relógio, verifiquei a previsão do tempo, consultei os oráculos e não tive dúvidas: agarrei oito. Isso mesmo, oito. Eles são vendidos aos pares, quatro pares era um bom número. Olhei para os lados, temendo ser pega em flagrante delito, mais ou menos como quando eu tocava a campainha das casas da rua e saía correndo. Fazer algo escondido, mesmo quando se sabe que não há o que esconder, torna a coisa irremediavelmente mais gostosa.

Chegando em casa, os flans sequer foram para a geladeira. Abocanhei um por um, na cozinha, em pé. Igual quando tomava as injeções na farmácia, tirando o fato do meu bumbum, agora, estar devidamente preservado. Papei tudo, a barriga nem doeu. Caberiam mais. Uma mulher completa, eis agora o que eu era. Depois me dei conta: não havia comprado a mais para as crianças. Omiti a traquinagem, claro. Eles nem estavam doentes.

Ao terminar o oitavo flan, a pergunta fatal: por que é que não fiz isso antes? Os tempos de vacas magras ficaram lá atrás. Não que as vacas sejam muito gordas hoje, mas dão leite suficiente para, digamos, muito pudim. Por que é que nunca tirei o atraso? Por que desisti de, como diziam os mais velhos, matar a lombriga?

Porque esqueci. E do mesmo jeito que me esqueci desse desejo pueril, esqueci de muitos outros, perfeitamente concebíveis desde há muito tempo. Está certo que, hoje, a ideia de ter uma boneca do meu tamanho não me atrai tanto. A questão, no entanto, nem é essa. São as antigas quimeras irrealizadas, que viraram a esquina do tempo e se perderam na multidão dos anos. É o prazer de zerar um capricho. Liquidar um devaneio. Ficar quite com a criança interior e concluir mais uma pendência no checklist desta vida, para não levar muitas para a próxima.

Há quem, de infante, sonhou com a coleção em vinil dos Beatles ou botas até acima dos joelhos. Desejou almoçar no lugar mais caro do bairro, passar num carrão em frente ao colégio na hora da entrada ou montar um autorama gigante no meio da sala. Ou então, aprender a tocar piano depois do diploma de médico, sair numa escola de samba, badalar o sino da catedral da Sé.

A alegria que dá abastecer coração e alma com coisinhas assim não tem preço. Falando em preço, é sempre bom lembrar que boa parte das utopias particulares são realizáveis e podem estar, literalmente, ao alcance das mãos. Na prateleira de um supermercado, por exemplo. Meus flans custaram dez reais. Convencer o pároco da catedral, garanto, sai por menos.

O telefonema da Dona Irene

Ilustração: Eurritimia/Flickr.com

Dona Irene foi professora da minha irmã em 1968. Ela tinha seis anos e estreava na escola. Como as primeiras coisas da vida geralmente ganham título de inesquecíveis – a exemplo de sutiã, emprego, beijo, carro –, com professor não é diferente. Salvo raras exceções, ele, que na maioria dos casos é ela, ganha aura especial, etiqueta de nobreza e carinho sem fim até o fim da existência. E, de vez em quando, acalenta no ex-aluno a questão: “Por onde andará?”.

Caso minha irmã tenha se perguntado isso algum dia, a resposta chegou via cabo, quarenta anos depois. Em sua casa, ela atendeu a um telefonema. Era a Dona Irene.

Não a descrevo porque não a conheci. E esqueci-me de perguntar à minha irmã, quando me contou. Mas vamos imaginá-la uma típica professora dos anos 60: cabelos presos, óculos, saia-lápis bem cortada. Além, claro, das mãos firmes e doces a guiar as dos pequeninos, e todos os demais predicados que uma docente deveria ter. Um personagem querido, enfim.

Prosearam uma prosa boa, as duas. Ela se emocionou ao saber que minha irmã havia se formado (sua missão estava cumprida), tinha dois filhos e estava feliz. Repassaram quatro décadas em poucas dúzias de minutos, com uma riqueza impressionante de detalhes, lembrados pela professora. Perguntou, citando nomes, pelos meus pais, meu irmão mais velho, que também fora seu aluno, e até por mim, que tinha um ano de idade, ou nem isso, na ocasião das aulas. Um caso de memória excepcional? Claro que não.

Concluímos, minha irmã e eu, que Dona Irene mantinha naqueles tempos um caderninho com informações sobre seus alunos. Nome completo, série, um ou outro detalhe… se era loiro, moreno, falante, tímido, inteligente ou sofrível. Coisa de uma jovem e zelosa professora que deseja guardar seus minialunos na lembrança. E, continuando o raciocínio, aconteceu do caderninho sobreviver ao tempo. A gente não guarda os nossos, do primeiro, segundo, terceiro ano? Professor também mantém suas relíquias escolares, diferentes das dos alunos. Quem sabe, Dona Irene vislumbrasse nele alguma utilidade no futuro. Quem sabe.

A nostalgia escorria pelo telefone, invadia o pensamento da minha irmã. Sua primeira professora, ali, do outro lado da linha! Como estaria seu rosto? E suas mãos, aquelas que lhe ensinaram as primeiras letras? Seria Dona Irene grande como parecia para minha irmã, em seu metro e alguma coisa de altura? Minha irmã se viu, ao mesmo tempo, em duas dimensões, passado e presente, a criança que gostava de andar com os pés dentro do bule e a mulher que se especializou em encontrar antepassados na internet. No meio de tudo, como num filme em fast-forward, relances da velha escola com seus pinheiros bem cuidados por Seu Teodoro, o jardineiro; a hora do recreio e o lanche preparado pela nossa mãe; o uniforme, os cadernos, as ingênuas composições sobre passarinhos que não têm peso na consciência, as tabuadas.

Lá pelas tantas, Dona Irene revelou o motivo da ligação.

A professora aposentada tem uma irmã, candidata a algum cargo político na cidade – vereadora, deputada ou coisa assim – numa dessas eleições. Sim. Dona Irene ligara para sua ex-aluna, que não via há quatrocentos e oitenta meses, para pedir voto.

Dona Irene deve ter tido um trabalhão para encontrar minha irmã. Consultado listas telefônicas do estado de São Paulo inteiro. Ligado para várias homônimas até achá-la. Crente que um voto pode fazer toda diferença.

Dona Irene, melhor pensar assim, não guardou o tal caderninho (se é que ele existe) com esse propósito. Se eu lecionasse, também gostaria de manter um banco de dados dos meus alunos, apenas para poder me lembrar deles depois. Um professor nunca sabe se, da sua turma, surgirá um gênio, uma lenda, um presidente da república. Já imaginou o orgulho?

Dona Irene, no entanto, parece ter encontrado uma utilidade para seus registros, onde e como quer que eles tenham sido salvos. Mas, cá entre nós, ela não precisava da artimanha. Distribuísse cem mil santinhos da irmã candidata e pronto. Passado bom não se revira.

Despediram-se, cada uma foi tratar de seus afazeres. A professora deve ter continuado a campanha com o próximo da lista. Minha irmã talvez tenha ido buscar a pizza na portaria, dado comida aos gatos ou sentado no sofá para assistir Friends.

Dona Irene, um quase-mito de infância para minha irmã, perdeu a oportunidade de perpetuar-se no rol das celebridades afetivas dela e de, quantos?, outros alunos daquela época, que também devem ter recebido sua intrigante ligação, mais de quatorze mil dias depois do último dia de aula.

Dona Irene, despejada do Olimpo, ingressara no mundo dos mortais. Dos pobres – e inconvenientes – humanos que pedem voto.

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[Nota: nem ia postar, dado o tema (escola) ter invadido o noticiário de maneira tão chocante e triste. Mas esta crônica já estava pronta. Paz para os jovens da escola em Realengo, no RJ, vítimas do massacre. Paz para seus pais. Paz para seus professores.]

A lista

Ilustração: SteTop/Flickr.com

Eu já me apaixonei uma centena de vezes. E comecei cedo no negócio. Tinha até lista de namorados, registrada pela irmã mais velha. Com cinco anos de idade, eu ainda não dominava o alfabeto. Namorado, a bem da verdade, era modo de dizer. A lista, composta basicamente dos moços bonitos das redondezas (na minha infantil opinião), também incluía celebridades midiáticas. Não sei de onde tirei a ideia de ter tantos affairs, simultaneamente. Ingênua e perdoada poligamia.

Com 32 nomes, a lista original era encabeçada pelo Leão. O goleiro da seleção de futebol nos anos 70. Por causa das pernas, deixei claro. Em segundo lugar, aparecia o Sérgio Chapelin, apresentador do Jornal Nacional na mesma época, e do Globo Repórter nos dias de hoje. Acreditem: ele era um gato. Mais tarde, Chapelin perdeu o posto para Carlos Campbell, outro apresentador bonitão de telejornal. A irmã que fazia o inventário de amores conta que eu beijava a tela da TV cada vez que um deles aparecia. Nem reality, nem show. Aquele era meu treino afetivo.

Na sequência vinham, talvez não nessa ordem: o moço do açougue, o rapaz que aplicava injeção na farmácia, o marido da vizinha e seus dois irmãos. E tantos outros, cujos nomes e rostos se perderam na barafunda da memória. Boa parte deles sequer sabia dos meus sentimentos-mirins. Para os que me conheciam, ainda que de vista, eu era apenas uma garotinha engraçadinha da vizinhança. Os tempos eram outros. E ganhar uma bala de um conhecido mais velho não levantava suspeita de nenhuma espécie.

A lista se renovou ao longo da infância e adentrou a adolescência. Jogadores e jornalistas já não faziam mais tanto sucesso no meu coração. Era a vez dos garotos de carne e osso do bairro e, principalmente, os amigos da irmã liderarem a lista. Tirando meu sono, arrancando meus suspiros. O objeto do amor, finalmente, saíra das telas para a vida real. O que não fez tanta diferença, quase nenhum dos pretendidos queria saber de mim.

Cresci, a lista encurtou. Nada de dezenas de nomes. Agora era apenas um por temporada. Ator de seriado norte-americano, vocalista de banda inglesa, psiquiatra badalado (com consultório perto de onde eu trabalhava, para azar das colegas que eram obrigadas a passar em frente ao prédio todo dia), professor de inglês e até palhaço de programa infantil. De tudo, um pouco. A reduzida lista resistia, carimbada pela primitiva essência: a paixão platônica light, sem maiores intenções e por vezes alimentada só de diversão, agora convivendo pacificamente com os namoros de verdade, com seus sujeitos e predicados.

Namorei muito. Mas minha lista, hoje, é de um nome só. Também escrito numa folha de papel. Papel passado, como se diz. No Dia dos Namorados, só um presente. Bem melhor assim.

Crônica de minuto #21

Criança de colo ainda, conheceu três orfanatos. Sempre o mesmo enredo, não havia lugar para ele. Nunca houvera, enfim. Sequer no útero original foi bem-vindo; ele é que não obedecera às ordens de despejo. Da infância, cerzida a caridade, só recordava dos confetes de papel colorido que ganhava na quarta-feira de cinzas. Os que haviam sobrado. Aprendeu a fazer festa depois da festa. Fez alegoria da solidão. Inventou sua história com os pedaços de vida que os outros não queriam mais. Vida de retalhos que não combinavam entre si. Teimou tanto em ser feliz, que um dia costurou e vestiu sua própria fantasia de alegria. Nunca mais tirou.

Crônica de minuto #9

Luca saiu do banho, vestiu o pijama, enfiou as pantufas, botou o videogame embaixo do braço e, imitando gente grande, avisou: “Vou para uma reunião”. Quando ele crescer e for trabalhar, tomara que não perca esse sorriso. Afinal, no trabalho é tudo mais ou menos como um jogo. Tem objetivos, fases, conquistas, derrotas, amigos e, de vez em quando, inimigos. A diferença: nem sempre dá para apertar um botão e desligá-lo. Mas até lá isso pode ter mudado.

Crônica de minuto #2

Quando eu era pequena, sempre ganhava cortes de tecido de presente, geralmente das tias. Que viravam, pelas mãos da minha mãe, vestidos e blusas. Ninguém mais me dá cortes de tecido. Acho que é porque nem tenho mais tantas tias. Ou então, porque minha mãe não está mais aqui para fazer minhas roupas. As coisas todas têm suas razões.

Alto-mar

Ilustração: Shelly/Flickr.com

Agradeceu e desligou o telefone. E agora? Cruzou os braços. Descruzou. Mordiscou a ponta do polegar. E agora, quem cortaria seus cabelos? Vinte anos com ele, somente ele, ninguém mais que ele. Não confiava em outro. Apanhou uma mecha e a passou na boca. Não se conformava. Ele precisava morrer hoje?

A avó nunca deixava seus cabelos crescerem. De três em três meses, quando ela a mandava lavar a cabeça logo cedo, já sabia: dia de tosa. Normalmente, só lavava à noite. Nesse dia não adiantava ela se escorar nos batentes das portas, nem nos galhos da primavera ao lado do portão. A avó era como um desses cães que puxam trenós no gelo, ia a arrastando enquanto ladrava sem, contudo, mordê-la. Chegava ao salão com o rosto inchado pelo choro, as mãos cortadas pelos espinhos da primavera. O barbeiro improvisava para ela o assento com uma caixa de maçãs, para que ficasse mais alta. Sob a ordem da avó, decepava-lhe os fios. De vez em quando, ele bem que tentava. Um chanelzinho hoje, Dona Lurdes? Sem negociação. Cabelo comprido embaraça muito, sou eu quem penteio todo dia – ela justificava. Com a franja ensopada a lhe cobrir os olhos ela via, através do espelho, seu destino sendo traçado. A caixa de madeira a lhe torturar o bumbum. E a sempre encardida capa plástica com barquinhos desbotados, apertando seu pescoço, os restos de cabelos nas bainhas. Cabelos de outras crianças, postas ali para o mesmo castigo. Certa vez, assistira a um filme sobre um presídio para mulheres. Assim que chegavam, ficavam enfileiradas num corredor, nuas. As carcereiras passavam e, máquinas em punho, zzzzz. Todas carecas.

Não cortaria mais os cabelos. Pronto, estava decidido. Não entregaria sua cabeça assim, a qualquer um. Encontraram-no caído no apartamento, a manicure contou. Uma poça de sangue ao redor. Ele fora o único que atendera seu pedido, logo na primeira vez: Meio centímetro, por favor. Usou uma régua para aferir meio centímetro dos setenta que desabavam sobre seus ombros, e aquilo a encantou. Da segunda vez, facilitou-lhe a vida: Um dedo. Confiava nele a ponto de ler uma revista inteira durante o corte. Agora ela queria saber o que fazer com a sua confiança. As pessoas não avisam quando vão morrer.

Na escola ela era a única de cabelos curtos. Em seus aniversários, a madrinha insistia e lhe dava laços, presilhas, tiaras. Inúteis acessórios, segurariam o quê? O fim deles, porém, era sempre o lixo. Na sua festa de dez anos, aproveitou um instante de distração da avó e conseguiu salvar uma fivela dourada. Havia um barquinho de strass nela. Escondera-a na casinha do cachorro, numa fresta entre o assoalho e a parede. A avó não gostava do Genaro, e vice-versa. Late demais, esse bicho – reclamava. Era um local seguro, portanto. Ao sair para a escola, apanhava-a dali e a colocava nos parcos cabelos. Devolvia-a na volta, sob o olhar conivente do cão. Um dia, o flagrou mastigando a fivela. Não sobrou nada. Cachorros não avisam quando vão fazer arte.

A morte do cabeleireiro, no entanto, desmantelara nela um processo inacabado. Ela crescera, saíra de casa. Seus cabelos também cresceram. Mas temeu o retorno à tutela da avó, apesar de adulta. Viu-se arrastada ao velho barbeiro, a desconfortável caixa de madeira. Os barquinhos da capa plástica naufragando na poça de sangue, Tão moço, ainda. Não. Nem mais um dedo, a partir de agora. Seus cabelos cresceriam até os pés, ela os enrolaria pelo corpo, em breve não precisaria mais de roupas. Ela seria, ao contrário das presas do filme, eternamente cabeluda. E alforriada. Olhou as próprias mãos, lembrou dos espinhos das primaveras. Levantou-se num supetão, Preciso mandar uma coroa de flores! Onde se compra uma coroa?

Despediu-se das manicures, era a primeira vez que via o dono do salão chorar. O céu anunciava um temporal e o bairro do cemitério costumava alagar. No carro, recebeu a mensagem pelo celular. Era seu irmão, avisando: Vovó passou mal. Do cemitério até o hospital eram vinte quilômetros. Quantos dedos cabem num quilômetro?

Sentou-se na cama ao lado da avó, que lhe fez um pedido. Assim que pudesse, deveria passar em sua casa e procurar uma caixa no armário de seu quarto. Azul, tem uns lilases grandes, é fácil de achar – explicou. Ela obedeceu. Seguiu as coordenadas e a encontrou. Abriu. Reunidas nela, todas as presilhas, laços, fivelas, grampos que ela havia ganhado quando criança. A avó não os jogava fora de verdade, então. Era seu jeito de afundar as vontades da neta, jogar a madrinha para escanteio. Agora ela ganhava de volta os presentes do passado. A avó temia o futuro? Ê, Genaro. Sentiu as mãos formigarem, lembrou das primaveras do portão. Fechou a caixa e a deixou ali.

No dia seguinte, durante o horário da visita, contou à avó que havia encontrado a caixa. A enfermeira entrou e serviu o lanche. A avó retirou o miolo do pão e fez uma bolinha. Com ela enfeitou a gelatina, e lamentou:

– Pena não estar completa.

– Como assim?

– Falta uma.

– Qual?

– A fivela que tinha um barquinho. Aquela eu nunca encontrei.

A avó passou geléia na casca do pão, mudou o canal da TV. Desistiu do pão, empurrou a bandeja para os pés da cama. Ela levantou-se para recolhê-la.

– Nem me lembro dessa. Vai querer o chá?

O preço do dinheiro

Ilustração: João Pedro C. de Oliveira/Flickr.com

O primeiro salário que recebi na vida eu gastei inteirinho numa calça jeans. Adquirida, inclusive, no dia do pagamento. Ou seja, restaram apenas alguns trocados na minha conta bancária recém-aberta, e eles deveriam durar por mais vinte e nove dias. Mal davam, porém, para meia dúzia de passagens de ônibus. A boa notícia: eu não dependia deles para viver. A má: eu estava completamente enganada. Ou vice-versa.

A construção da minha relação com o dinheiro remonta à primeira infância. Certo dia, apareceu no portão de casa um rapaz vendendo bichinhos de pelúcia. Eu estava só, numa época em que isso não constituía infração ao estatuto da criança. Eu o atendi; ele tinha uma tralha interessante. Os bichinhos, um mais feio que o outro, fizeram meus olhos brilhar. Menina educada, expliquei que não tinha dinheiro. O moço perguntou qual deles eu havia gostado. O ursinho, claro. Malandro, ele propôs: eu não tinha algum objeto de valor para trocar? Uma jóia, por exemplo. Mas claro que tínhamos jóias! A gaveta de mamãe estava cheia delas. Pedi um minuto. E voltei com um par de brincos de ouro com água-marinha, prontamente trocados pelo ursinho cinza. Um escambo bem safado: recheado de jornal, o urso se desmantelou no dia seguinte. Os brincos eram modestos, mas valeriam pelo menos dez daquele brinquedo fajuto. Levei duas broncas: por ter recebido um estranho e por ter feito um péssimo negócio. Quanto à segunda, tenho dúvidas se aprendi a lição. Difícil mesmo foi aguentar as piadinhas em casa.

A calça jeans nem era tão bonita assim. Mas o raciocínio raso e curto – “eu podia pagá-la” – prevaleceu. Apesar de adulta, eu não tinha noção do quanto custava, por exemplo, manter uma casa. Hoje sei que meu capricho representou quase a metade da mensalidade da faculdade, e foi por causa dela que eu entrei no mercado de trabalho já de forma privilegiada. Às vezes, os pais pensam que estão fazendo algo de bom aos filhos, ao poupá-los de dividir as despesas da casa quando começam a trabalhar, mas não estão. Preciso me lembrar disso mais tarde.

Na minha rua tinha uma lojinha de bugigangas. Jane era a dona, moça bonita dos cabelos longos. Virei sua amiguinha, de tanto que eu aparecia por lá para ver as novidades. Uma vez, cheguei em casa com anéis e pulseiras novos. Meu irmão estranhou, quis saber de quem eram. Respondi: “A moça da loja deixou trazer, depois a mamãe passa lá para acertar”. Não foi bem o que aconteceu: tive que devolver tudo, e ainda explicar o porquê à Jane. Outra lição, esquecida anos mais tarde quando fiz meu primeiro cartão de crédito.

Ao assinar o cheque da calça – praticamente um salário-mínimo da época –, as lições aprendidas no passado não ecoaram na consciência. No fundo, percebi que não era interessante receber salário e ele acabar no dia seguinte. Tratei de usar o jeans todos os dias, para que a aquisição valesse a pena. O efeito foi contrário: a todo instante eu me dava conta do pecado fashion que havia cometido. Pensa que me emendei? O segundo salário eu torrei numa bolsa.

Luca, seis anos, sobre o preço das coisas: “Mãe, para Deus tudo deve ser barato”. Ficou pensativo e completou: “Ele deve poder levar tudo de graça!”. Uma das coisas mais interessantes no longa-metragem da vida é o revezamento dos papéis. Agora era minha vez de ensinar. Justo eu, que tão pouco aprendera a respeito. Reparei, no entanto, que a questão ali era outra. O que facilitou um bocado: “Deus não tem dinheiro, filho. Ele não precisa.”

Sobre baleias e vulcões

Ilustração: Elizabeth/Flickr.com

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A garotinha das tranças tortas entregou o giz de cera, uma folha de papel, e pediu:

– Desenha uma baleia?

Danou-se. Quando ela era pequena, tudo que tentava desenhar ficava parecido com vulcão. “Por que um vulcão, Helena?”, a professora perguntou. “Não é vulcão…”, e desabou no choro que não terminaria antes do recreio. Desde aquela época resolvera: não desenharia mais e pronto. Passou a infância distante dos crayons. Era inimiga dos pincéis, avessa às aulas de educação artística. Adolescente, descobriu as ilustrações digitais. Foi sua alforria. Agora, a menina lhe propunha um retorno ao inferno.

– Vou tentar – disse, ajeitando-se no banco de concreto da pequena alameda. Esboçou uma montanha e acrescentou nela um rabo de peixe. Cruzou os braços, condenando o próprio trabalho:

– Eu não sei desenhar baleia.

A pequena quis tranquilizá-la:

– Não faz mal – e segredou-lhe no ouvido, baixinho: – A baleia também não sabe desenhar gente.

Retomou o giz. Riscou a metade inferior da ‘montanha’ com um longo e ondulado traço, representando o mar. Fez-lhe um olho triste. A garota examinou. Séria, inquiriu:

– Cadê o esguicho?

– Esguicho?

– Toda baleia solta esguicho pela cabeça. Nunca viu, não?

Desenhou, então, uma espécie de chafariz sobre a baleia disforme. Igual ao do jardim que ficava na entrada do asilo. Há um mês ela passava as manhãs ali, visitando os velhos. Mas sentia-se incomodada perto deles, alguns cheiravam a manteiga. Era com a menina que conversava a maior parte do tempo. Filha da cozinheira que, não tendo com quem ficar, ia junto.

Ela riu:

– Isso não é esguicho!

“Danou-se de vez”, pensou. O vulcão. Mas a menina soltou:

– Parece mais uma flor!

Estava sempre com duas tranças mal-feitas, produzidas às pressas pela mãe, ainda na madrugada. Uma começava acima da orelha. A outra, abaixo. Uma dúzia de fios eram banidos do abraço cor-de-rosa do elástico, aqui e lá. Diariamente interrompida em seus sonhos, tratava de terminá-los no caminho, embalada pelo sacolejo dos três ônibus.

“Flor é melhor que vulcão”, ponderou. Corrigiu o esguicho. Desenho aprovado, enfim. Os velhos dali nunca lhe pediam para fazer desenhos. Alguém os havia ensinado que era melhor serem quietinhos. Como vulcões extintos.

Meio-dia. Hora de partir. Desceu a alameda, cruzou os portões. Fez um último aceno à pequena amiga. Na esquina de casa, buscou na bolsa o controle remoto da garagem. Encontrou a baleia, dobrada em quatro. Sorriu. A semana estava apenas começando.