Foto: Ponto e Vírgula/Flickr.com
Ela ficava no caminho dele. Ou ele no dela. Disputavam a calçada todos os dias, pontualmente às sete e vinte da manhã. Ela, enfermeira, apressada, indo trabalhar. Ele, aposentado, vagaroso, lavando a frente da sua casa. Ela, de vestido colorido decotado e salto alto. Na bolsa, a roupa branca comportada e o salto baixo. Ele, de pijama e galochas. Na mão, a mangueira cor de laranja. Completando o cenário, a raiva muda dela por ele. E a dele por ela, talvez.
Ela achava que ele não tinha nada que lavar a calçada todo santo dia. Um desperdício. E ele bem que podia recolher a mangueira quando ela estivesse passando, não? Quase sempre um esguicho lhe atingia os pés, as canelas. Uma vez, quase escorregara.
Ele morava só. E acordava cedo. Sem ter o que fazer, lavava a calçada. Por horas. Aproveitava e regava o pé de hibisco amarelo no canteiro. Que era sempre o mais florido de todo o quarteirão. Houvesse algum carro estacionado por ali, ganhava um banho também. Os mais acostumados desviavam, caso não quisessem chegar ao trabalho ou à aula ensopados. Menos ela, que enfrentava o homem diariamente. O chato de galochas.
Numa manhã de segunda-feira estranhou. Notou a calçada: seca. Conferiu o relógio, mas que horas eram? Sete e vinte. Então não estava adiantada. Parou em frente ao portão, espichou o olhar lá dentro. Nada. Olhou em volta. Pediu com o olhar uma resposta ao dono da banca de jornal. Que, enquanto organizava as revistas recém-chegadas, limitou-se a menear a cabeça. Não sabia de nada.
A ordem do dia fora quebrada. Sentiu-se perdida, como se à rotina matutina faltasse um pedaço. Não sabia se seguia seu caminho, se retornava, se aguardava, se tocava a campainha. Soube, então, a falta que o chato e suas galochas faziam. Ali, imóvel em sua árida solidão, como um cacto sedento em pleno deserto, conheceu a saudade do que não gostava, daquilo que tanto lhe incomodava. Reconheceu e assumiu o prazer que sentia no tolo enfrentamento diário, no desafio infantil em escapar incólume da água, que lhe dava a força para encarar seus doentes.
Olhou para os hibiscos. Deu meia volta e foi até em casa. Três minutos depois, voltou com um balde. Esvaziou-o na pequena árvore, e deixou-o ali mesmo. No final do dia, na volta do trabalho, o recolheria. Apertou o passo. Vinte para as oito, já.
Coisas do cotidiano, quando bem lembradas, viram cronicas maravilhosas no teclado da Silmara!!! Ai, voce sempre fazendo a gente sentir que vive numa eterna cronica diaria!!!
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adoro essas histórias de cotidiano. espero que o velhinho devolva o balde pra ela no fim do dia e agradeça por ela ter molhado as plantas. daí eles ficam amigos!
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e a cabeça da gente continua a historia, cada um de nós imagina o que pode ter acontecido e as possibilidades se multiplicam … na vida real e assim também, ou Deus também deixa uma possibilidade, uma incócta na vida de gente?… somos um conto de Deus…
beijinho, Sil…. e parabéns pelo belo texto.
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Muito muito bom! E é assim mesmo, às vezes sentimos falta até dos pequenos percalços! beijo!
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Primeiro comentário meu em 2010! Demorei pra pegar no tranco, esse ano ainda está meio estranho pra mim. Mas hoje vim aqui e li tudo o que tinha passado. E, como sempre, me emocionei com esse seu olhar tão sensível às coisas mais simples do dia-a-dia.
Um grande beijo pra vc.
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