Receita

Eu bem que tento. Corto a abobrinha dum jeito, corto doutro. Fatio fininho, fatio mais grosso. Produzo cubinhos maiores, menores, médios. Ora deito na panela pouco óleo, ora bastante. Alho e cebola, sempre. Refogo, provo o sal, deixo cozinhar. Depois, quebro os ovos por cima e espero a mágica acontecer. Quando gema e clara estão a um passo de firmar, revoluciono tudo com a colher de pau. Então sirvo.

Ficar bom, fica. Pouco lembra, no entanto, a iguaria da infância, de sabor e receita registrados naquele caderno invisível, com letra de mão de mãe. Sempre falta alguma coisa. A toalha xadrezinha sobre a mesa de fórmica, os pratos duralex que não quebravam nunca. Faltam o quintal de caquinhos vermelhos e o porão onde ficava a enceradeira. Falta a Françoise Hardy na vitrola, com sua “La Question”. La question que não cala: por que não sou capaz de reproduzir a abobrinha com ovo da minha mãe? Algum tempero secreto, será? Eu exagero nos ovos? Falando em ovo, quem nasceu primeiro, o amor ou a saudade? Que tonta, eu. Falta é ela.

A gíria é velha: quando alguém falava bobagem, dizia-se que estava “falando abobrinha”. Injustiça. Eis aí legume bacana, de boa com a vida. É ter abobrinha dando sopa na geladeira e o banquete está garantido (inclusive sopa). Logo, na minha avaliação, falar abobrinha é bom. “Benzinho, me fala alguma abobrinha” – sussurraria a mocinha apaixonada, na novela das seis.

Contam que minha sogra fazia a receita. Em vez de abobrinha, porém, vagem picadinha. Família é assim. A base é a mesma, só mudam os personagens. Ou ingredientes.

Fiz abobrinha com ovo esta semana, para acompanhar o arroz e o feijão. É o sabor e a receita que meus filhos terão registrados em seus próprios cadernos invisíveis, com letra-mãe. Não saberão da abobrinha com ovo da avó, que não conheceram. Memórias culinárias são feitas de passado, embora se construam no presente. E repetir receitas afetivas é uma forma de perpetuar a espécie, um modo bom de fazer vida. Eu vivo falando das minhas. E se, por acaso, disserem que falo muita abobrinha, já sabem: é elogio.

(crônica finalista no Prêmio Off Flip/Festa Literária Internacional de Paraty, abril/2021)

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