Inverno

É inverno no hemisfério sul. Meu quinquagésimo quinto. Da minha coleção de estações frias, lembrei de duas.

Era uma vez, inventamos de fazer tricô. Minha irmã, as amigas e eu. Viramos militantes da lã, partidárias das tramas, as doidas das agulhas. Nas geladas tardes paulistanas, nos reuníamos para tricotar. A cada ponto, uma bobagem no ar. Rir e tricotar são terapias avançadas.

Ficamos freguesas de um depósito de fios perto da rua Siqueira Bueno. Um mar de novelos, cones e cores à disposição. Se as temperaturas eram baixas, nossa criatividade não. E a gente era boa mesmo nas blusas. Depois de prontas, algumas ganhavam até nome, conforme a personalidade da peça. Fiz uma azul e verde, lã grossa, grandona. “Com que roupa você vai?”, “Hoje vou com a Big”. A amiga lembra dela até hoje.

Minha irmã se dedicou a um modelo com tranças na frente, maior capricho. Técnica sofisticada. Amarelo-bebê, pura meiguice. Mas ela não gostou nada do resultado, e nós… assim… tivemos que concordar. A pobre blusa sofreu bullying e ganhou a terrível alcunha de Brega. Nem chegou a ser usada. Hoje, acho que fomos injustas.

Ela também se tornaria famosa por tricotar uma blusa investível, razão de algumas das melhores gargalhadas da nossa juventude. Determinada a inovar no modo de fazer, ela a fez inteiriça, quase sem costuras. Toda branca, candidata a linda. Acontece que minha irmã exagerou na quantidade de pontos e só viu depois. As mangas tinham mais de um metro de comprimento, se não me falha a memória. Que ficou gigante, ficou. Sem nome, virou cobertor da nossa cachorra. Ela, ao menos, adorou.

Aquele inverno rendeu ainda muitos suéteres, cachecóis. Coloridos, listrados, gola assim, gola assado. O tempo passava, a gente se divertia e, de quebra, economizava e incrementava o guarda-roupa.

Minha mãe era craque nas agulhas gerais. Fez tanto tricô “pra fora”, como se dizia, na velha Lanofix. Entre as roupas que tricotou à mão para mim, guardei duas. Uma de verão, em barbante cru. E uma de inverno, amarelo-limão. De tempos em tempos eu as retiro do armário, sacudo a poeira, conto-lhes as novidades. Tão miúdas. Incrível que tenham me servido um dia. De tempos em tempos pergunto à Nina, sua neta, se ela gostaria de usá-las. Mas elas sempre retornam ao armário.

Então, era outra vez e Dona Angelina partiu. Nos últimos dias de um outono gélido, não houve blusa de lã que aquecesse o peito. Era dia dos namorados; nevou no coração do meu pai. Trinta e quatro junhos depois, recebo no celular uma foto dele com chapeuzinho colorido de palha, todo alegrinho. Não são só riso e tricô que fazem bem. O tempo também. Faz tempo que não vou a uma festa junina.

No inverno passado, em meio à pandemia, resolvi retomar as agulhas e tricotei. Nina pediu uma blusa para ela, também. Escolheu a cor, falamos sobre modelos, providenciei agulhas novas. Até hoje não fiz. Filha, eu estou te enrolando, tal um novelo. Sua avó já teria lhe feito mil roupas, uma mais bonita que a outra.

É inverno no hemisfério sul. Meu quinquagésimo quinto. A cada ano, completo uma carreira nova nessa minha malha de viver. E não pretendo arrematá-la tão cedo.

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