Foram sete fiadas, eu contei.
Sete fiadas de tijolos cerrando o túmulo, aberto mais cedo para receber a tia. Passava das nove da manhã quando ela chegou. A primavera chegou um dia antes, reparei nos canteiros das outras lápides.
No túmulo da família, a tia agora reencontra o tio, seu amor. E também os sogros, os cunhados. Dos três andares em mármore, apenas um está vago e, dizem, reservado. Só Deus sabe o dia da mudança. “Não tenha pressa”, pedi, sussurrando em seus ouvidos onipresentes. Ele deu uma piscadinha. Deus já piscou para vocês? É bonito demais.
O funcionário, sabendo que era observado pela plateia enlutada, foi assentando os tijolos do túmulo com calma, algum capricho e certo respeito. Como quem ergue uma casa. Não deixa de ser uma casa. A última. Se na primeira fiada os tijolos couberam direitinho, na segunda, não. Pensei: e agora? Com a colher de pedreiro, o homem partiu um ao meio; mediu-o, ainda estava grande. Outra pancadinha no tijolo, assentou o toco, pronto. Se na vida tudo tem jeito, na morte também.
Mais uma fiada. A tia, tão elegante. Jamais lhe faltavam o cabelo escovado, a roupa alinhada, o batom. Amorosa, recebeu-me, vinte e um anos atrás, como legítima sobrinha. Sou muito sortuda.
Cemitério, reparem, é uma espécie de condomínio. Nele, a lei do silêncio vale o dia inteiro, e não só depois das dez. De vez em quando, ele é quebrado. Assim que o homem cerrou de vez o túmulo, varreu a baguncinha, lavou a pedra e foi embora, alguém puxou um cântico. Outros seguiram. Tia Lourdinha cantava no coral da igreja. Certeza que ela também os acompanhou, agora mais que nunca, afinada feito anjo.
Uma família é feita de tijolinhos. Bem ou mal assentados. Uns inteiros, outros nem tanto. Nem sempre encaixados com exatidão. Mas unidos por uma poderosa e invisível argamassa. Tijolo sozinho é nada. É no coletivo que a gente existe, nessa imensa olaria que se chama mundo.
Lindo me levou ao céu!Lurdinha era tudo isso,sua elegância me encantava.Assistindo a missa aos domingos pela tv.Procurava a bela Lurdinha!
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Vera Lúcia, eu a chamava de “tia bonitona”. Vou sentir saudades. Beijo 💚🌺
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Perdi meu pai há poucos dias. Não pude ir ao enterro. Seriam 36 horas para chegar. Sua linda crônica me fez lembrar de papai. Beijos.
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Meu amigo, sinto muito por sua perda. Que você, seu pai e toda a família fiquem bem e em paz. Abraço 💜
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Que maneira mais linda de enxergar a morte!
Realmente somos tijolinhos e sozinhos não somos nada.
Fazer parte do coral dos anjos deve ser magnífico.
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Obrigada pela leitura, Maristela! Beijo 💙🌺
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Sil, tia Lourdinha, com certeza piscou e virou de lado, com uma água benta que escorreu dos olhos. Emoção diante de tamanha beleza de texto/homenagem da sobrinha querida. Fiz coro com ela ao término da leitura. Lá do alto, os anjos celebram a chegada de mais uma alma iluminada. Fique bem!
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Delícia de mensagem, Roseli! A anjaiada deve mesmo estar muito feliz. Beijo 💜
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