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Tipo exportação

Cresci ouvindo falar em café tipo exportação. Laranja tipo exportação. Castanha de caju. Gasolina. Mulata.

Depois entendi.

Tipo exportação é quando a gente faz uma coisa que é bacana, mas precisa torná-la mais bacana, praticamente excelente, para poder vendê-la para outros países. (Entendi também que a mulata não deveria estar na lista.)

Ou seja: para fora, segue sempre o melhor.

Para dentro, não precisa ser o melhor. O bom já serve. O possível, o que dá.

Tem horas que concluo: eu sou uma pessoa tipo exportação.

Sou bacana, mas sou mais bacana ainda, praticamente excelente, para os outros. Sei dedicar carinho e atenção e gentileza às pessoas da minha família, as “de dentro”, mas acabo fazendo isso melhor para as de fora. As dos outros lares que fazem fronteira com o meu. Um lar é um país.

Tem dias que solto os cachorros em casa. Vocifero, esbravejo, surto por tudo e por nada.

Porém, se no instante de fúria doméstica o interfone toca e eu atendo, a voz recupera a maciez, “Tenho, sim, um ovo para emprestar. Levo aí!”. É a minha gentileza tipo exportação.

Quem nunca cuspiu fogo quando o namorado ou namorada faz um comentariozinho qualquer, questionando, por exemplo, seu empenho para arrumar emprego? Se, no entanto, é o professor da faculdade que lhe cutuca, além de aceitar a observação, agradece pelo toque… É a maturidade tipo exportação.

Nessas horas evoco Cazuza em livre e desesperada adaptação: por que que a gente é assim?

Se para a família e pessoas íntimas deveríamos, em tese, oferecer sempre o nosso melhor, o nosso excelente. Mas não. Estamos muito à vontade para escancarar nosso lado B. Mesmo que o preço seja uma carinha com superávit de tristeza no fim do dia.

Bom mesmo é ser do tipo importação. Do tipo “eu me importo com você”. Faz bem às relações. Até as internacionais.

Cupidagem de supermercado

É desses supermercados que colocam um formulário no caixa, para que as pessoas indiquem produtos que, na opinião delas, estejam faltando. De geleia de pimenta à coleira, os fregueses vão anotando o que gostariam de ver nas prateleiras.

Na hora à toa, quando já coloquei toda minha compra sobre a esteira e aguardo a mocinha passar coisa por coisa, aproveito para me atualizar do que querem as pessoas. O leitor de preços vai cantando, pip, e eu, leitora, vou conferindo a listinha dos clientes. Às vezes o processo é demorado; ela lança a goiaba branca em vez da vermelha. Chama o supervisor (que está ocupado e vem irritadiço), ele passa seu cartão de funcionário, digita a senha, cancela o item e a goiaba branca desaparece da tela.

Na listinha de hoje, dois pedidos especiais. O freguês reclama que não encontrou a catuaba selvagem – prestem atenção: não basta ser o lendário afrodisíaco, tem que ser selvagem (oh furor!) – e a freguesa sinaliza que homem acabou.

Enquanto a mocinha do caixa digita manualmente o código da linhaça dourada, porque o leitor eletrônico resolveu encrencar, penso em sugerir ao supermercado que invista nas novas tecnologias. A listinha de produtos faltantes poderia virar um aplicativo, disponível para Android e iOS. Numa espécie de rede social com algoritmos especialmente programados, seria permitido que, fosse o caso, os fregueses pudessem contatar uns aos outros.

O freguês animadinho que pediu a catuaba poderia conhecer a freguesa solitária que relatou a falta de homem. E todos seriam felizes para sempre. Fim.

O que você faz?

arte: Andrea Joseph
arte: Andrea Joseph

– O que você faz?

Por um instante, tento adivinhar que tipo de resposta o perguntante busca. Se pergunta porque deseja, por mera ou suspeita curiosidade, saber a atividade pela qual sou remunerada. Se pergunta genericamente, sem maiores pretensões, aguardando abreviado esclarecimento. Ou se pergunta por perguntar, para puxar assunto, quebrar o gelo. Na dúvida, respondo:

– Faço força para acordar cedo. Faço banana amassada com aveia e Toddy em formato de coração para meu filho e bisnaguinha na chapa com ovos mexidos para minha filha, de café da manhã. Faço agendas inviáveis e acordos impossíveis com Cronos. Faço tempestade em copo d’água e, das tripas, coração. Faço o bem e, vez por outra, olho, sim, a quem. Faço o que eu digo e faço o que eu falo – tento fazer sentido. Faço amor. Faço guerra, também. Faço de um limão, limonada; de uma alegria, felicidade, e de uma lembrança sólida, nostalgia líquida. Faço muito. Faço pouco. Faço é nada. Mas faço o que posso. Faço caminhos e laços tortos (fazer o quê!). Faço graça. Faço surpresa. Faço coleção de bolsas, caderninhos e cafeteiras. Faço, aliás, juras de amor ao café (e faz tempo). Faço suco de maracujá com gengibre, kibe de soja, hamburguer de abobrinha, bolo de cenoura, arroz e feijão cheios de alho. Para tudo isso, faço supermercado. Faço livros, blogs, amigos. Faço homenagem e piada. Faço rir, faço chorar e faço dormir. Faço ideia. Faço grandes malas e boas viagens. Faço uma fézinha de vez em quando, e já vou fazendo planos. Faço cara feia. Faço pouco caso. Faço que não é comigo. Faço bobagem, faço vista grossa, faço por merecer. Faço o que eu quero, pois é tudo da lei – da lei! Faço as pazes, as camas, as unhas (faço questão). Faço ligações, conexões e intervenções. Faço minhas orações, minhas doações e minhas proclamações. Faço anos todo ano. Todo ano, faço promessas de ano novo. Faço conta e faço de conta. Faço, enfim, alguém feliz. – E você, me diga: faz o quê?

De que lado estamos?

Arte: Juliana Moraes

Meu marido e eu já moramos em três casas diferentes. Nas três, sempre dormi do lado esquerdo da cama que, por sua vez, ficava próximo à porta. Não me recordo de essa ter sido, em nenhuma das vezes, uma escolha racional. Foi chegar e ir instalando travesseiro e pijama no “meu lado”. Nos hotéis, em casa de parentes, o padrão perto-da-porta se repete. É intuitivo.

(Leitores casados agora estão pensando em que lado da cama dormem e por que.)

Em território doméstico, a exceção foi inaugurada há pouco tempo: como ele se levanta antes, negociou para ficar próximo ao banheiro. Quis dar três passos e estar na ducha, em vez de dez, caso precisasse dar a volta na cama. Qualquer providência que o ajude a ganhar tempo pela manhã, ainda que alguns segundos, é bem-vinda. Ele não sabe, mas sinto falta do meu autoproclamado lugar.

Reparei em alguns quartos (eu reparo) e concluí que estou com a maioria: mulheres escolhem o lado mais próximo da porta, seja ele o lado esquerdo da cama ou não. Para os casais, a definição do lado de dormir é natural, regida por um acordo silencioso e invisível. Dispensa argumentações ou reivindicações. É feita de paz.

Coincidência? Ordem mundial? Ou lógica ancestral da maternidade, mesmo quando ela nem é exercida? Afinal, quem está perto da porta socorre primeiro (em tese; não vale para sonos de pedra) o filho que acorda chorando no meio da noite.

O mundo é organizado, explicado e obcecado pelos lados. O lado escuro da lua. O lado A e o lado B dos velhos discos de vinil. O lado esquerdo do peito, a abrigar, simbolicamente, amores e amigos. O lado direito do cérebro, a casa da criatividade. Política, educação, ativismo social, todos divididos em lados. O lado bom e o lado mau das coisas. O lado ocidental e o lado oriental. A vida do lado de cá, a vida do lado de lá. De se esperar que descanso e sonho, as fundações do mundo, seguissem também a geografia da lateralidade.

Na última configuração do quarto dos meus pais, minha mãe dormia do lado esquerdo, justamente o lado da porta. Há, portanto, herança genética no meu jeito de dormir. Desde que enviuvou, meu pai dorme em uma cama de solteiro. Nunca mais precisou escolher seu lado.

Os mitos do amor

Foto: Paul Moody
Foto: Paul Moody

Dos mitos que os amantes inventam para o amor, três são dignos de nota.

O primeiro e mais falacioso: dois em um.

A medicina tem um baita trabalho para tentar corrigir o engano da natureza, que faz duas pessoas nascerem grudadas – os gêmeos xifópagos. E alguns malucos apaixonados, veja só, insistem em querer “se tornar um”, ainda que simbolicamente. Nem na plena adolescência, contaminada de certa crença em príncipes encantados, a ideia da fundição amorosa me agradava. “Dois em um” só fica bem em alguns produtos, como xampu & condicionador, impressora & scanner. Num relacionamento, é bom que cada um continue com seu corpo, sua alma, seus segredos, seus amigos, seus carros e seus RGs. Sem essa de um completar o outro. A única pessoa que me completa é o frentista do posto. Peço sempre para ele completar com gasolina comum (ou etanol, quando está em conta).

O segundo, tipicamente pueril: dormir de conchinha.

Conchinhas do mar são fofas. Quem nunca colecionou, quando criança? Era ir à praia e voltar para casa trazendo aquele montão, que logo ia para o lixo. Um dia, alguém cismou de compará-las ao modo dos casais enamorados dormirem, assim, encaixados, grudados. A concha, no entanto, é uma carapaça. Rígida, ela guarda em si um molusco. Eu que não quero ser carapaça, nem dormir ao lado de uma carapaça. Muito menos com molusco. Gostoso mesmo é dormir feito estrela do mar, como diz minha amiga. Espalhadona, solta, à volonté. O que não significa, evidentemente, falta de amor ou romantismo. As estrelas do mar são livres, se movimentam. As do céu brilham, para quem tiver olhos de vê-las e ouvidos de ouvi-las. Ora direis… Amar e mar têm as mesmas letras, e é só isso. Façamos assim, para não haver briga, nem cara feia, na hora de nanar: cinco minutos de conchinha e sete horas e cinquenta e cinco minutos de estrela. Pronto.

O terceiro e mais ardido: a pimenta.

Dez entre dez revistas femininas lançam mão, três vezes ao ano, da expressão “apimentar a relação” e seus similares, buscando reanimar relacionamentos combalidos. Dá-lhe cinta-liga, elixires, malabarismos, pirotecnias, apoteoses. Pimenta, todo mundo sabe, queima o gogó, arde nos olhos. Um amor que faz chorar, quem há de querer? Fosse assim, vatapá seria afrodisíaco. Pimenta na relação é para os masoquistas de plantão, candidatos a uma úlcera afetiva. Melhor seria “manjericar” o namoro. Ou “coentrar”, “tomilhar”, “papricar” o casamento. Mais saudável, mais gostoso.

Há mais mitos no amor. Muito mais. Cada um que descubra e desmistifique – ou não – o seu.

Os botões do mundo

Foto: Fernando Oliveira
Foto: Fernando Oliveira

Preguei botão na camisa do marido, pedido feito há uma semana. O menorzinho, sob a gola, eternamente incumbido de mantê-la no lugar, caíra. Sabe-se lá onde.

Desenrolei o carretel, cortei a linha, lambi a ponta. Passei-a pelo furo da agulha, dobrei em duas, dei um nozinho no final, para não escapar. Apanhei o botão-estepe na bainha da camisa, ajeitei-me na cadeira e repassei, num lampejo, a trajetória feminina – minha e de todas as mulheres que me antecederam neste planeta, tão semelhante a um botão.

As tias velhas, quando queriam espezinhar uma semelhante, diziam “Essa aí não sabe nem pregar um botão”, referindo-se à falta de habilidades domésticas e, portanto, serventia, da companheira de espécie. Saber pregar botões, ao lado de saber cozinhar, lavar, passar, cuidar de casa e filhos e não reclamar era, conjugado em pretérito imperfeito e defeituoso, garantia de casamento feliz e duradouro.

A agulha entrou pelo primeiro dos quatro furos do botão e saiu do outro lado do tecido. Então é isso. De acordo com as tias, trago em mim a fagulha ancestral e invisível, mantenedora de um casamento. Dela lanço mão, sem saber, para perpetuar a minha família. Afinal, a caixinha de costura pertence a mim; não ao marido. É isso, então?

O mundo é feito de botões. A começar pelos da roupa que veste o corpo; é com eles que se filosofa o essencial e, às vezes, inconfessável. Eles estão por toda parte: na televisão, no rádio, no telefone, no elevador, na campainha, no banco, no fogão, na calculadora, no carro, no jogo de futebol que se joga com os dedos. Conta a lenda que é apenas um botão o que resguarda o destino da Terra e impede que ela vá pelos ares.

A agulha emergiu pelo segundo furo, trazendo à tona a linha. São eles, os botões, que controlam, regulam, ligam e desligam o mundo. Cuidar dos botões, portanto, é estar no comando.

Repeti a operação três vezes na primeira dupla de furos, para reforçar. Redundância é segurança de informação; é a teoria da comunicação aplicada à alfaiataria.

Passei para a última dupla de furos. O marido poderia pregar o botão sozinho. E o faria, se sozinho vivesse. Preferiu pedir a mim. Ele também teve suas tias velhas.

(Preciso contar às minhas que o mundo mudou e o botão mais famoso, hoje, não é o das camisas e chama-se “curtir”.)

Arrematei o último ponto, o pequeno botão agora está firme como uma rocha. Pendurei a camisa na porta do guarda-roupa dele e olhei pela janela. É primavera.

Quem será que prega os botões da roseira?

Crônica de minuto para quem tem gato

Arte: Peter Neish
Arte: Peter Neish

Entro no banheiro, ele vem junto. Gato gosta de acompanhar o dono nesse destino. É seu favor diário. Fica ali, roçando a quina do armário e investigando um fiapo de qualquer coisa, caído ao lado do cesto de roupas. Amante de espaços mais amplos, é na limitação azulejada do dois por dois que um gato mantém a relação com seu dono em dia.

Ele pede colo, eu dou. Ele não quer saber o que estou fazendo ali sentada. Um colo é um colo.

É noite. Aviso-lhe: “Amanhã é mais um dia”. Antevejo a rotina de afazeres, deduzo acontecimentos; ele não. A repetição dos dias não o incomoda. Também não o seduz. Gato é atemporal. Melhor: proprietário de seu tempo. Todos os eventos mundiais cabem em uma lambida na pata.

Ele salta à pia. Encara o espelho e conclui: não há outro mundo dentro dele, Alice estava enganada. Ensaia uma espécie de capoeira com a bolinha de papel amassada que larguei ali. Não preciso da bula do hidratante, mesmo. Esse horóscopo testado dermatologicamente, a informar que o tempo correrá macio a partir de agora. Fiz aniversário, o presente já começou. Gatos vêm do futuro?

Ele desce. Ouve algo lá fora, que meu ouvido humano não capta, e se prepara para uma eventual defesa. Ele enxerga, escuta e se move melhor que eu; é de admirar que seus ancestrais não tenham dominado o mundo.

Inicio o banho, ele se enrodilha  sobre o tapetinho. O som da água é sua canção de ninar. O vapor morno faz seus pelos negros brilharem. Desligo o chuveiro, saio do box e pulo o tapete para não incomodá-lo em sua soneca.

Ele finge que dorme. Observa, olhos semicerrados, meu ritual pós-banho. Todo gato é um voyeur declarado e preguiçoso.

Ele fica comigo até o fim. Saio, ele sai também. E não sei mais quem acompanhou quem.

Ligações perigosas

Arte: Lohan Gunaweera
Arte: Lohan Gunaweera

Confesso: gosto de desligar o telefone na cara dos outros, quando os outros me enchem “os pacová” (minha avó falava assim). Se a prosa vai mal, se a comunicação foi liquidada, cerimônia não é comigo: deixo meu interlocutor no vácuo, encerro o assunto, boto ponto final – ainda que unilateral – na conversa. Fazer o quê. É minha primitiva vingança, meu prazer chulo e secreto, a satisfação do instinto subdesenvolvido que também habita meu ser.

Não foi assim que mamãe ensinou, bem sei.

Antigamente, quando os trambolhentos telefones ficavam numa mesinha no canto da sala, fazer isso causava não só uma afronta pessoal, mas uma lesão auditiva. Do outro lado da linha, a pessoa quase sentia o baque seco do fone no gancho (gancho? Eu disse gancho?). Quanto mais forte a porrada no aparelho, maior o desaforo.

Hoje, o impacto físico do ato, digamos, rebelde, é discreto. Chega a ser elegante. Basta tocar a tela de um smartphone ou, quando muito, apertar uma tecla, para encerrar aquela DR bombástica. A tecnologia minou o aspecto cênico dos embates verbais não-presenciais, estragou a teatralidade do tele-bate-boca, arruinou o desfecho do barraco de longa distância. Quase cortou o meu barato.

Minha porção mal-educada costuma vitimar, invariavelmente, os entes mais próximos e queridos (quem explica?): marido, pai, irmãos. Embora meus alvos prediletos também incluam, com frequência, voluntários de instituições de caridade, atendentes de telemarketing, cartões de crédito e telefonia celular, além do dono da pizzaria que atrasa meu pedido em mais de uma hora. Jamais pratiquei o vil hábito, no entanto, com chefe ou cliente. Berra quem pode, ouve quem tem juízo.

Desligar na cara resume o “não tenho mais nada a falar com você”. Resolve a parada sem democracia, cidadania ou direito a réplica. Tem efeito similar a bater porta, levantar-se da mesa no restaurante e ir embora. Pior que lixar as unhas placidamente enquanto o outro profere o diabo. Com a diferença de que, ao telefone, não se pode conferir a expressão de fúria do ultrajado. Um mistério a mais na relação?

Pior que desligar enquanto o outro fala é não atender quando esse outro liga de volta para tirar satisfação. É o ápice da impiedade.

O inferno me aguarda, bem sei.

Casamento, parte 2

Arte: Greg W

Ele perde. Eu localizo. Ele espalha. Eu recolho. Ele guarda. Eu descarto. Sou sua vice-versa.

Ele é indoor; eu, outdoor. Eu reclamo; ele salva. Eu publico; ele reserva. Ele planta árvore; eu, livro. Tudo é semente.

Ele prefere pão queimadinho. Eu, branquinho. Ele gosta do chuveiro mais frio, no 3, quase 2. Eu no 4, pelando; às vezes, 5. Ele corre a São Silvestre. Eu evoco o São Benedito. Minha música é alta. A dele, branda. Ele gosta do silêncio; eu careço do ruído. Nosso conflito é o decibel.

Eu abasteço a geladeira com água de coco, só para ele. Ele compra Amandita, só para mim. Ele briga porque como o pacote inteiro de suspiro. Eu sempre digo que não fui eu.

Ele deixa a TV ligada. Eu tenho preguiça de reciclar. Ele não apaga as luzes. Eu uso papel higiênico demais. Cada um com seu crime ambiental.

Eu reponho o sabonete dele, quando acaba. Ele me traz água no quarto, do jeitinho que gosto: 2/3 gelada e 1/3 natural. Eu coloco seu celular para carregar. Ele faz as contas para mim.

Ele pendura a roupa no varal. Vou lá, acertar os pregadores. Ele arruma a mesa para o jantar. Finalizo, colocando o que ele esqueceu. Ele guarda as coisas na geladeira. Surjo em seguida, realocando tudo. Ele lava a louça. Eu passo o rodinho na pia e reorganizo o escorredor. Eu finjo que não fiz nada. Ele finge que não me viu fazer.

Ele lê o que escrevo, bronqueia que não é indoor coisa nenhuma. Eu concordo com ele e me retrato: ele não é indoor coisa nenhuma.

Eu emprestei meus sobrinhos para ele. Ele emprestou os dele para mim. Nunca mais devolvemos.

Ele tem três filhos, dois comigo. Eu tenho dois, três com o dele. Dá tudo no mesmo.

A mãe dele colecionava “Mãos de Ouro”. A minha também. As duas, que não se conheceram, estão lá, tricotando pros anjos, cuidando de nós e inventando novos pontos para essa bendita trama de yin e yang.

Casamento é sorte, resiliência e bom humor. Na vida a dois, os opostos não se atraem; eles fazem sinal para o mesmo táxi. E dividem a viagem.

O resto é marmelada afetiva.

Nota: quer ler o que deu origem a este? Aqui.

Beijo de cinema

Foto: Marjolein

Há mais coisas na fila do cinema do que julga nossa nem sempre vã filosofia.

As duas moças encostam no balcão. Uma delas pergunta ao bilheteiro:

– Hoje tem a promoção do beijo?

Aquela, onde casais que se beijam na bilheteria pagam meia. Tem que ser beijo pra valer, de cinema. Selinho não vale, que ali não é Correio. É a hora do amor premiado: bom para beijoqueiros, bom para quem quer economizar. Bom para o dono do lugar, que fica lotado.

Sim, hoje tem promoção. A outra moça pergunta, baixinho e exatamente com os intervalos das reticências a seguir:

– E… precisa ser… homem e mulher…?

Receiam que a promoção não seja válida para elas. Talvez, uma condição prevista no regulamento, escrita em letras microscópicas, derivada de algum asterisco preconceituoso. Carecia confirmar.

O bilheteiro, pela primeira vez e por dois segundos, as encara e sorri:

– Não. Não precisa.

Quando eu era criança, na sala de aula, morria de vergonha de perguntar as coisas que eu não sabia ou não entendia. Invejava os colegas que levantavam a mão e expunham suas dúvidas – cabidas e descabidas – sem ficar com o coração palpitando, bochechas em fogo. Minha mãe ensinava que não se devia trazer dúvida para casa. Como se dúvida fosse algo que se levasse para passear. Então, havia a que ia de casa para a escola. E tinha a dúvida que vivia nas ruas, como a das moças na bilheteria.

Regra esclarecida. As duas, num riso particular, só delas, se beijam. Beijo de dois segundos. Para combinar com o tempo do bilheteiro ou a pressa da vida – que não é tão moderna. Poupam, assim, metade do valor do ingresso. É justo; investiram o dobro da coragem que tantos, ao longo da fila, não ousariam. Economia, quem diria, não é só número.

Em meio à gigantesca e nem sempre afável sala de aula urbana, elas resolveram erguer a mão e sanar a dúvida. Arriscaram publicar sua cabida questão. Que não é pequena, tal a alma de quem ama.

O filme há de valer a pena.

Vai ou racha

Ilustração: Adreson Vita Sá

Nada deve ser mais ocultado num casamento que calcanhar rachado.

É preferível revelar o que aconteceu naquela viagem a Porto Seguro quando vocês ainda namoravam, fornecer detalhes da república onde você morou no tempo de faculdade, falar das suas vadiagens adolescentes e até confessar que já beijou uma mulher, a expor na relação um par de calcanhares prejudicados. Será o fim. Restará, apenas, decidir quem fica com a Nespresso.

Antes seu marido descobrir que não foi você a autora do salmão ao molho de gengibre que o conquistou no primeiro jantar na sua casa, que você espia o Facebook do sócio dele todo dia e que aquele vestido não custou cento e cinquenta reais, do que vocês terem uma noite de amor interrompida por um carinho, digamos, mais cortante sob os lençóis. Pior: ter que explicar por que namora sempre de meia soquete.

E a culpa é toda sua. Passa o verão metida em rasteirinhas, anda descalça pelo quintal curtindo sua fase natureba de “conexão com a terra”, capricha no hidratante da região superior e negligencia a inferior. Pensa que só as formigas e seres rastejantes notam seus pés e que semiárido é somente uma região do nordeste. Não, querida. Passível de justa causa, sola de pé desertificada tem peso dois em relação à celulite. Depois não reclame. Nem chore de saudade dos tamancos e dos sapatos Chanel.

Se o problema lhe assolar, mantenha o segredo a sete chaves (e jogue todas fora). Veja o que aconteceu a Aquiles. Em períodos de seca, para poupar o relacionamento e a palmilha dos seus calçados, lance mão de tudo que disserem para você fazer. De simpatias a receitinhas caseiras – sempre escondida, na calada da noite. Invista uma grana preta naquela dermatologista que não atende nenhum convênio. Faça promessa para Santa Rita, a das causas impossíveis. Se nem ela topar, peça emprestado ao marceneiro de sua confiança a lixadeira e a politriz. Recorra ao SUS.

Ou vai, ou racha.

O pum essencial

Foto: Juan Andres Martinez/Flickr.com

Soltar pum perto do marido, no recôndito do lar, não é, exatamente, sinal de intimidade. Não configura crime, talvez contravenção. Indício de que se passou muito tempo depois do “sim”. Red alert?

Nove entre dez flatos não escaparam, foram libertados. Seria o alforriado mais nocivo ao casamento que toalha molhada na cama, tampa do vaso sanitário levantada, calcinha pendurada no box, arrotos de setenta decibéis e outros clichês da vida a dois? O pum fora de contexto pode cheirar tão mal quanto a frase proferida do jeito ou na hora errada: “Temos mesmo que almoçar com seus pais?”.

Fechar, ou não, a porta antes do xixi na suíte do casal, eis a questão. Os manuais das boas maneiras entre maridos e esposas pregam que sim. E se o aperto surgir, incondescendente, e estiver passando na TV do quarto uma entrevista com a Adélia Prado? E se for a final do Brasileirão? Quando se compartilha a esponja do banho, fica difícil estabelecer as fronteiras entre o público e o particular. Aonde vai morar a liberdade quando os CEPs se unem? Tolice tentar manter intacta a aura do translúcido véu de noiva.

Que casamentos são um conglomerado de concessões e negociações, até os filhos percebem. Obedecer aos tais manuais, porém, é simplesmente fazer coro no lugar-comum da vida a dois. Há que se reinventar a intimidade pós-casório. Não há segredo que resista ao fio dental, ao gargarejo, ao aparo das unhas dos pés. É preciso criar novas configurações de privacidade, como se faz nas redes sociais. Saber injetar (com o perdão do trocadilho) um gás na relação e manter as coisas acesas, sem depender das portas fechadas e das charadas amorosas que, com os anos, vão ficando tão fáceis de adivinhar.

O cofre de um casamento é outro.

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Quem precisa da Supernanny?

Zapeio a TV para cima e para baixo. Não resisto: estaciono num daqueles reality shows de babá. A gente gosta de saber que outros pais também se estrepam com uma cria levada da breca. É um espelho. Eles nos fazem sentir, digamos, menos só nesse oceano de águas nem sempre calmas da maternidade (paternidade também). As cenas são assustadoramente familiares. Ao final, porém, há algo que incomoda. A serviço de quem, exatamente, estão esses programas? Dos pais e mães desesperados com sua prole indomada, ou dos psiquiatras, psicólogos, fabricantes de Florais de Bach, benzedeiras, enfim, a turma para quem dá vontade de correr pedindo ajuda, já que (quase) nada sugerido pela Superbabá funciona, efetivamente, numa casa?

Termino de assistir, com a sincera fé que bastarão um quadro pregado na parede com a nossa nova rotina de horários e atividades, uma lista de combinados pode-não-pode, uma sessão vapt-vupt de terapia, e plim! Nossos pequenos virarão anjinhos de candura e atenderão, sem pestanejar, ao chamado para a hora de nanar; eu e meu marido estaremos aptos a negociar com sabedoria impecável quanto tempo eles ainda podem ver TV antes de fazer a lição; e a imposição de limites será tão simples quanto ensinar o gato que ele não pode subir na pia da cozinha. Tudo no prazo de uma semana! Confesse: você já caiu no conto da Superbabá.

A Superbabá, aliás, tem esse nome porque, na verdade, trata-se de uma entidade com poderes de super-herói, e como tal, inacessíveis aos humanos. Quando um prédio vai desmoronar, ou um trem com centenas de criancinhas está prestes a descarrilar, o Homem Aranha ou o Capitão América aparecem. Da mesma forma, se o mais velho resolve guardar o caçula na geladeira (porque está calor), e depois se esquece dele, a Superbabá vem voando. Mas a vida, acredite, não é um HQ.

Reality shows de babá são como as revistas de moda. A gente compra na banca, senta na poltrona da sala com um cafezinho ao lado e vai folheando, assistindo as dicas. Quando resolvemos adquirir aquela saia longa maravilhosa, e a vestimos em casa, vemos que ela não ficou igual à modelo na foto. Ficou diferente. A saia é a mesma, mas cada corpo é único. Assim é cada família. Apesar das semelhanças entre elas, cada uma tem seu mecanismo, sua história, seus cenários. Photoshop não funciona numa família. E não dá para ficar chamando a Mulher Maravilha a toda hora. (Ela também deve ter lá os seus afazeres de mulher comum, nas horas vagas.)

O que esses programas desejam, no fundo, é um plano maquiavélico: instalar nas casas uma caricatura de família perfeita, igual àqueles adesivos grudados na traseira de nove em cada dez carros circulando pela cidade. Neles, toda felicidade é possível – e exibível. Qualquer conflito é reduzido a quase zero, resolvido num piscar de olhos com uma solução-padrão. Eles se esquecem que filho só é razoavelmente programável enquanto ainda está na barriga. Bebê-conforto, no máximo. E olhe lá.

Não tenho o tal adesivo no meu carro. Nunca chamamos uma Superbabá para escarafunchar a intimidade do nosso lar. Jamais exporíamos, em território nacional, as nossas mazelas. Talvez, por isso, continuamos cortando um dobrado para convencer os filhos a tomar banho. Isso é reality. Não é show.

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O pesadelo da ambulância

r8r, óleo sobre canvas, 16x20/Flickr.com

Sei que é hora de renovar a lingerie não quando o marido dá indireta, mas se imagino a sequência de cenas: bato o carro e preciso ser levada ao hospital; na ambulância do SAMU, os paramédicos fazem os primeiros socorros; rasgam tudo e, enquanto conferem meu coração, flagram meu sutiã, um dia alvíssimo, convertido num estranho off-white; as alças, semirretorcidas, a denunciar a terceira idade da peça; em seguida, apalpam meu abdome em busca de algum sinal de hemorragia; assombrados, descobrem a imensidão de microbolinhas em torno do esgarçado elástico da calcinha, cujo lacinho frontal há tempos foi para as cucuias, e em seu lugar há apenas a marca do ponto feito à máquina. Fosse real, o melhor a fazer seria fingir-me de inconsciente.

Não é desprezo pelas roupas íntimas. É uma justificável resistência a investir nessa categoria de vestuário – apesar de eu reconhecer sua beleza e, digamos, importância. Ao contrário do que parece, tenho disposição para adquirir novas roupas de dormir e sonhar e amar. Porém, na hora do vamos ver, entre dispender um salário mínimo em peças de baixo (as boas custam uma fortuna) e a mesma quantia nas de cima, eu vacilo. O íntimo que me perdoe, mas o público é fundamental. As de baixo ficarão, como o próprio nome diz, por baixo. Ocultas. Nem eu as vejo direito, quando estou vestida. E o que os olhos não veem, o coração ignora. Volto para casa com vestido novo. Sapatos e bolsa também. Sempre acho que fiz um bom negócio. O arrependimento vem quando lembro da ambulância do SAMU. Tarde demais. Agora, só mês que vem.

Talvez a síndrome não atinja apenas as minhas roupas íntimas. Outras seções do meu guarda-roupa também costumam ser afetadas, e não é de hoje. Nos tempos de faculdade, por exemplo, certa madrugada dei carona à amiga, depois de uma noite inteira estudando em casa. A ida se deu sem novidades. A volta, nem tanto. A garoa caía fina. E havia uma curva no meio do caminho, no meio do caminho havia uma curva. Resultado: engavetei no Minhocão. Fomos todos – eu, minha irmã (que estava no banco do passageiro) e demais motoristas envolvidos – à delegacia providenciar o boletim de ocorrência. E eu, com o pior pijama do meu prejudicado acervo. Como nesses lugares há de tudo, passei despercebida.

Um lento assassinato do casamento, três ou quatro amigas insistem em profetizar quando o assunto vem à tona. Que mentira, que lorota boa! O que destrói um relacionamento não é lingerie velha. São outras velharias, escondidas nas entranhas do dia-a-dia. Ideias, ilusões e desejos frouxos, um dia tão firmes como os elásticos da charmosa meia sete-oitavos. Um olhar desbotado para a paisagem do quarto. Sorrisos amarelados no café-da-manhã. O ‘eu te amo’ surrado e sem brilho, dito às pressas para encerrar a ligação. É o amor sem laço, nem fita, nem bordado. E nenhum atendimento de urgência resolve. São coisas mais danosas que qualquer desfile de calcinhas e sutiãs acostumados a máquina de lavar, alvejante e varal.

Melhor eu redobrar a atenção no trânsito.

Casamento

Ilustração: Silvia Falqueto/Flickr.com

Marido deixa microrrecados românticos ao lado do chuveiro, de vez em quando. Ele toma banho antes de mim. Compõe suas pequenas missivas usando aquelas letrinhas coloridas de EVA que grudam nos azulejos, deixadas ali pelas crianças em dia de ducha coletiva. Ele envia, eu recebo depois. O banheiro é a nossa caixa postal.

São recados curtos, de carinho imediato, mais breves que um tweet. Já não há tantas letrinhas disponíveis – o alfabeto de brinquedo, de tão antigo, foi se perdendo com o tempo. Quando eu os leio, ele já está longe, enfiado em reuniões e outras chatices corporativas. Gosto de imaginar que ele me imagina sorrindo nessa hora. Outro dia, um minimalista ‘super woman’ me aguardava no box ainda embaçado pelo vapor de seu banho, anunciando o bom dia. Percebi que o W era, na verdade, um M de ponta-cabeça. Aquele foi fácil de responder: tirei duas letras, W e O. Superman. Ficamos quites. Em outra ocasião, faltava um U à minha microfrase. Virei-me como pude, deixando coladinhos um L e um I. Criatividade e improviso, mais que tudo, deveriam constar como obrigações na certidão de casamento.

Nem sempre, porém, dá para ser lacônica. Eu, que estou mais para palavrosa, se pudesse, ocuparia o banheiro inteiro com meus bilhetes. Escreveria cartas com frente, verso e avesso. Que continuariam nas paredes do quarto, alcançariam o corredor, escorreriam pelas escadas e ganhariam o quintal. A super woman aqui é aprendiz na arte da concisão. E inveja no super man tal poder.

Há também os recadinhos escritos com lápis de olho no espelho, sobre a pia. Devidamente codificados, para que fiquem entre nós. Às vezes, apenas um ‘boa viagem’, ou uma força para aquele dia que, sabe-se, vai ser longo. Às vezes, em inglês, para os pequenos não decifrarem.

Nenhum dos dois, no entanto, manda recado ao outro pelas letrinhas nos dias em que a casa cai. Nem mandando lamber sabão, tampouco pedindo desculpas. Não se lava roupa suja no chuveiro. Nossa caixa postal é protegida contra insultos, tem Blindex. Ali, só o lado A do casamento. Ali, só correio elegante.


Nota: quer ver o que veio depois deste? Aqui.

Crônica de minuto #7

Todo dia, o gato vem zanzar na frente do computador enquanto eu escrevo no blog. Se roça em tudo, como quem diz “Estou aqui”. Até a hora que – não falha – ele derruba a webcam com o rabo. Todo dia, eu reclamo. Todo dia, ele se faz de desentendido. Todo dia me levanto, recoloco a câmera no lugar e ele ganha um afago. Todo dia, ele salta da mesa e vai embora, feliz. É o nosso jeito de discutir a relação.

Frente, verso e prosa

Ilustração: Johanesj/Flickr.com

De costas, ninguém é fresco. De costas, não se vê bom nem mau humor. De costas, não existe pessoa triste. Nem feliz. De costas e à noite, todos são pardos como os gatos. De costas, tudo é ausente. Não há documento com foto da pessoa de costas. A identidade está na frente. O sexo está na frente. A bondade, tal a maldade, está nos olhos. Que estão onde? Três dos cinco sentidos estão na frente. Caminhar de frente é fácil. De costas é que são elas. Em alguns casos, literalmente.

O moço deixou o troco de três reais para o sorveteiro e, apressado, atravessou a rua. Cruzou na frente do táxi que freou para não atropelá-lo, trombou com um casal que esbravejou em alemão, desculpou-se em francês. Desviou do homem que varria a calçada e alcançou a moça de longos cabelos vermelhos, presos num rabo-de-cavalo frouxo, escolhendo pêssegos numa banca. Tocou-lhe as costas, ofegante e confuso:

– Lara???

Assustada, a ruiva virou-se e apertou a bolsa na frente do corpo. Pensou ser assalto. Mas não era nem assalto, nem era Lara.

– Meu nome é Laura – a moça respondeu, desconfiada.

Por trás, Laura e Lara eram iguais até no jeito de arrumar os cabelos. De frente, nem tanto. Ele ficou, por um segundo, envergonhado pelo equívoco. Outro segundo, constrangido por continuar encarando a moça, sem lhe pedir desculpas pela trapalhada. E mais um segundo, embasbacado: Laura era mais bonita que Lara. Laura tinha um quê a mais. Um “quê” não, um “u”. Às vezes, uma única letra altera uma palavra, que modifica um sentido e transforma uma história inteira. Às vezes, três segundos e a vida toma outro rumo.

– Acho que você se enganou… – ela resmungou, retomando a seleção de seus pêssegos.

Engano: substantivo masculino. Significados: ilusão, erro, logro. Laura não se parecia com nenhum deles. Laura era linda. Mais que Lara – esta sim, bem traduzida pelas três acepções. Fora embora há um ano, sem deixar rastro ou bilhete. Levou a cafeteira, o Genius que ele guardava desde criança, as violetas da varanda e o gato. Ele encarou, não sem certa dor, todas essas perdas. De costas não se enfrenta nada. Agora aquela moça, metade parecida com Lara, a moça desaparecida com o vento, surgia para perturbar. Ou para resolver. Quem é que sabe o que está por trás, ou à frente, das coincidências?

– É… Eu me enganei um dia – ele explicou, ainda ofegante e já um pouco feliz, mãos apoiadas na cintura – Não vou me enganar de novo.

Laura não compreendeu. Nem poderia. Ela não era Lara.

– Engraçado – ela foi dizendo, enquanto buscava o perfume de um pêssego – você também me lembra alguém…

Ele ficou mais ofegante, e mais feliz ainda pela trela que a moça lhe dava. Teria algum tempo para decorá-la. Assim, se não a visse de novo, bastaria fechar os olhos e ela brotaria à sua frente.

– Vira um pouquinho seu rosto de lado? – ela pediu.

Ele exibiu seu perfil, hesitante.

– Minha nossa! Você é igualzinho… – ela sorriu, desconversou e quis saber quanto eram os pêssegos.

Nem só frente, nem apenas verso. Outra dimensão se apresentava aos dois. Ela já buscava uma nota de dez na bolsa quando o dono da banca, que até então não havia entrado na história, anunciou:

– É um presente do cavalheiro, senhorita.

Piscou para o rapaz, que entendeu e topou o negócio. Depois voltaria ali para acertar. Nada como pensar lá na frente.

Buscadores de lembranças

Ilustração: Ravenelle/Flickr.com

Atire a primeira pedra quem nunca procurou ex na internet. Seja solteira, casada ou tico-tico-no-fubá. Feliz no casamento, nem tanto ou nem um pouco. Por saudade, curiosidade ou falta do que fazer. De qualquer idade. O impulso é democrático.

Vamos combinar: isso não constitui traição. Não representa, necessariamente, recaída ou interesse num revival. Nem é prova incontestável de crise conjugal, existencial, ou as duas juntas. Psicólogos de plantão que me perdoem, mas o negócio pode – vejam bem, pode – ser mais simples: trata-se de querer saber por onde anda quem um dia andou com você. Descobrir se engordou. Se está grisalho. Saber onde está trabalhando, se casou, teve filhos. Se terminou aquele mestrado em Direito Penal ou abriu um boteco. Se é feliz, se virou monge, se está em expedição na Antártida ou se alugou um apartamento no seu bairro. Ou se sumiu do mapa e há dois anos não telefona nem para a mãe no Natal. Sem motivações rocambolescas e, uma vez saciada a curiosidade, retomar os afazeres sem maiores inquietações ou aflições.

Para dar conta da atualização afetiva, com ou sem segundas intenções, quem precisa de vidente se existem os buscadores, as redes sociais? Google, 123People, Orkut, Linked in, Twitter, Facebook, todos podem dar boas pistas em poucos segundos, uma proeza para qualquer esotérico profissional. Vale quase tudo na hora de sondar um paradeiro. Que mal há? É preciso, porém, ter boa memória para fornecer primeiro nome, nome do meio e sobrenome, cuidado com os homônimos e paciência para varrer os resultados sugeridos – melhor incluir as aspas na pesquisa. Quem é tradicional recorre ao método antigo: liga para a amiga do primo da cunhada que trabalhava com o fulano, estabelecendo uma espécie de corrente investigativa. O sigilo, nesse caso, passa ao largo do absoluto. Não há política de privacidade e o ex vai ficar sabendo, o que pode ser boa ou má notícia, dependendo do passado – e presente – em questão.

Às vezes, nem se trata de um ex de verdade, como ex-marido, ex-noivo, ex-namorado. Somente um ex-quase. Ou sequer ter chegado a isso. O amor platônico da faculdade. O dono da academia de ginástica onde você queimou mais suspiros que calorias. O moço cheio de esperança que lhe entregou um cartão com nome e telefone numa livraria e você, boba, jogou fora. As histórias de amor que foram sem nunca terem sido. Por culpa do Cupido, que estava de folga no dia. Ninguém é de ferro. Para dar uma forcinha nos assuntos do coração na era da informação, Santo Antonio deve ter sido convidado a fazer parte do Conselho Executivo do Google. Será que ele topou?

Fazer essa busca na internet também pode ser tudinho que você está pensando. É parte de um plano de ataque, minuciosamente elaborado sabe-se lá por quais razões – afinal, ninguém tem nada com isso, exceto quem vai para escanteio logo, logo. Talvez, uma sessão nostalgia, com direito a imaginar o que teria acontecido, não fosse o adeus. O adeus de comum acordo. O adeus sem acordo. O adeus sem adeus. Para tal, as vantagens da internet são imbatíveis. Auto-serviço, razoável garantia de anonimato, flexibilidade de horário. E ainda é de graça. Pode-se apagar o histórico da fuçação no browser. Afinal, será difícil explicar depois que focinho de porco não é tomada. Na iminência do flagrante, alternar para a página previamente aberta de um jornal online e disfarçar – “Quem será que ganha no segundo turno, hein?” – é tão rápido quanto o piscar de um par de olhos ressabiados.

A internet, no entanto, não emite opinião. Não resolve angústias. Não faz terapia. Nem aconselha. No caso de se querer saber se o ex ainda sente alguma coisa por você, ou se vocês têm alguma chance, ela não serve. Aí, só a vidente. Porque nem o santo casamenteiro vai querer se meter nisso.

João e Maria

Ilustração: Kilgub/Flickr.com

João e Maria trabalhavam na mesma empresa. Ela era de Compras; ele, de Vendas. Ela falava ao telefone o tempo todo, fazia cotação, negociava, ficava nervosa, fechava negócio, pedia para entregar rápido. Ele passava o dia na rua, visitava cliente, negociava, ficava nervoso, fechava negócio, prometia entregar logo. Encontravam-se apenas na hora do cafezinho – Bom dia…, Bom dia! – e iam cada um para seu lado. Ela precisava comprar. Ele, vender. Mal sabiam que essas coisas andam sempre juntas.

João era solteiro. Maria também. João morava num apartamento velho, daqueles grandes. A casa da Maria era novinha em folha, dessas minúsculas. João tinha uma lambreta dos anos 50. Maria dirigia um jipe 62, herança do avô. Os dois nasceram na década de 70.

Maria andava de olho no João desde o último amigo-secreto. João nem percebia, bobão que era. Maria, tonta, se conformava.

Maria passava o fim de semana no sítio, fazendo trilha com o pai e cozinhando com a mãe. Faziam doces, geleias, comidinhas. Ela sempre voltava para casa com coisas gostosas, para a semana toda. Na casa avarandada, que dava dez da sua, tomavam café de coador, assavam pão pela manhã, falavam dos três tempos que regem o mundo: presente, passado e futuro. Maria reclamava da vida, abria o coração e dele sempre saía João. Quem sabe não tirava umas férias para esquecê-lo? A mãe dizia que ela não precisava de férias coisa nenhuma. Precisava era namorar. Todo sábado elas preparavam uma fornada de biscoitinhos da felicidade, batizados assim pela avó, para que ela levasse ao trabalho. As colegas gostavam. Um dia, ao tirar a assadeira do forno, Maria arregalou os olhos. Não sabia que estava com a felicidade nas mãos.

Chegou abril e o outono já se acomodara no ar. Maria lia o jornal quando se deu conta: ainda não havia feito seu imposto de renda. Vivia fazendo conta para os outros. Lidava com o dinheiro dos patrões, mas não cuidava do seu. Embananava-se com os próprios números. Renda, para ela, só em vestido ou cortina. O irmão caçula fazia o imposto para ela, todos os anos. Mas daquela vez ele não poderia quebrar seu galho.

João precisava fechar os pedidos da quinzena. Foi visitar um cliente antigo que já havia virado amigo. Beberam um espresso, falaram do Brasileirão. João reclamou da vida, abriu o coração, disse que precisava de férias. O cliente disse que ele não precisava disso, precisava era namorar mais. João arregalou os olhos. O cliente sempre tem razão.

Fim de abril. Quem deixara para fazer o imposto na última hora corria atrás do tempo. Na empresa, uns aproveitaram o almoço. Digita os dados, grava, envia, pronto. Maria nem sabia por onde começar, o jipão entrava ou não? João aproximou-se da sua mesa e quis saber do que eram aqueles biscoitinhos. Experimentou um. Repetiu. Olhou para a tela do computador e viu nela refletidos os olhos perdidos da Maria. Perguntou se ela queria ajuda. O dele estava pronto há dois meses, moço precavido.

E foi assim, parecido com a canção: João ensinou Maria a fazer imposto de renda. Maria ensinou João a namorar. Logo ela, que nunca havia feito declaração de amor. Nem completa, nem simplificada.

Som na caixa

Foto: Laura Bell/Flickr.com

Não é sexo. Nem rotina. Nem doença ou falta de dinheiro. Tampouco filho. O que põe um casamento à prova é andar junto no mesmo carro. Seja por quatro dias, quando o de um está na revisão; por anos, se as vacas são magras; na viagem de final de semana ou simplesmente no caminho para o almoço de domingo. Quando o casal coabita o mesmo veículo, a despeito da vasta literatura sobre a batalha dos sexos antes e depois de Karl Benz ter inventado o automóvel, o que está em jogo não é quem dirige melhor, quem tem mais ou menos pontos na carteira, quem usa a seta, qual dos dois é capaz de chegar ao destino sem GPS ou frentista de posto. É quem controla o som.

O condutor não deve se distrair com o dial, nem com a sequência das faixas do MP3. Caberá ao passageiro assumir as rédeas e definir a programação musical que acompanhará o casal. Nesse cenário, nada será pacífico. Quem finca sua bandeira no aparelho não deseja dividir o poder, quer reinar sozinho. Conflito à vista. O tempo todo, ambos discutirão a configuração (volume, graves e agudos) e a trilha sonora propriamente dita. Nenhuma escolha pessoal é bem-vinda. Toda individualidade será castigada. O coletivo há de vencer. Resultado: os dois bufarão, cada um de um lado, e se perguntarão onde é que foram amarrar suas éguas. Assim como o casal tem a música que embalou o início da sua história de amor, logo terá também a que representa seu fim.

O mesmo ambiente será palco de outra disputa: a temperatura do ar-condicionado. Na sua ausência, outro embate: um quer janelas fechadas. Outro as prefere abertas. Sem falar na co-direção e na síndrome de instrutor de auto-escola, comportamento incontrolável daquele que ocupar o banco do carona.

Carro é o quarto do casal sobre rodas. É quando a intimidade se desnuda. As manias, antes apenas contornos, ganham preenchimento. Sentimentos inéditos vêm à baila. No carro é onde os bois recebem nomes, e os is, seus respectivos pingos. Sutiãs são queimados no acendedor de cigarros e desabafos contra a TPM eclodem entre um semáforo e outro.

Nada é páreo, porém, para o controle do som. Que não deveria ser chamado de opcional. Muito menos de acessório.

O inferno é aqui

Ilustração: Fractal Ken/Flickr.com

Só percebi que era briga quando ele, já alguns decibéis acima da média para o local, lascou: Vai pro inferno. Antes, ela havia dito que o cartaz escrito ‘batata baroa’ estava errado, aquilo era mandioquinha. Ele afirmou que era tudo igual. Ela rebateu, tudo igual uma ova. Ele falou que tanto fazia, qualquer uma que ela cozinhasse ficaria ruim. Ela culpou a sogra pela ignorância dele. Foi quando o inferno entrou na roda. Cogitei, por um instante, meter a colher e informar que não só é tudo a mesma coisa, como as duas também atendem por batata salsa. Mas não era tubérculo nenhum o culpado pelo desentendimento. Aquilo ali era antigo. E eu, que não sou boba, fiquei de bico calado. Como a protagonista do bate-boca não estava na minha lista, passei para as abóboras. Não sem antes imaginar como a história continuaria.

Supondo que ela tivesse prestado atenção ao insulto – e sei que não o fez, pois seguiu conduzindo o carrinho pelo supermercado como se nada tivesse ouvido e havido – o que se faz numa hora dessas? Devolve na mesma moeda, ou seja, com um insulto maior? Esbofeteia, na frente do repositor, o companheiro? Faz, ali mesmo, purê dele? Ou picadinho? Histórias assim não costumam ter final feliz. Embora, em tese, todas tenham tido um bom começo.

Difícil é saber o que fazer depois de ter, na vida a dois, ultrapassado a última fronteira antes do ódio. Ou pior, da indiferença. Complicado é compreender como se chega a esse ponto. Uma simples conversa sobre nome de comida, um regionalismo ingênuo, ser capaz de acionar tantos botões num relacionamento. O das mágoas mal digeridas, o das tristezas recolhidas e cozidas, o das paciências assadas e esturricadas, revelando uma frágil e irremediavelmente condenada engrenagem.

Ele e ela haviam alcançado o estágio onde qualquer hora é hora, qualquer lugar é lugar para demonstrar o desafeto. Como se desejassem que as pessoas à volta ficassem cientes do que estava acontecendo e intercedessem, tomassem partido, fizessem alguma coisa, pelo amor de Deus. (Parecido com aquelas comédias românticas onde o mocinho, no restaurante, pede alto e em bom som perdão à amada, seguido de mil explicações. E, de repente, todos os clientes ao redor entoam em coro “Perdoa!”, aplaudindo, por fim, o beijo que sela a remissão.) No fundo, o casal que briga em público não ignora, nem teme, a plateia. Ao contrário, ela lhe é fundamental: o casal tem necessidade que alguém assista à sua insatisfação. Quer contar com o apoio, de qualquer natureza, do espectador. Faz questão de escancarar, doa a quem doer, o podre do outro. Precisa mostrar, cada um à sua maneira, quem tem razão. Nem que para isso lancem mão de uma batata – baroa, salsa ou coisa que o valha. O que vem à superfície numa discussão pública é, infalivelmente, ruminamento de anos.

Ela já estava no inferno, assim como ele. E nenhum dos dois sabia disso. Ainda.