Lições da Dona

Ilustração: Gustavo Peres/Flickr.com

A receita diz para deixar a massa descansar por trinta minutos. Acho engraçado. E massa lá fica cansada? Só gente e bicho é que carece de descanso, aprendi assim. “Não é isso, querida”, segreda baixinho Dona Benta – a própria, do livro. Ela conversa comigo: “Para ficar pronto, tudo precisa, antes, de certo repouso. Mas isso não vem escrito nas receitas”. Cá estou, ouvindo livro falar. Livro, não; a autora dele. Bem diferente.

“Feita de farinha, água e fermento, a massa que descansa não está à toa na vida, vendo a banda passar. Está se preparando. Se arrumando, bem bonita, para virar pão. Esse é o destino da massa. Se for ao forno antes da hora, não cresce direito. O pão fica feio, embatumado. Só passarinho é que vai gostar. Por outro lado, se passar da hora também estraga. Mas é a espera, o descanso, que garante que sua sina seja cumprida. Com gente é mais ou menos a mesma coisa, já percebeu?”. Me pega de surpresa, essa senhora. Só estou tentando fazer um pão para o lanche. Mas ela não para: “Gente precisa saber o seu tempo de descanso. Isso é simples. O relógio da Terra está sempre certo, é só ajustar o seu de acordo com ele”. E eu, achando que a Dona Benta só entendia de comida.

O relógio do meu avô estava sempre certo. Ele costumava fazer a sesta. Depois do almoço, chupava uma laranja e ia se ajeitar na poltrona. Recostava-se e punha uma almofada atrás da cabeça. Cruzava os braços e tirava sua soneca, sentado mesmo. Preparava-se para os afazeres da tarde, que não eram poucos. Inventar traquitanas para facilitar a vida da minha avó, alvejar sacos de algodão para fazer panos de prato, buscar cimento no carrinho de mão. Os três pilares fundamentais: alimento, descanso e movimento. Não entendia por que não se deitava de uma vez. Nunca perguntei, então, ele nunca respondeu. Hoje sei: o descanso do dia não deve ser igual ao descanso da noite. Meu avô, que sabia disso, viveu quase cem anos. O descanso sagrado, mais a mania de subir no telhado feito gato, por certo ajudaram na sua longevidade. Eu, que não faço sesta, nem subo no telhado, devo ser forte candidata a uma vida breve.

“Já acendeu o forno, querida?”, a quituteira quer saber. Ih, esqueci. “O que está esperando? Papai Noel?”. Engraçadinha, a velhota. Corro com os fósforos. Em silêncio, na tigela sobre a pia, a massa parece meditar. Sabe de sua missão, que é ser pão. E espera, pacientemente.

Deus, dizem, só descansou no sétimo dia. Não acredito. Fazer mundo é trabalho dos mais penosos. Duvido que, assim que inventou os dias, não tenha feito a sesta, como meu avô, antes de continuar a criação. Além do mais, universo não tem fim. Há sempre alguma coisa para ser criada ou consertada. Meu avô pensava assim. Começo a entender o negócio da imagem e semelhança.

Fecho o forno, guardo o livro e os mantimentos que espalhei pela cozinha. No relógio cinza e branco que, aliás, pertencia ao meu avô, marco o tempo. Agora ele está sincronizado com o da Terra. Como Dona Benta ensinou. Ela deve ter ficado triste comigo, não lhe dei muita bola. O que ela não sabe é que prestei muita atenção a tudo que ela disse. Tudinho.

16 comentários em “Lições da Dona

  1. Tenho tentado aprender a reduzir a marcha e entender o tempo. Meu relógio…difícil arte esta. mas vou tentando, insistindo e quem sabe um dia terei a paciência para ver o fermento crescer lentamente…beijos e lindo texto!

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  2. Sil querida,
    linda reestreia. Tão bonito seu texto.
    E fiquei pensando se não estou neste tempo de descanso da massa….
    A Lê nasceu, o profissional esta ótimo…..mas ainda falta alguém. E fico me sentindo como a massa do pão….descansando para o bom que virá.
    Muito legal. Me fez pensar.
    E o visual do blog….ficou lindo.
    Quantas saudades, amiga querida.
    Você esta sempre em meu coração.
    Muitos beijos,
    Ana

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  3. Ah! O Bruno aí embaixo falou do Nilton Bonder… Lembra dele Sil? É o mesmo de alma Imoral… Coincidência, né? Sabia que peça vai reestreiar no dia 12/03 após um breve “descanso”…
    A massa tá pronta pra ir pro forno?

    Bjs

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  4. Olá Silmara.

    Como era de se esperar, você voltou em grande estilo. Esse seu texto de reestreia, sobre o tempo, os ritmos naturais e o descanso necessário me lembrou daquele texto famoso “Os Domingos precisam de feriados”, do Nilton Bonder.

    Ademais, é bom saber que você tenha voltado, e que novos textos surgirão em breve. Eu também estou nesse movimento, na tentativa de retomar as publicações.

    Um abraço. Bom retorno!
    Brunno.

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  5. D. Benta era o livro de pé de fogão (e forno) da minha mãe, depois se soltou e não segue mais receitas… inventa.
    Amei a reflexão sobre o tempo de descansar, de maturar, de crescer como a massa… pra “forjar no trigo o milagre do pão”.

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  6. Silmara,
    Você voltou, que beleza!
    Mais uma entre milhares de vezes, parabéns! Pela sua leitura gostosa, leve, carinhosa, amena. Um verdadeiro alento para os nossos dias!
    Um beijo carinhoso, boa volta, Núbia

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  7. E pelo jeito você descansou o tempo certo, porque voltou no ponto.

    (O tempo para o blog cumprir seu destino e virar livro é agora.
    Vê se presta muita atenção nisso. Porque não sou Dona, mas também sou Benta.)

    Beijinhos
    (csf)

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  8. Oi querida!

    Fiquei curiosa aqui… Se pra todas as coisas tem um tempo, qual seria o tempo de um blog cumprir o seu destino e se transformar em livro? Huuuum! Acho que vou perguntar a Dona Benta!

    Bjs
    (csf)

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  9. acho incrivel como vc tem o dom de enxergar licoes em coisas simples…
    mas me diga: esta assim mesmo no livro? fiquei curiosa… mas la no fundo, acho que as palavras estao tao bem colocadas que tenho quase certeza de que sao suas, apesar das aspas.

    beijo, querida, e seja bem voltada, como ja disse por email!

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  10. Eu ficaria te lendo o dia inteiro. Não me cansaria… como não me canso de repetir: VC É ÓTIMA!!!!!
    Te adoro e AMO suas letras!!!!!

    Sabedoria sem fim esse negócio de descansar pra poder cumprir a missão. É.. gente tb é assim…
    Bj, minha querida!!!

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  11. Olá Silmara!

    Que belo texto para retomar os posts do blog! A sabedoria das vovós é algo a se prestar atenção. Provavelmente a longevidade e saúde dos velhinhos era devida ao respeitar os limites do corpo e não tentar fazer caber mais afazeres ou horas no dia do que é natural. Hoje vivemos de forma bem diferente, e estamos pagando o preço com gastrites, estresse e frustração.

    Adoro a poesia que você sempre usa em sua prosa!

    Grande beijo!

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  12. Oi Sil!
    Já estava com saudades! Mas não perdi as curtas do facebook. Uma bela maneira de começar o dia, (o meu, no caso), com esse texto lindo e tocante, liçõe de Dona Benta, pelas palavras de Dona Silmara, Acho que tenho que apender a tirar uma sesta, sentada no sofá…
    Um beijinho
    Josi

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