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O sofá listrado

Deitei os olhos na fotografia de quando eu era em preto-e-branco.

É do sofá listrado que vou dizer. Embaixo do assento havia uma espécie de baú para guardar coisas. A gente o erguia e uma travinha fazia ‘clec’, mantendo-o aberto. Ali dentro, antigos cadernos escolares de nós três, provas de matemática, pastas coloridas com dobradura para o dia do índio, bandeira do Brasil pintada com lápis de cor, gibis e papéis que não contaram com destino melhor, reunidos em caótico acervo.

Essa era, aliás, uma característica da nossa casa. Uma gaveta dando sopa, um pedaço de armário, tudo virava abrigo para objetos aleatórios e quase sempre inúteis, como uma escova de cabelos quebrada, uma tampa órfã de caneta, um anelzinho de plástico que viera de brinde no chiclete Ping-Pong. Uma desorganização doméstica aparentemente inofensiva, a revelar o estado das coisas na casa de número um da vilinha da rua Natal.

De tempos em tempos, eu passava horas fuçando nossas lembranças impressas, no porão do sofá listrado. Se eu estava, por exemplo, na quinta série do ginásio, e encontrava um caderno do segundo ano primário, apesar de apenas três anos os separarem, ele já era considerado uma antiguidade. Antiguidade, hoje, é topar com algo de trinta anos atrás. Três anos? Foi ontem, oras. Gostava de folhear o caderno, comparar minha caligrafia de então com a anterior, reler os ditados de português, relembrar o nome da professora, observar meus desenhos. Eu me tornava uma criança encantada com a minha criança.

Quando trocamos o velho sofá por um mais moderno, sem listras, notei: cadê o baú? Não tinha. Onde ficaria nossa bibliobarafunda?

Meu reino para rever, hoje, aquela coisarada. Uma vezinha só. Folhearia meus cadernos e ficaria com vontade de abraçar a menina que fui. Alcançaria os gibis da Turma da Mônica, leria alguns do Tio Patinhas. Nas últimas páginas, a seção de cartas dos leitores-mirins que queriam se corresponder com outras crianças. Sempre prestei atenção aos seus nomes e endereços. Lembro que, um dia, me surpreendi ao ver a cartinha de uma menina (eu não a conhecia) que morava perto da minha casa. Não escrevi para ela. Que adultos se tornaram aquelas crianças?

Além do velho sofá listrado, queria escrever de novo na Olivetti Lettera, que a gente colocava sobre a mesinha de centro da sala e de onde saíram tantos trabalhos de escola, e também meus primeiros e tímidos escritos. Queria o Tommy no colo mais uma vez. Gato bonito, embora vivesse estropiado de tanto brigar com outros bichanos nos telhados. Nunca mais tive cabelos tão compridos assim. Queria reviver a fotografia inteira, com a estante que não aparece, a TV, o som, os duzentos LPs, o relógio cuco. Quem fez o clique?

Parte da minha vida cabe num baú de sofá. De tempos em tempos, ergo o assento, uma travinha faz ‘clec’, deixo-o aberto. Então vou revendo, em recordações listradas de saudade e melancolia, tudo que guardei ali.

A falta que o F me faz (*)

Vi o gato brincando com algo no chão, todo animado. Fui conferir, ele costuma torturar lagartixas. Nunca deixo, liberto todas e ele me odeia por isso. Atrás do pé da mesa, identifiquei o objeto de tanta alegria: a letra F do teclado do meu notebook.

A pobre consoante, parceira de tantas frases, caíra sabe-se lá como e agora era um pedaço de plástico sem ânima, arremessado de lá pra cá e de cá pra lá na sala de jantar. Como sempre faço com as lagartixas, ralhei com o gato e acabei com a farra. Tentei reimplantá-la, estudei-lhe a engrenagem, resisti à tentação do Super Bonder. Guardei-a para, um dia, levá-la à assistência técnica. Nunca fui. E não sei mais onde a guardei. O F se foi, para sempre. È finito.

Sei de cor sua posição no teclado, desde os tempos em que datilografava os trabalhos de História na velha Olivetti. É verdade que preciso apertar mais o dedo ali, no buraco deixado por ele. Como alguém que muda o andar quando perde uma perna, e nem por isso deixa de chegar aonde precisa. F F f F f f f f. Vê? Quem precisa da assistência técnica?

No teclado banguelo D e G ficaram sem o vizinho do meio. Sabem que F não morreu, só não está mais entre nós. Como um anjo virtual, ele segue conferindo significado à cada palavra onde é requisitado. Faca, farinha, aferição, fermento, afinidade, fantasia, elfo, fé (firme, forte). Franco.

Se alguém vai usar meu notebook deficiente, é preciso avisar da letra faltante. Igual quando se orienta uma pessoa que começa a conversar com um surdo, “Ele não ouve”. A pessoa fica incomodada, hesitante, com certo medo de piorar a situação.

Tem gente que perde braço, dedo, namorado, e aprende a viver sem. Se reinventa. Eu aprendi, por exemplo, a viver sem a minha mãe. O buraco (fundo) que ela deixou nem é mais buraco. E basta que eu me lembre dela para que ela exista. (Não sei, porém, se saberia me reinventar no caso da falta de um filho.)

As letras, como as pessoas, moram no pensamento. Não nos teclados.

Assim como da minha mãe, também sinto falta do F ao meu alcance, na ponta dos dedos. Acostumei-me, porém. Reinventei-me? Não sei. Só sei que continuo escrevendo felicidade do mesmo jeito.

 

(*) Licença poética de “A falta que ela me faz”, livro (indispensável) de Fernando Sabino.

O dersubu das amensons

arte: Károly Kiripolszky
arte: Károly Kiripolszky

Tente concluir alguma operação na internet – qualquer uma: deixar comentário no blog da comadre, comprar um livro ou enviar um simples email – e lá estarão elas. Implacáveis, desafiadoras da sua acuidade visual, insensíveis à sua pressa e, sobretudo, descrentes de que você é você. São as palavras de verificação, remédio amargo inventado para combater a doença do spam. Prescrito a todos, sem exceção. Até para quem não apresenta sintoma algum. Prevenção pura. É assim nas epidemias.

Como num jogo eletrônico, a função da palavra de verificação é impedir que você passe de fase. Um malévolo programa tentará lhe confundir: é um “i” maiúsculo ou um “L” minúsculo? A letra ó ou o número zero? Ele borrará o fundo, enfiará rabiscos no meio, distorcerá as letras. Sacaneará você, sem cerimônias. Um carrasco virtual, inexplicavelmente piedoso: serão-lhe concedidas quantas chances, ou vidas, você precisar. Ao detectar seu erro, outra palavra se apresentará e, diante do segundo equívoco, nova mistura alfanumérica, igualmente incopiável. E assim sucessivamente. O verdadeiro intuito não é auxiliá-lo, e sim testar seus brios. Checar até onde você está determinado na sua intenção. Até a hora em que seu chefe se planta ao seu lado, o telefone toca ou seu filho prende o gato no armário, e você deixa a verificação para lá. Não era nada tão importante assim. Depois você telefona para a comadre. Vai até a livraria e compra o dito cujo. Manda uma carta pelo Sedex. Mais fácil.

As palavras de verificação não são exatamente palavras. Oficialmente, são “imagens”. Para livrar dos tribunais quem as inventou, evidentemente. No entanto, se o objetivo é detectar se tem gente do lado de cá do computador, é incompreensível que não surjam de forma simples como banana, arara, cogumelo, casa. Não: tem que ser o indecifrável dersubu. As enigmáticas obvent e pargampu. A etérea amensons e a indizível muthst. Para não errar, você se concentra e, usando apenas o indicador, digita uma letra de cada vez. Confere na tela e, estando tudo correto, parte para a próxima letra. Sensação idêntica, para os mais velhos, a da primeira vez a sós com uma Olivetti.

Você fica na dúvida se a tecnologia está, de fato, a seu favor. Ou se é um movimento organizado em prol do idioma da nova era, conduzido por extraterrestres detentores de alta tecnologia, infiltrados em nosso planeta. Justo agora, que você aprendeu a se expressar em cento e quarenta caracteres e já havia se conformado com o huashuashua das mensagens instantâneas.

O futuro é incerto. Melhor se preparar.