Ilustração: Johanesj/Flickr.com
De costas, ninguém é fresco. De costas, não se vê bom nem mau humor. De costas, não existe pessoa triste. Nem feliz. De costas e à noite, todos são pardos como os gatos. De costas, tudo é ausente. Não há documento com foto da pessoa de costas. A identidade está na frente. O sexo está na frente. A bondade, tal a maldade, está nos olhos. Que estão onde? Três dos cinco sentidos estão na frente. Caminhar de frente é fácil. De costas é que são elas. Em alguns casos, literalmente.
O moço deixou o troco de três reais para o sorveteiro e, apressado, atravessou a rua. Cruzou na frente do táxi que freou para não atropelá-lo, trombou com um casal que esbravejou em alemão, desculpou-se em francês. Desviou do homem que varria a calçada e alcançou a moça de longos cabelos vermelhos, presos num rabo-de-cavalo frouxo, escolhendo pêssegos numa banca. Tocou-lhe as costas, ofegante e confuso:
– Lara???
Assustada, a ruiva virou-se e apertou a bolsa na frente do corpo. Pensou ser assalto. Mas não era nem assalto, nem era Lara.
– Meu nome é Laura – a moça respondeu, desconfiada.
Por trás, Laura e Lara eram iguais até no jeito de arrumar os cabelos. De frente, nem tanto. Ele ficou, por um segundo, envergonhado pelo equívoco. Outro segundo, constrangido por continuar encarando a moça, sem lhe pedir desculpas pela trapalhada. E mais um segundo, embasbacado: Laura era mais bonita que Lara. Laura tinha um quê a mais. Um “quê” não, um “u”. Às vezes, uma única letra altera uma palavra, que modifica um sentido e transforma uma história inteira. Às vezes, três segundos e a vida toma outro rumo.
– Acho que você se enganou… – ela resmungou, retomando a seleção de seus pêssegos.
Engano: substantivo masculino. Significados: ilusão, erro, logro. Laura não se parecia com nenhum deles. Laura era linda. Mais que Lara – esta sim, bem traduzida pelas três acepções. Fora embora há um ano, sem deixar rastro ou bilhete. Levou a cafeteira, o Genius que ele guardava desde criança, as violetas da varanda e o gato. Ele encarou, não sem certa dor, todas essas perdas. De costas não se enfrenta nada. Agora aquela moça, metade parecida com Lara, a moça desaparecida com o vento, surgia para perturbar. Ou para resolver. Quem é que sabe o que está por trás, ou à frente, das coincidências?
– É… Eu me enganei um dia – ele explicou, ainda ofegante e já um pouco feliz, mãos apoiadas na cintura – Não vou me enganar de novo.
Laura não compreendeu. Nem poderia. Ela não era Lara.
– Engraçado – ela foi dizendo, enquanto buscava o perfume de um pêssego – você também me lembra alguém…
Ele ficou mais ofegante, e mais feliz ainda pela trela que a moça lhe dava. Teria algum tempo para decorá-la. Assim, se não a visse de novo, bastaria fechar os olhos e ela brotaria à sua frente.
– Vira um pouquinho seu rosto de lado? – ela pediu.
Ele exibiu seu perfil, hesitante.
– Minha nossa! Você é igualzinho… – ela sorriu, desconversou e quis saber quanto eram os pêssegos.
Nem só frente, nem apenas verso. Outra dimensão se apresentava aos dois. Ela já buscava uma nota de dez na bolsa quando o dono da banca, que até então não havia entrado na história, anunciou:
– É um presente do cavalheiro, senhorita.
Piscou para o rapaz, que entendeu e topou o negócio. Depois voltaria ali para acertar. Nada como pensar lá na frente.
excelente. parece que assisti um curta daqueles premiados em festivais.
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Oi Sil!
Tenho lido em silêncio ultimamente, mas hoje precisava comentar: Genius! Ah, que saudade!
Beijo!
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Oi Sil
Bom dia!
Que linda história começa aqui… a poesia fica por tua conta e a continuação por nossa conta…
um beijinho
Josi
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