Sem pé, nem cabeça

Ilustração: Kenny Cole/Flickr.com

Não entendia como tanta gente perdia o sapato ao atravessar a rua. Menos ainda, como é que alguém poderia deixá-lo para trás. A pessoa não voltava para apanhá-lo, passado o carro e o susto. Ia para o trabalho ou para a escola assim, com um pé faltando. Faria o quê, depois, com um só? Sapatos não sobrevivem no ímpar, perdem a serventia. Ou nem todos.

Todo dia, em seu caminho, via um modelo diferente abandonado no meio-fio. Tênis, sandália, sapatilha, bota, chinelo. De homem, mulher, criança. Escaparam dos pés na travessia arriscada, “Olha o ônibus!”. Desde então, ficaram órfãos do irmão. Largados ao Deus-dará. Às vezes, virados para baixo, em claro prenúncio de mais azar por vir.

Rua não tem departamento de achados e perdidos. Sendo assim, o catador de papéis recolhia os pés avulsos que apareciam. Quem sabe, qualquer hora,  não toparia com os pares? O pessoal da limpeza, já acostumado, nem interferia. Para não levar bronca. Enquanto isso, ele aproveitava o que dava para uso próprio. Mocassim marrom no pé esquerdo, bege no direito, qual o problema? Sua única exigência era que calçassem o respectivo pé – um mínimo de dignidade, por favor. Ressentia-se por não poder usar os tênis lançados nos fios da rede elétrica. “Um desperdício, brincadeira de mau gosto”, rosnava, enquanto dispunha os pés solitários em seu carrinho, com esmero de vitrinista.

Certa vez, achou um sapatinho lilás de bebê-menina. Torceu para encontrar o par, assim guardaria para a netinha que nasceria no mês seguinte. Não encontrou. Mesmo assim, lavou-o com cuidado e costurou as florzinhas azuis de pano, quase despregadas, castigadas pelo vento e pela chuva. Na maternidade, serviu de enfeite de porta, anunciando a chegada da pequena Beatriz.

Só não pôde visitá-la. Foi barrado na portaria pelo segurança que o olhou atravessado. “Onde já se viu uma coisa dessas, meu senhor? Um sapato diferente do outro!”

3 comentários em “Sem pé, nem cabeça

  1. Lindo texto! Se os sapatos não “sobrevivem no ímpar”, vc tem uma sensibilidade ímpar ao escrever. Cada vez que leio um dos seus posts é impossível não me emocionar.
    Continue escrevendo essas coisas gostosas de se ler.
    Beijos

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  2. Silmara,
    Já virou uma “coisinha” muito gostosa, toda terça, dar uma passadinha aqui, ler um de seus posts e continuar a luta.
    Este, emocionou!
    Um beijinho,
    Núbia

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  3. Oi Sil,

    num é que já encontrei sapatos solitários em meio-fio de ruas… só assim sabia a história kkk.
    Nunca tinha pensado, mas é verdade “Sapatos não sobrevivem no ímpar, perdem a serventia.”

    lindo post!

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