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Falando de Vinicius

falando de amor

Dona Odila era a professora de Português. Usava um penteado démodé, e tinha gestos e falas formais demais para cativar a audiência adolescente do ginásio. Certa vez, estudávamos o Romantismo. Como lição de casa, deveríamos pesquisar e trazer para a aula seguinte um texto, de qualquer gênero e época, sobre o tema.

Não tive dúvida: copiei no caderno, caprichando na caligrafia, a letra de “Falando de Amor”.

Se eu pudesse por um dia,

esse amor, essa alegria,

eu te juro, te daria,

se pudesse esse amor todo dia

Foi na adolescência que descobri, pra valer, Vinicius de Moraes. O amigo do meu irmão nos emprestava seus LPs e nós gravávamos, em um tape-deck da Polyvox (bom pra chuchu), nossos próprios greatest hits, em antológicas fitas K7.

De vez em quando, depois das aulas, as amigas iam em casa, passar a tarde ouvindo música. E houve um tempo que a tríade sagrada – Vinicius, Toquinho, Tom – dominava a playlist. O que não era muito comum para garotas de treze anos. Eu decorava as canções, os sonetos, e me transportava para aquele universo idílico.

Dia seguinte, mostrei meu trabalho à professora. Dona Odila parecia encantada. Repetiu em voz alta alguns versos para a classe, marcando bem as palavras que caracterizavam a pauta da aula: amor, coração, alma. Reparei que ela, deleitada, até suspirava em algumas partes.

E, justo quando me descobri fã e dei para amar Vinicius, ele inventa de morrer. Era 9 de julho de 1980. Fiquei desolada, numa espécie de orfandade. Ou viuvez.

Choro eu, o teu cantor,

chora manso, bem baixinho,

nesse choro falando de amor

As K7 me consolaram. Hoje, aquele acervo que escorria sentimento mora no Spotify. O importante, ao final, é que o amor não morra. São quarenta anos sem o Poetinha. E a certeza de que a Dona Odila, naquele dia, estava, sim, apaixonada.

Memórias de uma ditadura militar

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As praias do Brasil ensolaradas

Lá lá lá lá

O chão onde o país se elevou

Lá lá lá lá

A mão de Deus abençoou

Mulher que nasce aqui

Tem muito mais amor

Eu botava o disco na vitrola e ia para o quintal, brincar no balanço. Um compacto com “Eu te amo, meu Brasil”, d’Os Incríveis. Decorei a letra e cantava bem alto, enquanto ganhava impulso no balanço e via, atrás de mim, o quintal de ponta-cabeça. Era começo dos anos 70, Brasil tricampeão.

Pouco depois, em 1973, entrei na escola. Uma vez por semana cantávamos o Hino Nacional e hasteávamos a bandeira. Nada contra o Joaquim Osório ou o Francisco Manuel, tampouco contra o símbolo augusto da paz. É que eu preferia ir brincar no pátio com meus amigos. Achava normais, porém, os rituais cívicos. Assim como soavam normalíssimos os versos ufanistas de Dom e Ravel na canção.

Já no ginásio, aula de Educação Moral e Cívica. Muitos tinham medo do Professor Vadim. Eu tinha. Ele era baixo e andava com dificuldade, tinha uma perna mais curta que a outra e usava um calçado estranho. Não era por isso que eu o temia. Austero, não me lembro de um sorriso seu. Mas lembro do livro que copiávamos no caderno com letra bonita, fruto das aulas de caligrafia, lições sobre amor à pátria e de como deve funcionar um país. E, nas entrelinhas que eu ainda não podia ler, o que um brasileiro de bem não devia fazer, dizer ou pensar. Achava normal ter aulas de Educação Moral e Cívica. Assim como hastear bandeira fazendo continência, feito mini-soldados, cantar hino com a mão sobre o coração, brincar no balanço ouvindo “As tardes do Brasil são mais douradas, Mulatas brotam cheias de calor, A mão de Deus abençoou, Eu vou ficar aqui, porque existe amor”.

Na mesma vitrola também rolava Chico Buarque. Achava “Cálice” linda. Mas, aos doze anos, talvez considerasse apenas uma letra meio maluca que falava do Deus bíblico e do Deus mitológico Baco, com aquele negócio dos vinhos. Mais tarde, entendi a genialidade do Chico. Mas achava normal que ele, assim como outros, precisassem, para poder cantar os horrores que sabiam, disfarçar suas letras para driblar a censura que vigorava na ditadura militar. A normalidade pode ser um perigo.

Eu te amo, meu Brasil, eu te amo

Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil

Eu te amo, meu Brasil, eu te amo

Ninguém segura a juventude do Brasil

Enquanto eu fazia coro com Os Incríveis no balanço do quintal, em junho de 1972, a um quilômetro e meio da nossa casa, uma moça chamada Ana Maria almoçava no restaurante Varela, também na Mooca, com mais três companheiros da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Eram guerrilheiros, se opunham ao regime militar. Diz que o dono a reconheceu em um cartaz do governo que caçava “gente subversiva”, e resolveu chamar a Polícia. Ao saírem dali, foram mortos. Apenas um escapou. Eu, que passava sempre em frente ao restaurante, nunca imaginei. Só soube da história muitos anos depois, já grande. Desta vez, não achei normal. Nem Dona Anadyr e Seu Mário Henrique, os pais de Ana Maria Nacinovic. Para eles, era mentira o verso final da canção. Sim, conseguiram segurar a juventude de sua filha. E de tantos outros.

Meu primeiro amor. Ou segundo

ilustração: Lubi
Fragmentos de memória: 1977, São Paulo, Teatro Municipal, Irene Ravache, calça Levi’s, menino loiro.
Pronto. Agora é costurar tudo e montar a colcha que cobre a história do meu primeiro amor. Ou segundo. Tirando, claro, as dezenas de namorados inventados da minha infância e que constaram de uma lista, redigida pela irmã mais velha, que incluía o moço que aplicava injeção na farmácia, o Sérgio Chapelin e o goleiro Leão.
Eu tinha dez anos e era a primeira vez que eu ia ao Teatro Municipal. As cadeiras ainda eram forradas com veludo verde. Não há qualquer chance de eu me lembrar do que assisti. Rei Davi, talvez? De certezas, somente três: primeira, era algo com a Irene Ravache; segunda, eu usava uma adorada calça Levi’s bege, e terceira, havia um menino loiro e lindo do outro lado do foyer, igualmente numa Levi’s bege.
Bati os olhos nele – que devia ter a minha idade e também estava com os pais – e não desgrudei mais. Se ele, de lá, me via, não sei. Desconhecia aquele meu sentimento, embora já suspeitasse do que se tratava. Apaixonar-se é grudar nos olhos uma fotografia da pessoa amada.
Foi assim o espetáculo inteiro. Quando acabou, fiquei triste porque não iria mais vê-lo. Como seria seu nome? Sua voz? Ia bem em matemática? Seria bacana ir à sorveteria com ele depois das aulas, de mãos dadas e com nossas Levi’s.
Não contei a ninguém o que senti. Só guardei a imagem do menino bonito. Tão bem guardada, que ei-la aqui. E o leitor que me desculpe pela decepção. Pois não se trata de uma história de amor típica, com começo, meio e fim distribuídos em uma linha do tempo recheada de acontecimentos e emoções e conversas de amor e beijos escondidos. A história do meu primeiro amor (ou segundo) é só isto mesmo. Vocês podem continuar fazendo o que estavam fazendo. Ou continuar lendo.
Naquela época, dadas a pouca idade e limitações mundanas, seria praticamente impossível tornar a vê-lo. Hoje, bastaria um apelo na internet (se meus pais deixassem, o que duvido). “Alguém sabe quem é este garoto?” encabeçaria, na rede social, o post esperançoso, com uma foto feita pelo celular em precário zoom. Daria o serviço – dia, hora e local – e imediatamente se formaria na tudosfera uma corrente engajada de compartilhamentos, dedicada a encontrar meu pequeno príncipe encantado. Já vi isso nas notícias. O amor é a melhor hashtag que há.
Em meus devaneios, às vezes, me ponho a imaginar por onde andará o garotinho de calça Levi’s bege no foyer do Teatro Municipal. O que se tornou, de quê gosta de falar, se prefere pão francês branquinho ou queimadinho, se ainda é loiro. É devaneio desinteressado, registro – eu que não quero treta com meu marido. Daqueles ingênuos, que brotam no meio de um dia atarefado como um sopro de leveza. É respeito (ou asas) às lembranças que compõem minha biografia.
Depois daquela noite, estive tantas outras vezes no Teatro Municipal. Eventualmente, enfiada numa Levi’s. Nunca mais, no entanto, me apaixonei por ninguém do outro lado do foyer. A vida nunca foi de me pregar – vejam só – peça.

Fiscal do Sarney

Havia me esquecido. Já fui fiscal do Sarney.

Meados de 1980. O vice de Tancredo Neves implantara no país o Plano Cruzado, convocando a nação para trabalhar na fabulosa empreitada de vencer a hiperinflação. A tarefa de todo cidadão era fiscalizar os preços, então congelados, nos supermercados. Também fazia parte do job description pedir nota fiscal de tudo.

Eu tinha 19 anos. Um dia, fui à avícola na rua de cima, “Uma dúzia de ovos, por favor”. Na hora de pagar, com meu crachá invisível de fiscal sênior, pedi a nota. O mocinho, que já tinha um ar abobalhado, ficou ainda mais.

– Nota fiscal?

– É.

Ele coçou a cabeça, olhou o horizonte. Mentira, não dava para ver o horizonte dali, só um teco de céu. Mirou o teto, os frangos resignadamente engaiolados no ambiente ao lado, aguardando a hora de serem degolados, e lascou:

– Pra ovo não se dá nota fiscal.

Ele não imaginava que, ao inventar nova e descabida regra tributária, despertaria a fúria da titã baixinha e sardenta à sua frente. Como assim, não tinha nota fiscal pra ovo? Na TV, o presidente falou pra gente pedir nota fiscal de tudo, tudinho. Com as mãos na cintura e meu nariz arrebitado, bati o pé e exigi o documento. Já via o quarteirão bloqueado por carros da polícia, helicópteros sobrevoando o pacato bairro da Mooca, os jornais me entrevistando, o abobalhado sendo algemado, os frangos aplaudindo.

A contragosto, o moço foi lá dentro. Minutos depois, voltou com o talão empoeirado, típico dos objetos sem muito uso. Catou a Bic e foi preenchendo meu nome, meu endereço, “Você mora aqui pertinho”. Discriminou a mercadoria, colocou a data e o valor. Fez ainda, com a caneta, um risco de cima a baixo, inutilizando as demais linhas em branco. Sempre achei bonito fazer isso nos papéis. Para evitar fraudes, aprendera. Quem é que fraudaria nota fiscal de doze ovos?

Quando eu era criança, uma vizinha da rua, Dona Adélia, criava galinhas e vendia os ovos. Meus irmãos iam sempre lá, buscar uns pra nós. Vez ou outra alguém aparecia em casa com uma galinha viva, também. Eu tentava adotar a bichinha, sem sucesso. Então, no quintal, com impressionante naturalidade (ou prazer) minha avó pegava a pobrezinha e crec, destroncava-lhe o pescoço. Eu não queria ver, mas acabava vendo. Emudecia e fugia para o quarto, sonegando meu choro.

Saí da avícola com meus ovos, vitoriosa e empoderada. Cheguei em casa, senti-me meio idiota. Joguei a nota fiscal fora e fui fazer bolo de chocolate. A receita da minha mãe levava três ovos.

Quem nasceu primeiro, a lembrança ou a saudade?

Melhoral infantil

Uma vez por mês meu pai chegava em casa, à noite, com uma caixa enorme. Está bem, não era enorme. Só grande. Nela, a compra da farmácia. Esse dia era uma euforia só. Não que eu fosse uma hipocondríaca-mirim. É que na caixa, em meio a esparadrapo, mertiolate, algodão, latas de leite em pó e remédios, lá estava ele: Melhoral infantil. O comprimidinho cor de rosa.

Meio doce, meio azedinho. Eu gostava de comê-lo feito bala. No entanto, Dona Angelina, mãe zelosa, não o liberava assim fácil. Valia, então, inventar alguma enfermidade. Dor de barriga ou cabeça. Se o teatro fosse convincente, ganhava um. Se não, o negócio era partir para a traquinagem acetilsalicílica: pegar escondido. E o Melhoral infantil virava sobremesa proibida.

Fascínio semelhante tinham o Cebion e o Biotônico Fontoura, que também vinham na caixa. Com o primeiro, nada de dissolver na água, como mandava a bula. Chupava-o feito Drops Dulcora. Eu devia exalar vitamina C pelos poros, gripe nenhuma me pegava. O segundo prometia abrir o apetite das crianças e, por isso, era aliado das mães preocupadas com rebentos que não queriam comer. Não era nosso caso. O fortificante tinha álcool na fórmula e deixava a criançada meio zonza se a dose recomendada fosse extrapolada – e aí é que estava a graça.

Volta para 2018.

Hoje foi dia de levar os remédios para meu pai. A lista é grande e inclui comprimidos que resolvem de pressão alta a gastrite, garantindo ao Seu Tonico uma boa velhice. Enquanto dava meu CPF para a moça na farmácia, avistei na gôndola self-service: Melhoral infantil. A embalagem mudou, a cor rosa permaneceu. Um clássico da farmacopeia. Peguei uma cartela e adicionei-a à cestinha. Senti meu rosto rosar, feito o comprimido. Apoiada no balcão, refletida no espelho da seção de maquiagem, vi a garotinha que fui, pilhada na travessura. Como se estivesse pegando às escondidas o comprimido no armário da cozinha, que chamávamos de “farmacinha”. Paguei e separei o Melhoral, guardando-o na bolsa.

Cheguei à casa do Seu Tonico não com caixa, mas sacola cheia de coisas. É a minha vez de abastecer seu armário, mensalmente, com a compra da farmácia. A vida é mestra em inverter os papéis. Virei mãe do meu pai. Será que ele também fica eufórico quando eu chego? Na sacola não tem Cebion, mas tem Biotônico Fontoura.

Mais tarde, em casa, tirei a cartela da bolsa. Seis comprimidos. Festa à vista! Abri um, coloquei-o devagar na boca. Deixei que dissolvesse um pouco, fechei os olhos, pronta para a viagem ao passado.

Que gosto horrível! Nem sombra do Melhoral infantil que conheci. Mudaram a receita, por certo. Remédio para os pequenos tem esse problema. Se é gostoso, dá vontade de comer feito doce. Se é ruim, a criança só toma amarrada.

Cuspi o comprimido, já de um rosa desbotado. Mal não me fará. Será que tem efeito colateral? Um pouquinho de saudade, talvez. Logo passa.

Trégua

Julieta, lembrei. Julieta era o nome dela. A vizinha da casa 3, que morrera em seu quarto. Marcos, o único filho. Um garoto da minha idade, sete anos.

Eu batia boca com ele sempre que podia. Não que fôssemos inimigos, brincávamos juntos. Mas não perdíamos a oportunidade de provocar. Ele dizia algo, eu rebatia, ele soltava outra e assim exercitávamos nossa retórica – com sofisticação intelectual no nível de “Nunca viu, cara de pavio?” e “Você não é de nada, só come marmelada”. O objetivo era ver quem daria a palavra final, a resposta lacradora que calaria o outro. Lembro vividamente de uma vez que ele falou: “Você tem resposta pra tudo”. Fiquei em dúvida se era elogio ou não.

Câncer, disseram. Julieta era jovem, miúda, morena, pintas no rosto. Educadíssima. No dia em que ela morreu, fiquei consternada. Como um garoto de sete anos iria viver sem a mãe? Pai já não devia ter, nunca o vira por ali. Quando minha mãe morreu eu tinha vinte; tempo que já me calçara de certa força e autonomia para enfrentar a vida. Além disso, eu contava com pai, irmãos mais velhos, avós. Mas e o Marcos, que estava no primeiro ano e usava franjinha?

O velório foi na sala. O cômodo onde os dois assistiam TV à noite, juntos, agora exibia outro programa. Eu não fui. E tive que lidar com a ideia de haver um defunto a duas casas da minha. Antes da Julieta, eu não tinha notícia de alguém na vizinhança que houvesse batido as botas em casa. Morria-se em hospital, na rua, longe. Não em casa, lugar de viver.

O portãozinho ficou aberto, um entra-e-sai dos poucos parentes. O Marcos ficou zanzando na vila. Chutando pedrinhas pelo chão, cabisbaixo. Da janela do quarto dos meus pais, eu o observava. Ele via que eu o via. Naquele dia, porém, não tive vontade, nem coragem, de provocá-lo. Como se a morte requeresse trégua entre nós. Era preciso alguma paz. Tampouco fui conversar com meu amigo. Saber se gostaria de comer biscoito champagne com Nescau, ouvir o LP dos Carpenters. Nada. O silêncio foi a trégua.

Logo ele se mudou. Comentaram que fora morar com os tios. Não me despedi. Perdi, então, meu parceiro de embates verbais. A casa 3 ficou vazia por um tempo. Depois, chegaram novos inquilinos. Pensei em avisá-los sobre eventuais problemas com almas penadas, mas desisti. Por via das dúvidas, levei anos para entrar ali de novo.

Mães que morrem conseguem, de algum jeito, cuidar dos filhos? Por que eu tinha sorte de ter minha mãe e ele não? Por que médicos não conseguiam curar tudo? Por que gente viva não vê gente morta?

Fiz-me muitas perguntas, na época. E o Marcos estava enganado. Eu não tinha tantas respostas assim.

1983

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ilustração: Jessica Lopez

“Vende-se – ano 83”. Olhei o Gol à minha frente, tão velho e desbotado. Trinta e cinco anos nas rodas, meu chapa. E, pelo jeito, muitos quilômetros de histórias. Todo valente pela avenida, disputando seu lugar com os irmãos mais novos. Deve ter visto de tudo por esses caminhos de meu Deus. Carregado tantas gentes diferentes.

Onde eu estava em 1983?

O sinal abriu, engatei minha retrospectiva particular.

Quando aquele Gol era novinho em folha, eu tinha 16 anos. Usava cabelos até a cintura, morava na casa 1 da vila. Pesava quarenta e poucos quilos e não gostava das minhas pernas, finas e branquelas. Short e minissaia, por autodecreto, não passavam nem perto do guarda-roupa.

De aniversário, ganhei a Carolina. A cachorra mais linda e doce do mundo. Grandona e folgada, quantas noites a deixei dormindo na minha cama e fui para o sofá. Para não atrapalhá-la. E também porque ela roncava. Ê Caró…

Foi o ano em que, após longa espera, instalaram nosso telefone. Plano de expansão da Telesp, vinte e quatro meses pagando o carnê. Eu era a única da turma que não tinha. Para nunca esquecer: 948-3443. Dona Antonia (a vizinha da casa 4 que quebrava nosso galho quando precisávamos ligar para alguém, ou se um parente precisasse dar notícia importante, geralmente de morte, cujo número era 92-6405) respirou aliviada.

Segundo ano do colegial técnico em Edificações, no Liceu de Artes e Ofícios. Queria arquitetura, como a irmã. De casa, na Mooca, até a Luz, ônibus e metrô. E seiscentos metros de caminhada pela rua Jorge Miranda, em meio às bostas dos cavalos do 2º Batalhão de Choque. Levantava-me tão cedo que, não raro, aportava na escola com a blusa do avesso, ou uma meia de cada pé. O importante era a régua T chegar intacta. Fazia bolo para vender na hora do intervalo. Hoje, quase não faço bolo para meus filhos.

Segundo ano de tratamento da minha mãe. Eu a acompanhava, o hospital era ao lado da Santa Casa. Dia de quimioterapia era o pior. Dona Angelina ficava um trapo. Em frangalhos também, meu coração. Sofrimento deveria ser contável e divisível. “Me dá metade do seu enjoo, dois terços das suas dores”, lhe diria.

Não me lembro de ter ficado doente em 1983. Igualmente, não tive namorado. Mas saracoteava à beça. Saía com os mocinhos e, de vez em quando, mentia, dizendo que tinha 17. E também dei trabalho ao anjo da guarda: andava na moto dos amigos sem capacete.

Escrevi poesias. Aprendi a tocar violão. Passei tardes inteiras ouvindo Vinicius de Moraes e Rick Wakeman. Costurei um macacão azul-céu de popeline para mim.

Em 1983, tinha ideia fixa com o ano 2000, tão distante e irreal. Gostava de pensar onde eu estaria. Em minha prospectiva, imaginava que, caso o mundo não acabasse no Réveillon, aos 32 anos eu haveria de estar casada e teria dois filhos. Manteria os cabelos longos e projetaria casas e prédios maravilhosos. Nessa última parte, errei feio.

Quanto deve estar custando o Golzinho?

O maestro e o gato

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Nos anos setenta, costumávamos ir à casa dos meus tios no bairro de Santa Cecília. Eles moravam (ainda moram) em um prédio na Alameda Barros, perto da avenida Angélica. Quando íamos visitá-los, eu gostava de cruzar o corredor e ir ao apartamento do vizinho, no mesmo andar. Eles tinham um gato.

Ali vivia o maestro Portinho. Minha tia falava dele com orgulho, dizia que era famoso e coisa e tal. Eu não estava nem um pouco interessada. Ia lá por causa do gato, mesmo. Bug era um siamês lindo, grandão, bonachão e vesgo. Passava um bom tempo brincando com ele, até minha tia me chamar de volta. Eu tinha seis, sete (oito?) anos.

Não era um apartamento comum. Três unidades, transformadas em uma só. Ficou um apartamentão. A decoração, coisa fina. Um piano, talvez? Vários sofás na sala – para mim, enorme. Sempre aboletado em um deles, o Bug. Eu, bem comportada, sentava-me ao seu lado e punha-me a afofá-lo. Lembro-me de alguém vir perguntar se eu queria um suco, uma água. Eu não queria nada. Só brincar com o grandão do Bug.

O maestro Portinho também era grandão. Muito alto, simpático. Se troquei três palavras com ele, foi muito. Não fazia ideia de quem eu estava diante. O dono do Bug foi um dos principais personagens da época dourada das big bands brasileiras, animando bailes e programas de rádio e TV. Produziu trilhas para novelas e, fora as obras que compôs, assinou arranjos para meio mundo. Cauby Peixoto, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Cely Campello, Vanusa, a turma inteira da Jovem Guarda. As gravadoras só queriam saber do dono do Bug.

Um dia, eis que o apartamento do maestro, no décimo sétimo andar, pega fogo. Meu primo conta que uma bituca de cigarro fora atirada do apartamento de cima e caiu justo onde? Na cortina de um dos quartos. O estrago foi grande. Suficiente para o Bug, sem ter como escapar, morrer asfixiado. Fiquei desolada com a notícia.

Logo arrumaram outro gato. O nome? Bug. Em homenagem ao antecessor. Também um siamês. Igualmente lindo, nem tão grande, nem tão bonachão. Vesgo, talvez? Fui conhecê-lo. Ele não me parecia tão dócil quanto o velho Bug. Influenciada pelo nome, esperava que ele fosse cópia integral do outro. Claro que não era. Então aprendi o que eu já desconfiava: gato não é tudo igual.

As visitas aos meus tios rarearam, não sei que fim levou o segundo Bug. Do maestro, sei: morreu em 1997. Seu legado para a música brasileira é imenso e valioso. Coisa linda, ser maestro. Uma pessoa que entende absolutamente tudo de música. Uma espécie de Deus do som. Gato também é uma espécie de Deus. Ou será que Deus é uma espécie de gato?

São quase dez da noite, estou me preparando para dormir. Sobre a cama, espio o Beto cochilando. É nosso siamês lindo, grandão, bonachão. Vesgo. Gosta de música, o bichano. Com ele que danço, de vez em quando (os outros detestam). Se é que esse negócio de reencarnação também vale para os bichos, gosto de fantasiar que o Beto é meu amigo Bug, do qual não pude me despedir. Pendência que ele tratou de resolver, aparecendo em nossa casa, numa tarde quente de fevereiro. Onze anos atrás.

Mistura

Tudo que não era arroz e feijão, a gente chamava de mistura. Geralmente, carne. “O que tem de mistura?”, eu perguntava, já abrindo as panelas sobre o fogão. Verduras e legumes também entravam na categoria. Viraram, com o tempo, acompanhamento.

Como se diz a alguém, “Que Deus te acompanhe”, também deve-se falar para a dupla gastronômica mais brasileira que há: “Que o purê de batata te acompanhe”. Afinal, se está com purê de batata, está com Deus.

Cresci com os adultos mandando a gente ir comprar mistura. Lá ia eu no açougue buscar uns bifes, ou na avícola, pegar umas coxas de frango. Para os bifes, havia um martelo especial. Diferente dos martelos do meu avô, o da minha mãe era quadradinho, com pontas achatadas. Para amaciar a carne, diziam. Eu gostava de brincar com ele. Sumiu, nas mudanças.

Não digo que sempre achei esse termo – mistura – curioso, porque jamais deitei pensamento sobre. Fez parte do meu vocabulário desde sempre, é dessas palavras que a gente só reproduz, não questiona. Não, até agora. A mistura é mistura de quê? No Google, leio que o nome remonta ao tempo dos escravos. Nas refeições, eles recebiam um naco de carne que, de tão pouco, era misturado ao arroz, feijão e farinha de todo santo dia. Veio a abolição, o nome ficou. Toda cozinha tem um pé na senzala.

Apesar de amante do bom e velho feijão com arroz, hoje a mistura é o melhor do meu prato. Abobrinha empanada. Shimeji na manteiga. Quiabo refogadinho no alho. Suflê de espinafre. Salada toda coloridona. Por trás de um grande prato há sempre uma grande mistura. Pronto: mistura é a mistura de coisa boa com coisa gostosa.

Quando foi que deixamos de falar mistura? Deve ter sido quando paramos de dizer engrossar (um molho, por exemplo) e adotamos o reduzir. Ou quando substituímos o combinar pelo harmonizar.

Ontem fui pensar no almoço e a palavra saiu assim, sem querer: o que teríamos de mistura? Ri sozinha. Sem acompanhamento.

Lembrei das velhas panelas lá de casa. Fechei os olhos, abri as tampas. Servi-me de saudade. Memória com nostalgia é a melhor mistura que tem.

O nome da minha mãe

Ilustração: Juliana Cassab

De criança, eu não achava o nome da minha mãe bonito. Angelina. Achava-o levemente feio, sonoramente estranho. O problema, acredito, era o ina, que lembrava aspirina, vaselina, gelatina.

Certo dia, na escola, um menino perguntou o nome dela. Com vergonha, inventei, “É Angela”. Senti-me mal com aquilo, então emendei: “Mas todo mundo chama de Angelina”. Como se, sendo apelido e espécie de diminutivo, a coisa amenizasse.

Angela era bem mais lindo. Uma proparoxítona forte e, ao mesmo tempo, doce. O lance direto com o universo angelical. Além disso, tinha a Angela Maria, baita cantora. A Angela Ro Ro. Não havia naquela época, que eu soubesse, nenhuma Angelina importante ou famosa. Personagem da História, atriz de novela, nada. A Angelina Jolie era apenas uma bebê beiçuda.

Jamais contei o episódio da escola para minha mãe. Talvez ela achasse graça, talvez não. Para que correr o risco? Ela se foi há tanto tempo. E esta é a primeira vez que escrevo sobre. Se existe a internet dos mundos e a conexão for boa, ela vai ler. Talvez ache graça, talvez não. Agora eu corro, confiante, o risco.

Levou tempo para eu simpatizar com o nome. No colégio, já não lhe inventava nomes. O som, An-ge-li-na, começou, inclusive, a me agradar. Gosto é gosto, e ele muda. Passei a apreciá-lo. Tanto que o incluí na lista de nomes para minha filha. “Que tal Angelina, pra homenagear a avó?”, propus, no quinto mês de gravidez. Não houve adesão. Não que achassem feio. Acabei – coisas da vida – sugerindo Nina. Que ganhou. Então, “ina” não consistia mais em problema? Eu, definitivamente, estava em paz com o nome dela. E, de algum modo, sei que ela sabia. Na vila dos anjos também se comemora o Dia das Mães?

Pudesse, reencontraria o garoto da escola e explicaria tudo.

Sianinha

sianinha

A amiga comentou, quase en passant: no texto digitado aparecera a “sianinha” embaixo de uma palavra. O risquinho vermelho, sinalizando que a grafia estava incorreta. Mão na roda para escritores distraídos ou erráticos.

Parece uma sianinha, mesmo. Aquele fitilho ondulado usado nas costuras. Achei delicado, o apelido.

Minha mãe costurava. Cresci em meio a coisas enfeitadas com sianinhas de todas as cores. Algumas tão fininhas. Toalhas, roupas, lençóis, aventais. Além de alerta para imprecisões da língua, a sianinha ortográfica acabou cumprindo outro papel: ativadora de memórias.

Fui parar na sala da nossa velha casa, sentei-me no sofá de courvin marrom, o LP da novela Selva de Pedra (primeira versão) na vitrola. Minha avó lavando roupa no tanque, meu avô encerando a casa na enceradeira tão grande que sentávamos em cima dela e íamos junto, minha mãe ora na cozinha, ora em seus tricôs, crochês, costuras. Tão caprichosa, sempre.

Havia um bazar de aviamentos no quarteirão. Era a garagem de um sobradinho geminado, transformada em loja. Sempre íamos, minha irmã e eu, buscar alguma coisa que ela pedia. Até hoje gosto dessas lojas, quero comprar tudo e fazer tudo. Nunca compro nada e nunca faço nada. Sou só uma teoria descosturada.

Enquanto escrevo, várias sianinhas aparecem. O corretor não reconheceu a palavra courvin. É courvin mesmo, meu bem.

Corretor ortográfico é uma espécie de professor. Lembrei da Maria Olívia, minha professora no primeiro e segundo ano. Com delicadeza, ela sublinhava a lição – sem fazer sinhaninha – com caneta vermelha, ensinando que jiboia era com jota e não com gê. Anos depois, batizei uma gatinha com seu nome. Seria bonito dizer que foi em sua homenagem, mas não foi. Por gosto, mesmo. Maria Olívia, a gata, fora abandonada pela mãe, que dera cria no carro do vizinho. Um dia cheguei em casa e ela havia ido embora, levando todos os filhotes, menos ela. Era a mais fraquinha, sempre doente. Gostaria de reencontrar Maria Olívia, a professora. Maria Olívia gata também, se esse negócio de reencarnação também valer para os bichos.

Eu gostava de brincar com as linhas, agulhas, rendas, botões e sianinhas da minha mãe. Dona Angelina sempre deixava. Não havia nada que ela não nos deixasse brincar, aliás. Observava a arquitetura das minicurvas da sianinha, pareciam cabelo anelado de boneca. Ficava imaginando como é que faziam aquilo tão perfeitamente.

(O calçadão de Copacabana, repare, é uma sianinha gigante.)

A amiga que falei se chama Iana. Rima com quê? Siana. Que nem sei se existe, talvez sianinha seja palavra nascida no diminutivo. Igual carinho. Só sei que a vida não dá ponto sem nó.

Vou revisar este texto e ver se tem outras sianinhas para corrigir (ou não). Quem sabe eu me recorde de mais alguma coisa no meio do caminho. Quando escrevo, não uso apenas um editor de texto. Uso um editor de lembranças também.

Se as sianinhas enfeitam os panos, as memórias enfeitam toda a existência.

Para Iana Ferreira

A promessa

cabelo

Prometi à Nina deixar meus cabelos crescerem.

Logo eu. Que, apesar de ser lembrada como cabeluda pela turma da escola, não uso nem um fio abaixo do queixo desde que ela nasceu, há onze anos. Eu, que sou devota de São Joãozinho. Eu, que tenho quimeras antigas com a máquina dois.

O limite negociado foi o ombro.

Tem gente que promete, em nome de nobre causa, não comer chocolate. Subir de joelhos intermináveis escadarias. Cortar – veja só – os cabelos. Eu não. Eu prometo deixá-los crescer um quarto de metro. Cada um com a sua provação.

De criança, minha avó penteava meus cabelos para eu ir à aula. Contrariada, subia no bidê para facilitar o trabalho dela. Que tinha mão pesada, puxava com força (e algum mau humor) minhas extensas e quase sempre embaraçadas madeixas. Não havia esses condicionadores bons de agora. Nem os ruins a gente tinha, era xampu e olhe lá. Eis que surge, para nossa salvação, o Neutrox. Creme amarelo, inovador e relativamente barato que dissolvia nós como que por encanto. Um dia, hipnotizada pelo seu aroma adocicado, não resisti. Comi.

No caso da minha promessa, a nobre causa não foi motivo de doença, nem de milagre solicitado, tampouco de graça alcançada. “Mãe, deixa o cabelo crescer um pouquinho só?” – foi o (reiterado) pedido da caçula. Lasquei-me. Como negar? Desde então, tenho recorrido às faixas, lenços, tiaras e adereços que me façam enfrentar a (longa) temporada com algum ânimo.

Exibi imensa cabeleira até os vinte e cinco. Cultivada quase por acaso, em um misto de esquecimento de cortar com ideal de beleza. Acreditava que era assim que tinham que ser os cabelos de uma mulher, feito verdade irrefutável (não é). Fui dessas de aterrorizar o cabeleireiro, caso o infeliz cruzasse a fronteira do “só as pontinhas”. Como se minha vida não fosse funcionar de outra forma. Os cabelos eram longos, mas as ideias eram curtas.

Todos os dias me olho no espelho ao acordar, na esperança de que alguma mágica tenha se dado durante a madrugada e meus fios tenham adquirido o DNA do bambu. Cogito negociar com a Nina, quebrar a promessa. Trocá-la por um brinquedo novo, quem sabe? Mas aí lembro de seus desenhos, quando era pequenininha. Neles, sempre fui representada com arquetípico cabelão. Desisto da negociação, respiro fundo e sigo em frente. Tanta coisa que ela me pede e eu, por incompetência ou falta de vontade, deixo de atendê-la. Ser mãe é carregar uma eterna e cabeluda culpa sobre os ombros.

Ano que vem faço cinquenta e um, a idade da minha mãe quando morreu. Dona Angelina perdeu todos os cabelos na quimioterapia. Pensei em uma homenagem póstuma, raspando os meus. “Vê? Também estou carequinha da silva”, direi-lhe em pensamento. Estarei três décadas atrasada, é verdade. Mas ela há de entender. Mães são atemporais. Além disso, comprida mesmo é minha saudade. Dá até para fazer trança.

PS: a promessa foi quebrada, trocada por três Kinder Ovo.

Xilindró

cadeia

1980, temporada dos jogos inter-colégios. O nosso jogaria com o São Paulo, no centro da cidade. Da Mooca até lá, só de ônibus. Fomos, então, prestigiar o time. Tudo seguia nos conformes, quando uns garotos começaram a bagunça no coletivo. De repente, o estrondo. Haviam quebrado o vidro da janela.

O motorista para. Desliga o motor. Puxa o freio. Sai de seu posto e ruma ao fundão. Quem foi? Silêncio. Então vamos para a delegacia resolver isso. E não é que ele foi mesmo?

No caminho, gelei. Eu, treze anos, na delegacia. Teria direito a um telefonema? Sem advogado, restariam meus pais. Pai e mãe são nossos advogados eternos. Mas a gente não tinha telefone. Ligaria na casa 4 e pediria para a Dona Antonia dar o recado. Vexame. Já me via no xilindró, cabelos raspados, vendo o sol nascer quadrado, batendo caneca nas grades, tomando banho de sol com a galera. Não estaria sozinha, no entanto: meia dúzia de colegas da 7ª A dividiriam a cela comigo. Compadecidos, os professores nos visitariam no Dia das Crianças. Ninguém passaria de ano.

Enquanto lamentava meu destino, a turma de – no conceito do condutor enfurecido – menores infratores chegou à Delegacia. Colocaram-nos em uma sala. A maioria de nós não tinha culpa de nada, nadica. Mas como não houve delação, estávamos todos no mesmo barco. E agora, Dotô? Como é que volto pra garagem assim? – quis saber o motorista.

O delegado de plantão, sem nada mais grave para resolver naquele dia, nos mediu de cima a baixo. Iniciou seu sermão. Onde já se viu isso, a gente não tinha educação, nem respeito pelo patrimônio, que não acontecesse novamente, senão já viu. Ouvíamos calados, uns tremiam feito vara verde. Tudo piorou quando a Rô, usando uma saia que trouxera da Bahia, toda de rendas e franjas no melhor estilo boho-afoxé, numa atitude sem noção, resolveu apoiar o pé num cercadinho ao lado da mesa da autoridade. Tomou pito adicional, pobrezinha. Ninguém riu. O medo vencera. Vinte anos depois, perdemos a Rô. Meu coração ficou em cacos, feito a janela do ônibus.

Embora não tenha testemunhado o fato, tenho cá, até hoje, meu palpite sobre o autor do vandalismo. Fiquei de bico calado, no entanto. Vi-me no leito de morte, daqui a algumas décadas, chamando de canto o representante de Deus antes da extrema unção: Acho que foi Fulano, padre.

Sermão dado, lição aprendida, jogo perdido. Hora de voltar para casa. De ônibus. No trajeto, discutimos, apreensivos, se o episódio caracterizaria passagem policial, prejudicando nossas vidas dali para frente. Por via das dúvidas, ficou todo mundo comportado. Fichada, mesmo, é esta minha saudade de tudo e de todos.

À noite, quando meus pais chegaram, contei. Perguntaram se alguém havia se machucado. Não, pai. Quiseram saber se havia sido eu. Não, mãe. Sondaram o que haviam feito com a gente na delegacia. Só bronca, pai. Questionaram as minhas companhias. São gente boa, mãe. Disseram para eu escolher bem com quem andava. Sigo o conselho até hoje.

Contei da Rô, minha mãe não escondeu o riso. E fomos dormir. Certeza que o delegado, depois de despachar os baderneiros-mirins, riu também.

A aula

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Gostava de ouvi-lo ensinar como funcionava o telefone. Eu, sentadinha à mesa da cozinha, maravilhada com meu pai explicando coisas sobre voz, eletricidade e cabos. Suas mãos iam simulando, sobre a toalha estendida (a xadrezinha?), o caminho que a chamada percorria para ir de uma ponta à outra. Encantavam-me a tecnologia e meu pai, que sabia tanta coisa (ainda que não soubesse tanto assim). Cheguei a pedir-lhe várias vezes para repetir a “aula”.

Ontem liguei para ele. Seu Tonico não é, mas estava especialmente surdo. Pediu notícias das crianças, dei, não sei se ele ouviu; só soltou um Aaah. Contou-me que havia varrido todas as folhas secas pela manhã. Perguntei-lhe se havia almoçado direitinho. Ele continuou falando da varrição. Lembrei-me da velhinha surda d’A Praça é Nossa, aquele programa de TV. E ri. O script agora é outro.

Enquanto ele discorria sobre a trabalheira que as folhas secas deram, lembrei-me da aula do passado. Meu pai ensinou-me algo que, hoje, tem dificuldade para usar. Na nossa breve conversa, o meio era a mensagem.

Agora, quando o visito, sou eu que explico a ele como funciona uma chamada pela internet. Apanho o celular na bolsa e ligamos para minha irmã, sua filha do meio, que mora longe, muito longe. Ele tem telefone, mas não acerta ligar para ela, tantos números. E não adianta colocar o numerão na memória do aparelho e dizer que é só apertar um botão. A memória que não funciona bem é a dele. Vou demonstrando a mágica da chamada. Mas não tem mais a mesa da cozinha, nem a cozinha. Nem as toalhas. Tem ele, feito criança, maravilhado com a tecnologia e comigo, que sei tanta coisa (ainda que não saiba tanto assim). E, assim que minha irmã atende, ele passa a falar alto, muito alto no aparelho, como se fazia antigamente. Eu que não vou ensiná-lo que não precisa mais.

Estrogonofe

fogão

Sempre tinha estrogonofe de frango no bandejão do jornal. Eu gostava só do creme. E do champignon.

Quando chegava minha vez, eu deitava a concha no réchaud bem devagar, aguardando o caldo enchê-la e cuidando para que não viessem junto os pedaços de carne. Em seguida, pinçava cirurgicamente alguns cogumelos. Na mais santa paz, sem pressa, para eventual desespero dos colegas atrás de mim.

As moças do restaurante ficavam por ali, ajeitando a comida remexida pelas pessoas, repondo o que acabava, explicando o recheio do capelete. Garantindo, enfim, o bom andamento da sagrada refeição, antes do retorno de todos à labuta.

Bastaram, no entanto, algumas vezes para a moça branquinha de touca idem me flagrar na estranha operação. Veio perguntar. Respondi.

Dali para frente, quando era dia de estrogonofe e ela me avistava na fila, já acenava. E corria para dentro da cozinha. Logo reaparecia no salão, trazendo no rosto um sorriso e nas mãos um prato só com o creme. Muitos champignons extras, certamente colocados na hora. Tudo salpicado de cheiro verde, de modo a ficar bonito. Aquilo era para mim. Eu só completava com arroz, batata palha e ia me esbaldar com meu almoço exclusivo.

É claro que sempre lhe disse “obrigada!” pela gentileza. Não sei, porém, se cheguei a agradecê-la a contento. Porque esse é o tipo da coisa que se deve agradecer grandemente. Registrar, enfatizar. Era o caso de chamá-la num canto e dizer o quanto eu me sentia especial com sua atitude (por mais simples que soasse), ou de elogiá-la para sua chefe. Perdi a chance. E jamais saberei por onde anda a moça alva. Só queria agradecer direito, vinte anos depois. Gratidão retroativa nem sempre é possível, tampouco surte o mesmo efeito. Gratidão deveria ser disciplina obrigatória já na pré-escola.

Era pequena, a moça. Delicada, falava baixo, os gestos humildes. Olhos claros, talvez? Nunca soube a cor de seus cabelos. A touca asséptica escondia sua identidade. Questões da vigilância sanitária. Talvez ela não fizesse ideia de que realizava, em meio a arrozes e feijões e talheres e azulejos brancos feito sua touca, o que muita empresa, com seus múltiplos recursos e ferramentas e aparatos tecnológicos, não é capaz de fazer. Naquele refeitório, eu era uma “cliente” absolutamente feliz e satisfeita. Inclusive nos dias em que não tinha estrogonofe.

Ontem lembrei-me dela mais uma vez, enquanto fatiava champignons e abria a caixinha de creme de leite.

Certos alimentos, dizem, são bons para a memória. Estrogonofe faz bem para a minha.

O sapato cinza

salto alto

Desde sempre, Nina é doida por um certo par de sapatos meus. O cinza, de salto alto, largas tiras de camurça. Coisa de mulher, não de criança. Ela, de pequena, sonhava com o dia em que iria usá-los. Prometi que os guardaria, seriam dela quando crescesse. E, como os uso pouco, estariam conservados para a nova dona. Uma espécie de herança, de mulher para mulher.

Enquanto esperava o tempo fazer seu trabalho, ela brincou de desfilar com eles pela casa, tal aquelas cenas dos comerciais e anúncios de revista. Pezinhos número vinte e sete perdidos na imensidão do trinta e cinco, arrastando o sapatão para lá e para cá. Fazia pose, mirava no espelho sua silhueta torta, necessária ao equilíbrio anti-natural.

Embora não me recorde com precisão, devo ter brincado com os sapatos da minha mãe. Fingindo a mulher que nem brotara, em clássico exercício de feminilidade. Mas diverti-me muito, disso me lembro bem, com suas jóias e bijuterias. Dona Angelina, bastião do desapego, não ligava se íamos para o quintal com seu anel de rubi. Aliás, também não se importava de promovermos chás das bonecas com suas delicadas xícaras de porcelana. E minha vontade de ser mulher grande ia além: um dia, inventei de sair de casa usando Modess. Eu devia ter oito anos. Nos anos 70, não tinha esses absorventes fininhos, eficazes e ultradiscretos de hoje. O volume extra na calça não me pareceu muito confortável, voltei para casa e joguei fora. Sem contar as bolas de meia no sutiã surrupiado da irmã mais velha, inventando os peitos que ainda demorariam para aparecer. Eu não via a hora de, enfim, ser grande. Entendo a Nina.

– Você está guardando os sapatos pra mim, né mãe? – ela checava, de tempos em tempos. Sua alegria morava no meu sim.

Não por muito tempo, no entanto.

Grandona, Nina, aos dez, já calça dois números a mais que eu. Cedo, ainda, para o almejado sapato cinza. Partiu meu coração sua decepção, quando se deu conta. Por um tempo, ela continuou brincando com eles. Os dedinhos, espremidos, denunciavam o não-cabimento. Aos poucos, desistiu. Uma experiência importante a compor sua fundamental coleção de frustrações, rumo à maturidade.

Hoje, ela se contenta em elogiar quando eu os coloco – mesmo sabendo que eles jamais a acompanharão em seus passeios. São seus sapatos, sem nunca terem sido. Ela questiona por que não saio com eles todos os dias, afinal, tão bonitos. Logo eu, filha! Que, apesar de ter ido para a maternidade tê-la – e seu irmão – com plataformas altíssimas, para desespero da Dra. Clara, hoje fujo de todo salto que ultrapasse a medida de quatro dedos da mão.

Envelhecer é, entre outras sabedorias, não considerar mais um suprassumo usar Modess (ou qualquer de suas variantes), nem sutiã (ah, a liberdade que os peitos pequenos conferem), tampouco saltos que desafiam a gravidade e o bom senso.

Num futuro próximo, Nina terá seus próprios saltos. Seus próprios absorventes e sutiãs. Sua própria mulherice, enfim. E as lembranças das brincadeiras com o velho sapato cinza também ficarão pequenas. Mas continuarão a servir no coração – dela e meu.

Mande lembranças

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arte: Rodvaz

Quando Fulano pediu a Beltrano que mandasse lembranças a Cicrano, Beltrano não sabia a quais, exatamente, Fulano se referia. Ninguém sabe essas coisas.

Seria a do último Natal que passaram em família, antes de o patriarca endoidar e resolver botar as pedras no bolso do casaco, e cujo resto da história só se soube no dia seguinte, quando Joca, o cachorro, latiu feito besta na beira do rio?

Ou, quem sabe, a lembrança dos tempos em que eram, os dois, irmãos inseparáveis, feito unha e carne, feijão e arroz? Um na pele do Homem Aranha e outro na do Batman, roubando os doces da mesa antes dos parabéns na festinha da prima.

Ou, então, aquela de quando, morando no velho casarão, brigaram feiamente por causa da gata de um que papou, feliz da vida, os canários do outro?

“Mande lembranças a Cicrano, quando o encontrar”. Pode ser que Fulano quisesse apenas lembrá-lo de que ele jamais o perdoara pelas botas – legítimas Stetson de bico quadrado e salto carrapeta que ele comprara com o salário de dois meses como empacotador no mercadinho – surrupiadas para ir ao baile do caubói da cidade, e nunca devolvidas, e que na ocasião Cicrano acabou beijando Mariana, o grande amor de Fulano. Por beijá-la ele até poderia perdoá-lo; pelas botas, jamais.

Beltrano ainda fala com os dois. É a ponte familiar, carcomida pelo tempo e que ninguém se atreve a atravessá-la. Beltrano, o portador de boas e más novas. O verbo de ligação. O irmão do meio, literalmente. Nunca mais se reuniram, os três. E não foi por causa de gatos, nem botas, nem gatos de botas.

Muitos mandam lembranças a alguém apenas para lembrar que ainda existem. Espécie de lembrete, “Ei, estou aqui”. Outros vivem mandando lembranças a esmo. Como frase vazia, a completar uma despedida banal. Por falta do que dizer. Para preencher de algum som o ar, vazio de assunto. Que pecado. Lembranças não deveriam ser enviadas em vão, eis um bom mandamento. O décimo-primeiro, quem sabe.

Cicatriz

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Não tenho muitas cicatrizes. Minha coleção é pequena: uma no dedo da mão, outra próxima à boca e as duas cesáreas, fundidas numa só – por conta da habilidade da Dra. Clara. Costumava admirar pessoas que exibem várias, todas com histórias de bravura ou fatalidade. Imbecilidade, às vezes. Todo corpo é um livro ilustrado.

A do dedo. Na venda dos meus pais tinha uma máquina de fatiar frios. Pirralha, considerei-me apta a manejá-la. Afinal, estava muito a fim de um sanduíche de presunto. Daquelas antigas, a gente girava a manivela e a roda-lâmina-gigante, afiadíssima, ia fatiando tudo pela frente. E fatiou, inclusive meu dedo. Sangue jorrando e leve desespero, corri pedir socorro para minha mãe, que pesava um quilo de arroz para a freguesa. Voa para a farmácia, põe sulfa, dá ponto falso. A venda não existe mais, não gosto mais de presunto e minha mãe agora atende a freguesia celestial. A cicatriz, quarenta anos depois, permanece. No médio direito, e é com ele que eu vou digitar o ponto final deste parágrafo.

A da boca. Eu passeava com minha cachorra pelo bairro, quando avistei um gatinho na calçada. Gatos são fofinhos, certo? Certo, mas não quando se veem a um metro de distância de um cão, ainda que manso e na guia. Fui mexer com o bichano, de unhas tão afiadas quanto a lâmina que fatiava os frios. Ganhei um pequeno talho acima dos lábios. Voa para a farmácia, põe sulfa, dá ponto falso. A vida, parece, é feita de replays.

Se a cicatriz do dedo foi adquirida na bravura, e a da boca, na imbecilidade, a da cesárea foi por amor. Ontem, antes de entrar no banho, fiquei olhando a minha. Um risquinho. E pensar que dele saíram, em tempos diferentes, duas pessoas; uma que estava na sala jogando Fifa e a outra na cozinha, fazendo brigadeiro de leite Ninho. Antigamente, a marca da cirurgia ia de ponta a ponta na barriga da mulher. Dra. Clara me tranquilizava, “Nem vai aparecer, com biquíni”. Levei tempo para me dar conta da bobagem contida nisso. Eu não queria escondê-la. Não seria normal exibi-la com o mesmo orgulho que mostro às pessoas a foto da cria, não mais na carteira, mas no celular? As cicatrizes da cesárea precisam sair do armário.

Cicatriz, bonita ou não, alegre ou não, é o registro de uma história. Um tipo de documento, único, que só a gente tem. Feito RG.

Plisdongôu

fita k7 arte: Jess Wilson

A Sara, professora de inglês meio maluquinha, colocou suas coisas sobre a mesa e começou a escrever no quadro-negro a letra de uma canção. A 6ª B foi ao delírio: era Please Don’t Go. Agora poderíamos cantar direito o hit do KC and The Sunshine Band, e mais, saber do que se tratava. O que, aliás, foi bem decepcionante – não fosse pela melodia que grudava na cabeça feito a cola Tenaz que a gente comprava na papelaria do Seu Remo. Plisdongôu, dongôôu auei

Copiei no caderno a letra, com letra bonita. Tenho uma fagulha de lembrança, inventada ou real, que a Sara levou um tocador de fita K7 no dia, pra turma ouvir e cantar junto. Corajosa, a Sara.

Foi assim que aprendi inglês: ouvindo música. Também costumávamos ganhar, de vez em quando, uns folhetinhos simplórios com letras traduzidas, um oferecimento da Fisk, a escola de idiomas do pedaço. De graça, o folheto era bem disputado. Uma sorte, cair nas nossas mãos. O negócio era torcer para vir com músicas que a gente gostava. Geralmente vinha, eles eram razoavelmente antenados com os top hits.

Certa vez ganhei um com a letra de Follow You, Follow Me, do Genesis. A letra era fácil, decorei rapidinho. Não tem uma vez que eu não me lembre dos folhetinhos, cada vez que a ouço. Na verdade, acho que essa música me segue. Conto pro Phil Collins ou não?

Hoje qualquer pessoa, num clique, encontra a letra de qualquer música e pode traduzi-la para qualquer idioma. Please don’t go em quirguistanês ou birmanês? Se preferir iorubá, tem. Esloveno? Tem também. E rapidinho: apenas 0,4 segundos. O Google Tradutor tem um milhão de Saras dentro dele.

Meus filhos nasceram na era da abundância de informação, a um toque de distância do que desejarem saber. Podem ouvir todas as músicas que quiserem, saber as letras, as traduções, assistir aos videoclipes, ouvir um sem-número de versões. Não precisam esperar o professor de inglês colocar na lousa, tampouco alguém lhes arrumar um folhetinho. Talvez, justamente por isso, não se interessem. Vivo sugerindo que procurem as letras das canções que gostam, mas eles nem tchum. “Depois, mãe”. O mundo facilita demais para eles. C’est la vie. Ou, em bom zulu: lokho ukuphila.

Tenho um buscador de lembranças embutido na cabeça. Bem mais rápido que o do Google. Uso-o à beça, nem preciso de Wi-Fi. Uso meu HD, mesmo (às vezes, ele me prega peças, fazer o quê). Não carece sequer traduzi-las. Estão todas no idioma universal da saudade. E posso ficar tranquila, não preciso nem pedir por favor. Elas nunca, nunca não se vão.

Paralelas

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Não uma, nem duas; o negócio era agasalho de três listras. E tinha que ser da Adidas. Se tivesse o ziperzinho na barra da calça, então, era a glória nas aulas de educação física. As três retas, paralelas e mágicas, se encontravam no infinito do meu desejo adolescente. Habitavam o imaginário da escola inteira, do bairro, quiçá do planeta.

A matemática, exata e implacável, teoriza: três é mais que dois, que é mais que um. Três listras na roupa, portanto, era mais legal, mais bonito, mais tudo. Como as estrelas dos hotéis; quanto maior a constelação, melhor. Se algum colega aparecia tri-listrado, presente de aniversário ou coisa do tipo, logo se formava discreto burburinho, com breves notas de invejinha. A felicidade é ímpar.

O problema é que agasalho da Adidas era caro pra chuchu. Tive que me contentar com um genérico. Duas listras e só. Paciência.

Certa vez, uma colega apareceu na aula com um agasalho simplório, apenas uma listra nas mangas do blusão e na calça. A situação daquela família, concluí imediatamente, não deveria ser lá muito boa. Cheguei a ficar levemente compadecida, quis dividir meu lanche com ela.

Minha mãe não entendia o que tornava a terceira listra tão valiosa. Como se fosse espécie de terceiro olho, terceira margem do rio, terceiro segredo de Fátima. Eu não sabia explicar. Tal paixão cega, a minha pelo logotríplice também não se explicava.

Ontem saí com meu filho, ele está precisando de chuteiras. Quer uma da Adidas. Enquanto o vendedor mostrava os modelos e enaltecia a tecnologia do sistema de amortecimento, era para as três listras o meu olhar. As paralelas do meu passado, me reencontrando no infinito do presente.

Descobri que reparo nas listras dos outros. Se for agasalho esportivo, como os da Adidas, não tem jeito: conto quantas tem. Inconscientemente. Estabeleço, na hora, fugaz avaliação das pessoas com base na quantidade de listras que exibem – tal fiz com a colega da listra solitária. Com quem divido meu lanche, agora?

Meu filho não está nem aí com as listras da Adidas. Outros elementos na chuteira nova o encantam. Por exemplo, o craque que usa uma igual. Seus desejos são outros, diferentes dos meus, quando tinha sua idade. E, embora sigamos lado a lado, pode ser que eles se encontrem no finito das nossas vidas.

Qual é a música?

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Minha cidade tem mais de um milhão de habitantes. É dona de respeitável PIB e do principal polo de tecnologia da América Latina. Está bem na foto quando o assunto é IDH, e algumas das nossas melhores universidades estão aqui. É metrópole pra ninguém botar defeito, meu chapa.

E sabe da maior? A emissora de rádio da prefeitura (que toca cada musicão, de vez em quando) é dessas onde as pessoas ligam para pedir música. Os locutores vivem distribuindo beijos e abraços aos ouvintes, carinhosamente chamados de amigos. O João da loja de pneus, a Maria da lanchonete, o Zeca do supermercado – ninguém fica sem sua música.

Em tempos de You Tube e Spotify, onde qualquer um pode ouvir o que quiser e na hora que quiser, pedir música na rádio é um ato de bravura, a desafiar o império do streaming. Os ouvintes da rádio da prefeitura de Campinas são os heróis da resistência.

Nunca pedi música para rádio nenhuma. Nem dediquei, pelas ondas do rádio, canção a alguém. Tampouco tive uma dedicada a mim, fosse por AM ou FM. Nada feito pela internet, nesse sentido, entra no levantamento. Há um vácuo em minha biografia afetivo-musical.

Nasci e vivi por mais de três décadas em São Paulo. Lembro de, lá pelos anos 80, chegar da escola às seis da tarde e ir correndo ligar o rádio. Queria ouvir As Quinze Mais Pedidas. Houve uma época em que Swingue Menina, do A Cor do Som, ficou em primeiro lugar. Eu ia à loucura na pequena sala da casa da vila da rua Natal. Mas não ajudava a decidir o ranking. A gente não tinha telefone.

Hoje tenho. Aliás, em casa há mais telefones que pessoas, num contrassenso digno de nota (musical?). Bem que eu podia acertar as contas com o passado. Não saberia, no entanto, que música pedir.

Swingue Menina, talvez.

Fantasia de gato

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ilustração: Jeff Haynie

Eu tinha doze anos. Costumava ir com meu pai buscar minha irmã na casa da amiga dela, à noite, depois do colégio.

É verdade que não íamos só meu pai e eu. Led, um frajolão digno de desenho animado, ia junto. Até que ele gostava de passear de carro. Se não gostava, disfarçava bem. Gato é bom na arte do disfarce.

Então íamos eu, meu pai e o gato fantasiado. É, fantasiado. Com tempo livre de sobra, eu inventava adereços para o bichano, especialmente para recepcionar minha irmã. Um dia, ele surgia com enormes óculos recortados em papelão. No outro, em um colete colorido feito com tecido, fitas e o que mais estivesse dando sopa na caixinha de costura da minha mãe. Se as pessoas se fantasiam de gato, eu tinha um gato fantasiado de gente.

Às vezes, confesso que notava alguma resistência dele em topar a brincadeira. Noutras, parecia até gostar. Talvez apenas se resignasse. Gato também é bom nisso. Mas só quando não tem outro jeito. Sabedoria felina.

Minha irmã jura que houve um dia em que ele foi de bailarino. Não me lembro. Só sei que para o Led era carnaval o ano inteiro – ao menos durante o período letivo. Logo ele, que ganhara esse nome em homenagem a uma das maiores bandas de rock de todos os tempos, o Led Zeppelin. (Originalmente, por impulso, escrevi a ‘maior banda’. Mas assim que digitei ‘tempos’, já havia achado uma injustiça com as outras. Corrigido está.)

À tarde, quando voltava das minhas aulas, eu me dedicava a criar as fantasias. Era raro repeti-las. Os amigos da minha irmã, que também ficavam por ali, na casa da amiga, aguardavam ansiosos a chegada do carnavalesco peludo. “Como será que seu gato vem hoje?”.

Minha irmã terminou o colégio, a carona noturna acabou. Acabou também a brincadeira. E o pequeno folião nunca mais vestiu fantasia. Alguns anos depois, ele se foi. Uma pena não termos registrado nem uma das produções. Tirar fotografia, naquela época, era só de vez em quando, nos casamentos, aniversários, viagens. Comprar o filme, bater as fotos, mandar o filme revelar na Fotobom (ficava a dois quarteirões de casa e o dono era um japonês simpático), buscar na outra semana. Como sobrevivemos à espera, quase uma eternidade, para ver como havia ficado uma foto?

O Led fantasiado seria, fácil, fácil, um gato-celebridade do Instagram. Antigamente, rede social era só a família, a parentada, os amigos da rua e da escola. E ele tinha mais de dez seguidores! Nós de casa (menos minha avó, que não gostava de gato) e os amigos da minha irmã. Hoje? Um milhão, estimo. A admiração ficou hiperbólica. Seu avesso também.

Temos, agora, um imenso inventário imagético virtual de tudo. Teremos, no futuro, mais e melhores lembranças do que hoje? Será a nostalgia mais rica quando, daqui vinte anos, nos depararmos com imagens do aqui e agora, das besteirinhas do dia-a-dia que a gente vai clicando a esmo?

Como será a saudade no futuro, com um presente hiper-registrado?

Tenho saudade dos gatos que viveram comigo desde que cheguei a este mundo. Foram tantos, tantos.

Vou construindo mentalmente meu vasto inventário gatístico, e boto na vitrola a melhor trilha para um carnaval: Black Dog, do Zeppelin. Só para provocar o cat que dorme na cadeira ao meu lado. Que não é o Led, mas bem pode ser, por conta das idas e vindas das almas ronronantes neste planeta. Não dizem que os gatos sempre sabem voltar para casa?

Crônica de minuto #60

engraxate

Uma vontade da infância: ter meus sapatos lustrados por um engraxate, na Praça d­­­­­­­­a Sé.

Ele me chamaria de chefia e, enquanto fumaria um cigarro, daria um trato nos meus pisantes. Eu folhearia o jornal. Pessoas importantes leem jornais e têm sapatos engraxados, pensava.

Nunca via, sentada nas cadeironas de madeira, uma mulher sendo atendida. Também nunca me perguntei por que. Cresci, ficou sendo uma espécie de vontade não-autorizada. Talvez eu não achasse aquilo adequado para mulheres. E a vontade, perdendo o lustro, feneceu.

Quantas vontades se sepultam, em nome da adequação? Quais, de fato, mereceriam esse fim?

Nunca mais passei pela Praça da Sé. Desconfio que não existam mais engraxates por lá. Sumiram, assim como somem as vontades desautorizadas.

A casa morta

fotos: arquivo pessoal

No último dia do ano passado fui lá.

Fui buscar a velha Lanofix. Fingi que ia só para isso. Mentira. Fui para ver a casa morta. A casa onde nasci e cresci. Fechada há sete anos, desde que o último de seus sete habitantes se mudou de lá. Três deles não precisam mais de casa: meu avô, minha avó, minha mãe. A tríade que, em parte, me justifica.

A casa número 1 da pequena vila na Mooca está à venda. Ninguém quer comprar. Pudera. Quem quer uma casa morta? Morreu de solidão, depois que todos nós saímos. O reboco de algumas paredes cedeu. Sua pintura está descascada. A casa morta não tem mais pele. Nem carne. É apenas um esqueleto sem ânima. Ossos sustentando, sem vontade, um punhado de coisas importantes, além da Lanofix, inexplicavelmente largadas para trás: o carrinho de mão do meu avô, a enceradeira tão grande que nós “passeávamos” nela em dia de faxina. Meu violão, comprado no Mappin em três prestações. Os santos, hoje carcomidos, no quarto dos meus avós. No chão da sala ainda está o antigo telefone, daqueles de tecla. Penso que ele pode tocar a qualquer momento. Não sei se eu o atenderia.

Lanofix era a máquina de tricô da minha mãe. Ela fazia roupas de bebê para vender. Até a ‘ajudei’, quando criança, arruinando uma encomenda inteira. Depois de grande, aprendi a usá-la direitinho e fiz várias roupas para mim. Acabou esquecida em um dos armários. E no último dia do ano passado foi dia de buscá-la. Visitar a casa vazia foi como exumar as lembranças e reencontrar meus fantasmas de lã.

Tive algum medo de entrar na velha casa desdentada, de puro osso. Medo de ver coisas esquisitas, gente flutuando. Dizia para mim mesma: “A Lanofix, Silmara. É só trazer a Lanofix e pronto”. Funcionou, pois não vi nada, nem ninguém. Todos os fantasmas haviam saído. Houve uma hora, no entanto – é preciso contar, ainda que ninguém acredite – , em que eu já estava fora da casa e uma porta rangeu lá dentro. Não ventava e as janelas estavam fechadas. Eram eles, voltando.

No quarteirão, antes feito de casas, agora se vê um monte de edifícios. Do meio da vila, que no passado já teve um jardim com limoeiro, seringueira e pé de mexerica, antes de dar espaço aos carros dos moradores das quatro casinhas geminadas, eu digo aos pálidos prédios erguidos ao redor: “Vocês não sabem de nada”. Não sabem que foi nessa casa, em 1957, que meus pais fizeram sua festa de casamento, no quintal. (Vejo as fotos e custo a crer que coube tanta gente ali. Hoje, nele, mal cabemos minhas memórias e eu.) Não sabem que foi no quarto da frente que meu irmão nasceu, dois anos depois. Não sabem que nessa vila organizei, numa tarde qualquer dos anos 70, a festa de batizado para nosso gato Tommy (que ganhou esse nome em homenagem ao musical – nada como ter irmãos roqueiros), e um bocado de gente compareceu. Não sabem, aliás, dos amados bichinhos de estimação, entre cães, gatos e passarinhos, enterrados nela (inclusive o Tommy). Não sabem que naquela casa ganhei meu primeiro sutiã, e que ali minha mãe chorou o seio tomado pelo câncer. Prédios bobos, não sabem nada de nada.

E eu não sei mais usar a Lanofix. Mesmo assim, a trouxe comigo para minha casa viva. Está abrigada em sua elegante caixa verde. Talvez eu consiga, na internet, o manual dela. Talvez a opere, na intuição, e consiga tricotar alguma roupa nela novamente. Talvez eu ligue os pontos que faltam na trama da minha história. Talvez.

Com açúcar, com afeto, sem chantilly

Arte: Dabs
Arte: Dabs

O doce mais doce que o doce de batata-doce é o doce do doce de batata-doce. Certo? Errado. É o pêssego em calda. Ao menos, no quesito doçura-afetiva particular, é. Seu quase formato de coração há de justificar.

Só tinha pêssego em calda muito de vez em quando. Aniversário, data especial, comemoração, dia de pagamento. Era coisa de rico. Se acontecia de ter chantilly para acompanhar, virava banquete. Aliás, chantilly também era uma extravagância. Reis e rainhas, eu tinha certeza, comiam as duas coisas todos os dias, no almoço, no jantar e no lanche da tarde.

Primeiro, o furo inaugural. Em seguida, o roque-roque do abridor ao redor da lata mágica, revelando que a alegria vem do açúcar – ou vice-versa. A lata, só uma por ocasião, tinha que dar para todos. As metades eram minuciosamente aferidas e divididas. Não me lembro se tinha briga quando a partilha era inexata. De exata, apenas minha felicidade. A gente alça uma coisa à qualidade de transcendental quase que por nada. Um pêssego em calda é um pêssego comum, só que com roupa de festa.

Não sabia como o deixavam daquele jeito, tão amarelo, nem por que tinham que ficar partidos ao meio. Até hoje não sei, não quero saber e, admito, tenho raiva de quem sabe. Um pouco de ignorância dá o tom à fantasia. (Quando descobri que os maravilhosos pontos de luz cor de âmbar que sinalizavam as estradas em obras, à noite, não passavam de baldes de plástico cor de laranja com uma lâmpada dentro, foi uma decepção. Nem todo mistério precisa ser desvendado.) Eu nunca vou ler uma receita de pêssego em calda. Não me conte – tapo os ouvidos, lalalalá – , porque não pretendo reproduzi-los. Não se faz remake de um clássico.

Ontem fui ao supermercado. Passei reto pelo corredor dos doces. Já ia dobrando a esquina quando parei. Voltei, alcancei uma, não mais que uma lata. Não comprei chantilly, que nem precisa. A felicidade, que já custou mais, hoje sai por cinco reais e oitenta e nove centavos.

E, curiosamente, ainda me é tão cara.

Crônica de viagem #1 ou Família, a sagrada

sagrada familia tio tomas
Arquivo pessoal

Saio do hotel, estou a pé. Bastam uns quarteirões e eu surjo diante dela – e não ela diante de mim, sejamos humildes. A igreja da Sagrada Família é obra em eterno e santificado progresso. As gruas, incorporadas à paisagem de Barcelona, viraram extensões do projeto original. Ninguém se incomoda com elas, nem os pombos que ali fazem suas titicas. Tampouco Gaudí, dono dos traços, se amofinava com a demora na entrega. Dizem que, a quem lhe questionava sobre os prazos, ele respondia: “Meu cliente não tem pressa”.

Tio Tomás era espanhol, de qual cidade não sei. Casado com a tia Cida, que era irmã de meu pai. Os dois morreram há tempos e, como não tiveram filhos, a história do casal cessou ali, numa espécie de pretérito imperfeito. Não tinha mais ninguém para conjugar a família.

Próximo demais dos barulhos da segunda guerra mundial, ele ficara surdo. Escolhera o Brasil como pátria e era barbeiro da parentada toda. Mesmo quem não o visitasse com essa intenção, saía de sua casa com barba, cabelo e bigode feitos. Ele fazia questão. Hipocondríaco inconfesso, apresentava, orgulhoso, sua extensa farmácia a qualquer um que desse mole. Tocava sanfona, herança que tentou transmitir à afilhada, minha irmã. Mas ela não se interessou. Mais tarde, na faculdade, já órfã de padrinhos, ela aprendeu, dentre tantos, sobre o arquiteto catalão. O da igreja. De um modo ou de outro, a vida dá sempre um jeito de nos entrelaçar.

Apesar de querido, depois que minha tia morreu ninguém na família adotou o tio Tomás. Ele foi ficando de lado. Foram todos cortar cabelo noutro lugar. Ele continuava esperando pelas visitas. Também não tinha pressa. Um dia, não sei de quem partiu a ideia, alguém apareceu e o levou de volta à sua terra natal. Nunca mais o vimos. Foi aqui que ele morreu, nem sei direito quando, nem onde, junto aos seus. Como se os ‘seus’ não fôssemos também nós.

Em Barcelona, vejo meu tio Tomás em todo canto. Nos vovôs que passeiam pelo Parque Güell e nos comerciantes das Ramblas. Nos ruidosos senhores reunidos em charmosos restaurantes, afundando seus churros em espessos chocolates quentes. No exausto homem-estátua da avenida Diagonal. Tenho devaneios em catalão e saudades em português. E desconfio que nossa família, também em eterna construção, nunca foi tão sagrada assim.

Das lembrações essenciais

Ilustração: João Grando

Fecho os olhos por cinco segundos: tenho um metro e dez de altura. Visto uma camiseta tamanho 6, estou doida por um picolé e não sei quanto custa a boneca falante que acabo de pedir para minha mãe. Isso mesmo: eu sou criança.

Continuo. Ainda tenho um e dez, mas agora posso existir como se tivesse um e sessenta. Sinto como a primeira, penso como a segunda. E lembro, lembro, lembro.

Este é o exercício das lembrações essenciais, capaz de transportar adultos à infância distante, porém, com os cinco sentidos e a sabedoria (qualquer que tenha acumulado) de hoje. Para que serve? Aprender a se colocar no lugar do outro. Precisamente, no lugar de um filho ou filha que tenha um metro e dez e use camiseta tamanho 6. Um pouco mais, um tanto menos, não faz diferença. O importante é a parte de lembrar.

Suas memórias hão de se agitar e explodir igual pipoca no microondas. Ficarão cristalinas como a água da piscina onde você nadava com seu pai (e os dois pareciam muito maiores do que realmente eram, lembra?). Serão tão vivas quanto as cores da melhor fotografia que você já tirou até hoje.

E então se dará conta que, na idade que seu filho tem agora, você também tinha vergonhas bobas – de perguntar para o moço da videolocadora se tinha A Bela Adormecida – e medos paralisantes, como quando acabava a energia em casa e você não tinha certeza se sua mãe estava por perto, até que ela clareasse o breu da sua angústia, tocando sua mão e dizendo “Estou aqui, vamos buscar uma vela na cozinha?”. Se lembrará da fúria no olhar da sua avó ao ver os antúrios dela, tão caprichadamente plantados em frente à casa, agora colhidos e enfiados no vaso (ideia sua para enfeitar a mesa), quando encarar seu pequeno confessando ter sido o autor dos desenhos à canetinha nas almofadas, porque ele achou que assim elas ficariam mais bonitas.

Vamos lá, você ainda está com um metro e dez de altura. Vai se lembrar, de repente, que também tinha dificuldade para cortar a pizza sozinha, e não entendia o olhar intolerante dos mais velhos face àquele desafio pessoal.

Lembrará do seu pânico, solitário e silencioso, no primeiro dia de aula do primeiro ano, quando você não sabia se professores eram pessoas legais ou não, e se você ia poder comprar lanche na cantina, como faziam os alunos mais velhos (os ‘homens’ e ‘mulheres’ de nove anos).

Lembrará como os braços dos seus pais eram longos e alcançavam qualquer coisa no armário, e você se perguntava quando os seus também seriam assim.

Se conseguir realizar esse exercício, talvez você saiba que tudo o que pode fazer hoje – dormir e tomar banho na hora que quiser, por exemplo – representa o máximo da liberdade para seu filho.

Talvez saiba que o medo de ele perder você é do mesmo tamanho que o seu de perdê-lo, embora ele ainda não saiba disso, e apesar de cada um ter o seu motivo para.

Talvez descubra por que ele não entende como brócolis pode ser mais importante que biscoito recheado ou, para ficar nos exemplos mais simples, que o significado da expressão “fazer sala” não é literal.

Confesso: eu havia me esquecido completamente do exercício. Ontem o retomei. Passei o dia inteiro com um metro e dez de altura. E ainda não voltei ao meu tamanho normal.

Pequena lista de lembrar

Foto: Sara/Flickr.com

Preciso me lembrar que já tive cinquenta centímetros de altura. E que já tive meio centímetro, também.

Preciso me lembrar das (poucas) cicatrizes que tenho, como a deste dedo aqui, adquirida na máquina de cortar frios da venda dos meus pais, mais de trinta anos atrás.

Da minha madrinha fazendo careta, e da benção do padrinho, tomada sempre a contragosto. De como eu achava interessante eu e minha irmã termos padrinhos com o mesmo nome.

Do primeiro dia de aula no pré-primário, quando a professora pediu para cada um pendurar sua mochila vermelha no cabideiro e eu, por vergonha e não falta de educação, pedi que ela a colocasse lá para mim.

Do tamanco vermelho com costura branca que eu usava quando tinha seis anos, e insistia em andar com metade do calcanhar para fora, só para irritar minha mãe.

Do sonho aos sete anos: um gigante ruivo e barbudo saía de um buraco do fundo de uma caixa de areia, na vila onde morávamos, e aterrorizava os vizinhos. Se eu fechar os olhos, ainda posso vê-lo inteirinho. Ele não tinha cara de malvado. E nunca mais me visitou nos sonhos.

Da primeira noite que passei inteirinha acordada (por volta dos treze), simplesmente porque estava com vontade, e acabei escrevendo uma porção de coisas num caderno que não sei onde foi parar.

E das músicas que eu gostava aos dez, vinte, trinta anos.

Preciso me lembrar do Fritz, a maritaca que meu irmão comprou achando que era um papagaio, e a gente aprendeu a gostar, e ficamos tristes quando ele sumiu. E do Chico, o gato que apareceu no telhado de casa todo queimado, e nós cuidamos dele lá em cima mesmo, e ele ficou bom, depois partiu e, um dia, reapareceu para nos apresentar a esposa e os filhotes. Preciso, na verdade, me lembrar de todos os bichos que já passaram pela minha vida, seus nomes, histórias e manias.

Preciso me lembrar de procurar o Osmar, vizinho e amigão de infância, na internet e em todas as listas telefônicas que existirem. E me lembrar também de continuar batizando alguns dos meus personagens em sua homenagem, que é uma forma de ajudar o universo a conspirar pelo reencontro.

E que cogitei ser engenheira. Sequela do sarampo, só podia ser.

Falando em sarampo, preciso me lembrar do febrão que me fez delirar, vendo pessoas na janela do quarto e tendo alucinações com números gigantes.

Preciso me lembrar que eu fazia bolo para vender no colégio, na hora do intervalo; que costurava minhas próprias roupas e inventava minhas bijuterias.

Preciso me lembrar de quando não fui ao show dos Rolling Stones, porque havia terminado com o namorado. Para nunca mais perder um show por causa de amor – ou da falta dele.

E que prometi a meia dúzia de amigos repartir o prêmio da Mega Sena, caso eu o fature um dia.

Preciso me lembrar da minha filha na horta dos tios, lá no interior das Minas Gerais, agachadinha, espiando o mandruvá na folha de babosa. E do meu filho, desenhando um cartão de dia das mães, pedindo para eu não olhar enquanto não estivesse pronto.

E de todas as cores que meus cabelos já tiveram.

E de como minhas células se acabam de dançar quando ouvem “That’s the way (I like it)”, aquela do KC & Sunshine Band, para me lembrar de ouvir sempre.

Preciso me lembrar que, de acordo com as estatísticas e o fato de eu não fumar, nem beber, estou mais ou menos na metade da minha vida. Melhor, portanto, caprichar na soja, investir na palavra-cruzada e me convencer de que dá tempo de aprender a tocar piano. Bom lembrar, também, que se eu continuar fazendo uma tatuagem a cada ano e meio, quando eu fizer cem anos só terão sobrado as palmas das mãos e as solas dos pés.

Preciso me lembrar da importância das coisas sem importância, para aprender a relativizar.

E lembrar que ninguém nesta vida me cobra a perfeição, exceto eu.

Lembrar também que amanhã é meu aniversário e, sendo assim, tenho o direito, garantido pela minha lei, de fazer o que der na telha. E que domingo é Dia das Mães, que sou uma e que já tive a minha, desde quando eu tinha cinquenta centímetros de altura. Quer dizer, desde meio centímetro. Menos, até.

Nota: o Osmar eu reencontrei, em 2012. No dia do lançamento do meu livro. Uma alegria só! A foto está aqui: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=4224093755669&set=t.1084994260&type=3&theater

O telefonema da Dona Irene

Ilustração: Eurritimia/Flickr.com

Dona Irene foi professora da minha irmã em 1968. Ela tinha seis anos e estreava na escola. Como as primeiras coisas da vida geralmente ganham título de inesquecíveis – a exemplo de sutiã, emprego, beijo, carro –, com professor não é diferente. Salvo raras exceções, ele, que na maioria dos casos é ela, ganha aura especial, etiqueta de nobreza e carinho sem fim até o fim da existência. E, de vez em quando, acalenta no ex-aluno a questão: “Por onde andará?”.

Caso minha irmã tenha se perguntado isso algum dia, a resposta chegou via cabo, quarenta anos depois. Em sua casa, ela atendeu a um telefonema. Era a Dona Irene.

Não a descrevo porque não a conheci. E esqueci-me de perguntar à minha irmã, quando me contou. Mas vamos imaginá-la uma típica professora dos anos 60: cabelos presos, óculos, saia-lápis bem cortada. Além, claro, das mãos firmes e doces a guiar as dos pequeninos, e todos os demais predicados que uma docente deveria ter. Um personagem querido, enfim.

Prosearam uma prosa boa, as duas. Ela se emocionou ao saber que minha irmã havia se formado (sua missão estava cumprida), tinha dois filhos e estava feliz. Repassaram quatro décadas em poucas dúzias de minutos, com uma riqueza impressionante de detalhes, lembrados pela professora. Perguntou, citando nomes, pelos meus pais, meu irmão mais velho, que também fora seu aluno, e até por mim, que tinha um ano de idade, ou nem isso, na ocasião das aulas. Um caso de memória excepcional? Claro que não.

Concluímos, minha irmã e eu, que Dona Irene mantinha naqueles tempos um caderninho com informações sobre seus alunos. Nome completo, série, um ou outro detalhe… se era loiro, moreno, falante, tímido, inteligente ou sofrível. Coisa de uma jovem e zelosa professora que deseja guardar seus minialunos na lembrança. E, continuando o raciocínio, aconteceu do caderninho sobreviver ao tempo. A gente não guarda os nossos, do primeiro, segundo, terceiro ano? Professor também mantém suas relíquias escolares, diferentes das dos alunos. Quem sabe, Dona Irene vislumbrasse nele alguma utilidade no futuro. Quem sabe.

A nostalgia escorria pelo telefone, invadia o pensamento da minha irmã. Sua primeira professora, ali, do outro lado da linha! Como estaria seu rosto? E suas mãos, aquelas que lhe ensinaram as primeiras letras? Seria Dona Irene grande como parecia para minha irmã, em seu metro e alguma coisa de altura? Minha irmã se viu, ao mesmo tempo, em duas dimensões, passado e presente, a criança que gostava de andar com os pés dentro do bule e a mulher que se especializou em encontrar antepassados na internet. No meio de tudo, como num filme em fast-forward, relances da velha escola com seus pinheiros bem cuidados por Seu Teodoro, o jardineiro; a hora do recreio e o lanche preparado pela nossa mãe; o uniforme, os cadernos, as ingênuas composições sobre passarinhos que não têm peso na consciência, as tabuadas.

Lá pelas tantas, Dona Irene revelou o motivo da ligação.

A professora aposentada tem uma irmã, candidata a algum cargo político na cidade – vereadora, deputada ou coisa assim – numa dessas eleições. Sim. Dona Irene ligara para sua ex-aluna, que não via há quatrocentos e oitenta meses, para pedir voto.

Dona Irene deve ter tido um trabalhão para encontrar minha irmã. Consultado listas telefônicas do estado de São Paulo inteiro. Ligado para várias homônimas até achá-la. Crente que um voto pode fazer toda diferença.

Dona Irene, melhor pensar assim, não guardou o tal caderninho (se é que ele existe) com esse propósito. Se eu lecionasse, também gostaria de manter um banco de dados dos meus alunos, apenas para poder me lembrar deles depois. Um professor nunca sabe se, da sua turma, surgirá um gênio, uma lenda, um presidente da república. Já imaginou o orgulho?

Dona Irene, no entanto, parece ter encontrado uma utilidade para seus registros, onde e como quer que eles tenham sido salvos. Mas, cá entre nós, ela não precisava da artimanha. Distribuísse cem mil santinhos da irmã candidata e pronto. Passado bom não se revira.

Despediram-se, cada uma foi tratar de seus afazeres. A professora deve ter continuado a campanha com o próximo da lista. Minha irmã talvez tenha ido buscar a pizza na portaria, dado comida aos gatos ou sentado no sofá para assistir Friends.

Dona Irene, um quase-mito de infância para minha irmã, perdeu a oportunidade de perpetuar-se no rol das celebridades afetivas dela e de, quantos?, outros alunos daquela época, que também devem ter recebido sua intrigante ligação, mais de quatorze mil dias depois do último dia de aula.

Dona Irene, despejada do Olimpo, ingressara no mundo dos mortais. Dos pobres – e inconvenientes – humanos que pedem voto.

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[Nota: nem ia postar, dado o tema (escola) ter invadido o noticiário de maneira tão chocante e triste. Mas esta crônica já estava pronta. Paz para os jovens da escola em Realengo, no RJ, vítimas do massacre. Paz para seus pais. Paz para seus professores.]

A bolsa da Dona Jacy

Ilustração: Andrea Joseph/Flickr.com

Em (quase) qualquer lar do planeta é assim: a gente procura uma lembrança e se depara com outra. Quem nunca foi atrás do álbum de casamento e encontrou uma fotografia do pré-primário? Ou tentou localizar o telefone da madrinha numa agenda antiga e deu de cara com o do ex-namorado? Somos todos colecionadores de saudades.

Dia desses, uma das minhas cunhadas buscava nos armários uma mala para usar no final de semana. Achou. E acabou fazendo uma viagem inteira dentro dela. Só que ao passado. Entre quinquilharias, como uma régua com o logotipo do Banco do Brasil, medalhas e um missal, as preciosidades: quatro bolsas da Dona Jacy que, em rima triste, não conheci. Dona Jacy, mãe da cunhada, é também mãe do meu marido, mulher do meu sogro, avó dos meus filhos. Minha sogra. Uma das bolsas é vermelha, está com o fecho quebrado. Outra é branca. A preta ainda guarda um band-aid e o delicado par de luvas de cetim negro, registrando o último dia que ela a usou. E mais uma, de madeira. Um perfeito bauzinho, não fosse a alça lhe denunciando a função. Todas dentro do objeto inicial da busca – a mala – , enterradas no velho quartinho do quintal, endereço certo para o que ninguém quer mais. Naquele instante, desenterrava-se o que não merecia estar sepultado. Ainda havia vida pulsando naquelas bolsas.

É raro uma mulher emprestar sua bolsa à outra. É objeto pessoal, igual escova de dente. Nunca se sabe se a outra vai cuidar bem dela, se vai colocá-la no assoalho do carro porque as compras ocuparam o banco inteiro, ou se vai esbarrá-la, acidentalmente, numa parede com tinta fresca. E se a bolsa vai e não volta no prazo combinado, véspera da festa onde se pretende usá-la? Melhor evitar a saia-justa, o fim da amizade, o holocausto. Bolsa não se compartilha, e ponto. Mas não dizem que toda regra tem sua exceção?

Há dezenove anos as pobrezinhas das bolsas de Dona Jacy não davam um passeio. Esta semana, porém, encerraram o jejum. Ganharam novas donas. Vão todas morar em outros armários de mulher. Estão (bem) emprestadas, conforme reza a exceção. Repartidas entre as cunhadas e eu, a nora. Fiquei com a de madeira. Para combinar com meu elemento terra. Marido disse que se lembra da mãe com ela. Na hora, juro que vi uma lágrima ali.

Devo prestar atenção quando for usá-la. Não é bolsa de se levar o universo. Apenas batom, espelho e RG, para provar que sou digna de portá-la. Nela, não cabe a saudade do meu sogro e seus cinco filhos. Mas cabe a certeza de que tudo vive e revive, o tempo todo.

O melhor de tudo é que não tenho que devolvê-la. Dona Jacy não a usa mais. E nas festas aonde ela vai agora ninguém precisa de bolsa. A única condição, que eu mesma inventei, é eu passá-la a outra mulher da família, no tempo certo, perpetuando a tradição que acaba de ser criada. A pequena bolsa de madeira será, pela ordem natural, da minha filha, sua neta caçula. Que saberá a hora de emprestá-la novamente. Um dia, nas voltas que o mundo dá, ela acabará voltando para as mãos da dona.

Diariamente

Ilustração: Tadashi Kumai/Flickr.com

Todos os dias, enquanto escovo os dentes antes de dormir, presto atenção ao meu rosto. Não quero perder seu envelhecimento diário. Também não desejo, um belo dia, lá na frente, me assustar: “Meu Deus, estou velha”. Minha observação é pura precaução. Não posso fazê-la pela manhã, no entanto. Sou imprestável ao acordar. Como a tartaruga-marinha recém-nascida, que brota do seu ovo escondido na areia e dispara para o mar, eu broto dos lençóis e disparo para o chuveiro. É lá que termino de nascer. No banho, a água morna aciona minha agenda e eu repasso, tal uma vidente, o dia já anunciado.

Todos os dias, numa hora qualquer, presto atenção a alguma parte do meu corpo. Dedão, batata da perna, dorso da mão. Não quero perder de vista uma sarda nova, o anúncio de uma limitação física inédita, uma ruga que chega sem avisar. Meu corpo é uma hospedaria de sinais do tempo. Não gosto de todos, mas é preciso recebê-los e tratá-los bem. Sou feita deles.

Todos os dias, não sei ao certo a que horas, nem por quanto tempo, dedico-me a decorar os filhos. Estudo seus tamanhos, cheiros, formato dos olhos, quantos dentes aparecem quando sorriem. Talvez, por isso, ainda não tenha me espantado ao vê-los já grandes, nem compartilhado com outras mães as clássicas constatações, “Como cresceram!”, “Como o tempo passa rápido!”. Depois que tive filhos, o tempo não passou rápido coisa nenhuma. Seu compasso é o justo. Ser mãe demora. Uma vida inteira, por sinal. Às vezes, mais de uma.

Todos os dias, eu leio. Jornal, pensamento, olho, futuro. Nem sempre entendo o que dizem. Mantenho um dicionário na bolsa e outro no coração, para os casos de dúvida. Vez por outra, nenhum dos dois me acode. Então, em vez de ler, escrevo.

Todos os dias, é um tal de lembrar e esquecer as coisas, que nem sempre me lembro de lembrar de Deus. Sei que ele não liga para isso. Somos bons amigos, daqueles que não precisam se falar todo santo dia. E ele sabe que preciso mais dele que ele de mim. O que também não o preocupa. É mais velho, mais escolado. Não é dado a criancices. Isso ele empresta aos pequenos. Que vão lhe devolvendo as criancices, aos poucos, enquanto crescem. Mas eles nunca devolvem tudo. Sempre guardam um pouco delas, escondido entre uma coisa e outra. É assim comigo, é assim com todas as pessoas. Gente é incrivelmente parecida e repetitiva.

Quase todos os dias, quando dou comida para meus gatos, busco nas prateleiras mais inalcançáveis da memória as recordações dos outros animais que já viveram comigo. Três cães, dúzias de felinos, um hamster, alguns passarinhos. Enquanto fizer isso, vivos eles permanecerão. As lembranças são fundamentais para o registro da história – deles e minha. Despejo a ração nas vasilhas e vou historiando. Brinco que os bichos de agora são os de outrora, renascidos. É um jeito – inofensivo – de matar as saudades.

Quase sempre, no almoço ou jantar, imagino a jornada do alimento dentro de mim. Cada um dos nutrientes conhece plenamente a sua missão, sabe para onde ir e o que fazer para me manter viva e razoavelmente saudável. Ninguém lhes ensinou isso. Eles sabem por que sabem, a vida deles é tão somente ser. De vez em quando, queria ser um feijão.

Nem todos os dias sou feliz. Na maioria, alegre. Todos os dias, porém, sou valente. Isso basta.

Crônica de minuto #11

Joguei memória com as crianças, era de bichos. Acertei três, só. Não sou boa em lembrar das coisas passageiras, ainda mais aos pares. Meu negócio é o passado, com recordações tão eternas quanto únicas. Vou virando uma por uma, e não encontro nenhuma igual à outra. Crio, assim, meu próprio jogo: algumas eu deixo viradas para baixo – não fazem falta. Outras, para cima. Para sempre.

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Para Nara.

O tapa

Foto: Mathew Wilson
Foto: Mathew Wilson

O primeiro – e único – tapa que levei da minha mãe é tão antigo e vivo quanto a falta que ela me faz.

Ela fazia tricô para fora, como se dizia. Ou era o contrário. Porque vinha de fora para dentro de casa o dinheiro que ela recebia em troca dos casaquinhos de bebê, sapatinhos e mantas tricotados à máquina. E para dentro dela, também, os elogios que recebia, ficava tudo tão bonito. Nenhum trabalho é para fora, acabo de descobrir.

Um dia, eu quis ajudá-la. Adiantaria aquela encomenda. Um macacãozinho, talvez? Aproveitei uma saída sua do quarto, que fazia as vezes de ateliê. Postei-me de joelhos em sua cadeira, alta para mim, e arregacei as mangas. Parecia não haver segredo. No entanto, antigamente as máquinas de tricô não eram como as de hoje. Na Lanofix verde da minha mãe, uma única carreira exigia várias manobras, num processo lento e delicado (mais rápido, porém, que o tricô feito à mão). Passa o carro para a direita, ajeita aqui e ali, tira o pente com os pontos, encaixa o pente de volta, passa o carro para a esquerda. (‘Carro’, para quem nunca tricotou numa máquina, é aquela peça que vai de um lado para o outro, tecendo a malha.) Determinada em minha intenção, me pus a trabalhar. Não dei bola para nenhuma das etapas. Tudo que fiz foi levar o carro para lá e para cá. Não estava ficando muito bonito. Mas minha mãe sempre dizia que, no começo, não dá para ver direito como a peça vai ficar. Continuei. Carro para cá, carro para lá, que coisa mais fácil tricotar! Eu também poderia começar a ganhar meu próprio dinheiro, por que não? O carro para lá e para cá. Poderíamos compartilhar a máquina, mamãe e eu, enquanto eu não comprasse a minha própria. Será que vendem para meninas de cinco anos? O carro para cá e para lá. A malha continuava meio esquisita, mas ela tinha falado, no começo é assim. E o carro para lá e para cá. Ela voltou ao quarto, um grito. Eu não entendi nada, mas ela sim: a encomenda tinha ido para o brejo.

Foi um só, e bem dado. Não lembro onde pegou. Corri para o banheiro, me tranquei. Ela veio atrás. Pediu para eu abrir a porta, não abri. Ficamos assim: eu chorando do lado de dentro, ela chorando do lado de fora. Fosse ópera, seria acompanhada de uma tristonha sinfonia. Fosse cinema, usariam aquelas câmeras suspensas e mostrariam a cena lá de cima: finas porta e paredes a separar mãe e filha. O meu choro, dos olhos para fora, não era de dor, e sim de incompreensão. Tapas doem mais pelo que representam do que pelo que são. O dela, banhado em remorso, vinha de fora para dentro de seus olhos. Tal o verdadeiro sentido do tricô fabricado para as vizinhas e a parentela. Aquele, de que falei antes.

A mão viu no tapa a solução para o que ela, mãe, não soube expressar na hora. A mão viu a noite passada em claro, consertando o estrago. A mão viu a freguesa cobrando a encomenda. A mão viu o que os olhos não viram. A mãe, cega, obedeceu à mão. E elas, mãe e mão, eram tão doces.

Não tenho a quem perguntar como a história terminou, então rio sozinha. Não sei onde está a velha Lanofix, perdeu-se nas mudanças. Encontrei-a por acaso no meio das lembranças, encaixotadas em meu porão particular.

As botas

Ilustração: Sai Pennell/Flickr.com

Pudesse, eu andaria de botas o ano inteiro. De cano longo. Na primavera, para inaugurar a amizade com a frente-única em flor. No verão, para inventar composições inusitadas. No outono, para combinar com a roupa nova das árvores, folhas amareladas e avermelhadas. No inverno, para me confundir com todas as mulheres.

Na década de 70 a rua onde eu morava, em São Paulo, era famosa por seus calçados. Quase todas as casas se transformaram em fabriquetas. Garagens viraram lojas. Toda portinha fervia nas manhãs de sábado. Pegar um táxi do outro lado da cidade para voltar para casa era simples: qualquer taxista conhecia a Rua Natal, no bairro da Mooca. Meu primeiro par de botas foi comprado ali – eu tinha quantos, uns seis anos? Em couro azul-marinho, um zíper que ia do tornozelo até quase o joelho. Cobiçadas por muito tempo na vitrine da Blue Star, antes de serem minhas. Naquele tempo, as coisas demoravam mais para acontecer. O dinheiro era curto. O desejo e a espera, longos. Hoje não há tempo de desejar; vai-se logo aos finalmentes. Estamos na era do querer abreviado.

Vinte e nove graus. Na rua, vejo a moça de saia curta e botas. Ao seu lado, a moça de calça comprida, meia de náilon, scarpin. Tenho dúvidas sobre quem passa mais calor. Ninguém se espanta com o homem de terno aguardando o sinal de pedestres, derretendo sob o sol da avenida. Todos têm, no entanto, um comentário e um olhar surpreso para a bota, em tese, fora de hora.

No dia em que ganhei as botas da Blue Star, na hora de dormir, pedi à minha mãe para calçá-las. Dona Angelina não deixou. O jeito foi adormecer abraçada a elas. Meus sonhos, por certo, contaram com uma estrela-guia diferente naquela noite. De um outro azul.

As botas duraram enquanto meus pés couberam nela. Casamentos, aniversários e lá íamos, as botas e eu. Talvez por isso ainda signifiquem tanto, tantas décadas e botas depois. O coração aperta: minha filha não se lembrará de seu primeiro par de botas. Porque o segundo, o terceiro e o quarto par vieram em seguida, senão ao mesmo tempo. Na fartura, é difícil ser nostálgico.

Botas conferem poder a quem as usa. Os gatos que o digam. Elas emprestam personalidade adicional às pernas, reforçam formas, sugerem conteúdos. Turbinam qualquer teco-teco. Longe de esconder, elas revelam o intangível sobre suas donas. O andar, mais firme, é capaz de desbravar caminhos, como fizeram os Bandeirantes. Que, aliás, usavam botas.

Uma pena as botas de cano longo só aparecerem quando faz frio. Como os morangos, antigamente. Mas hoje eles podem ser encontrados em qualquer mês do ano. Quem sabe, as botas.