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Pequena lista de lembrar

Foto: Sara/Flickr.com

Preciso me lembrar que já tive cinquenta centímetros de altura. E que já tive meio centímetro, também.

Preciso me lembrar das (poucas) cicatrizes que tenho, como a deste dedo aqui, adquirida na máquina de cortar frios da venda dos meus pais, mais de trinta anos atrás.

Da minha madrinha fazendo careta, e da benção do padrinho, tomada sempre a contragosto. De como eu achava interessante eu e minha irmã termos padrinhos com o mesmo nome.

Do primeiro dia de aula no pré-primário, quando a professora pediu para cada um pendurar sua mochila vermelha no cabideiro e eu, por vergonha e não falta de educação, pedi que ela a colocasse lá para mim.

Do tamanco vermelho com costura branca que eu usava quando tinha seis anos, e insistia em andar com metade do calcanhar para fora, só para irritar minha mãe.

Do sonho aos sete anos: um gigante ruivo e barbudo saía de um buraco do fundo de uma caixa de areia, na vila onde morávamos, e aterrorizava os vizinhos. Se eu fechar os olhos, ainda posso vê-lo inteirinho. Ele não tinha cara de malvado. E nunca mais me visitou nos sonhos.

Da primeira noite que passei inteirinha acordada (por volta dos treze), simplesmente porque estava com vontade, e acabei escrevendo uma porção de coisas num caderno que não sei onde foi parar.

E das músicas que eu gostava aos dez, vinte, trinta anos.

Preciso me lembrar do Fritz, a maritaca que meu irmão comprou achando que era um papagaio, e a gente aprendeu a gostar, e ficamos tristes quando ele sumiu. E do Chico, o gato que apareceu no telhado de casa todo queimado, e nós cuidamos dele lá em cima mesmo, e ele ficou bom, depois partiu e, um dia, reapareceu para nos apresentar a esposa e os filhotes. Preciso, na verdade, me lembrar de todos os bichos que já passaram pela minha vida, seus nomes, histórias e manias.

Preciso me lembrar de procurar o Osmar, vizinho e amigão de infância, na internet e em todas as listas telefônicas que existirem. E me lembrar também de continuar batizando alguns dos meus personagens em sua homenagem, que é uma forma de ajudar o universo a conspirar pelo reencontro.

E que cogitei ser engenheira. Sequela do sarampo, só podia ser.

Falando em sarampo, preciso me lembrar do febrão que me fez delirar, vendo pessoas na janela do quarto e tendo alucinações com números gigantes.

Preciso me lembrar que eu fazia bolo para vender no colégio, na hora do intervalo; que costurava minhas próprias roupas e inventava minhas bijuterias.

Preciso me lembrar de quando não fui ao show dos Rolling Stones, porque havia terminado com o namorado. Para nunca mais perder um show por causa de amor – ou da falta dele.

E que prometi a meia dúzia de amigos repartir o prêmio da Mega Sena, caso eu o fature um dia.

Preciso me lembrar da minha filha na horta dos tios, lá no interior das Minas Gerais, agachadinha, espiando o mandruvá na folha de babosa. E do meu filho, desenhando um cartão de dia das mães, pedindo para eu não olhar enquanto não estivesse pronto.

E de todas as cores que meus cabelos já tiveram.

E de como minhas células se acabam de dançar quando ouvem “That’s the way (I like it)”, aquela do KC & Sunshine Band, para me lembrar de ouvir sempre.

Preciso me lembrar que, de acordo com as estatísticas e o fato de eu não fumar, nem beber, estou mais ou menos na metade da minha vida. Melhor, portanto, caprichar na soja, investir na palavra-cruzada e me convencer de que dá tempo de aprender a tocar piano. Bom lembrar, também, que se eu continuar fazendo uma tatuagem a cada ano e meio, quando eu fizer cem anos só terão sobrado as palmas das mãos e as solas dos pés.

Preciso me lembrar da importância das coisas sem importância, para aprender a relativizar.

E lembrar que ninguém nesta vida me cobra a perfeição, exceto eu.

Lembrar também que amanhã é meu aniversário e, sendo assim, tenho o direito, garantido pela minha lei, de fazer o que der na telha. E que domingo é Dia das Mães, que sou uma e que já tive a minha, desde quando eu tinha cinquenta centímetros de altura. Quer dizer, desde meio centímetro. Menos, até.

Nota: o Osmar eu reencontrei, em 2012. No dia do lançamento do meu livro. Uma alegria só! A foto está aqui: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=4224093755669&set=t.1084994260&type=3&theater

A lista

Ilustração: SteTop/Flickr.com

Eu já me apaixonei uma centena de vezes. E comecei cedo no negócio. Tinha até lista de namorados, registrada pela irmã mais velha. Com cinco anos de idade, eu ainda não dominava o alfabeto. Namorado, a bem da verdade, era modo de dizer. A lista, composta basicamente dos moços bonitos das redondezas (na minha infantil opinião), também incluía celebridades midiáticas. Não sei de onde tirei a ideia de ter tantos affairs, simultaneamente. Ingênua e perdoada poligamia.

Com 32 nomes, a lista original era encabeçada pelo Leão. O goleiro da seleção de futebol nos anos 70. Por causa das pernas, deixei claro. Em segundo lugar, aparecia o Sérgio Chapelin, apresentador do Jornal Nacional na mesma época, e do Globo Repórter nos dias de hoje. Acreditem: ele era um gato. Mais tarde, Chapelin perdeu o posto para Carlos Campbell, outro apresentador bonitão de telejornal. A irmã que fazia o inventário de amores conta que eu beijava a tela da TV cada vez que um deles aparecia. Nem reality, nem show. Aquele era meu treino afetivo.

Na sequência vinham, talvez não nessa ordem: o moço do açougue, o rapaz que aplicava injeção na farmácia, o marido da vizinha e seus dois irmãos. E tantos outros, cujos nomes e rostos se perderam na barafunda da memória. Boa parte deles sequer sabia dos meus sentimentos-mirins. Para os que me conheciam, ainda que de vista, eu era apenas uma garotinha engraçadinha da vizinhança. Os tempos eram outros. E ganhar uma bala de um conhecido mais velho não levantava suspeita de nenhuma espécie.

A lista se renovou ao longo da infância e adentrou a adolescência. Jogadores e jornalistas já não faziam mais tanto sucesso no meu coração. Era a vez dos garotos de carne e osso do bairro e, principalmente, os amigos da irmã liderarem a lista. Tirando meu sono, arrancando meus suspiros. O objeto do amor, finalmente, saíra das telas para a vida real. O que não fez tanta diferença, quase nenhum dos pretendidos queria saber de mim.

Cresci, a lista encurtou. Nada de dezenas de nomes. Agora era apenas um por temporada. Ator de seriado norte-americano, vocalista de banda inglesa, psiquiatra badalado (com consultório perto de onde eu trabalhava, para azar das colegas que eram obrigadas a passar em frente ao prédio todo dia), professor de inglês e até palhaço de programa infantil. De tudo, um pouco. A reduzida lista resistia, carimbada pela primitiva essência: a paixão platônica light, sem maiores intenções e por vezes alimentada só de diversão, agora convivendo pacificamente com os namoros de verdade, com seus sujeitos e predicados.

Namorei muito. Mas minha lista, hoje, é de um nome só. Também escrito numa folha de papel. Papel passado, como se diz. No Dia dos Namorados, só um presente. Bem melhor assim.