Uma a uma, foram todas descendo do armário.
Liderando a marcha, a vermelha de franjas. Claro, sempre foi a mais espalhafatosa. Em seguida, a preta com estampa de Fusca (até ouvi a buzina). Depois, a amarela com um gatinho de óculos. A de camurça cor de laranja. A de crochê marrom que veio de Natal, a coloridona que ganhei da cunhada, a azul que combinava com o céu no dia em que a adquiri (e o fiz justamente por isso).
Antes que eu pudesse reagir, alinharam-se sobre a cama, tirando satisfação. Queriam saber que história é essa de elas não saírem mais de casa. Há cento e seis dias minhas bolsas estão confinadas no guarda-roupa, exiladas, feito os batons no banheiro. Ameaçaram um movimento organizado de fechos-éclair e inquiriram, desconfiadas, com quem eu estava saindo. Então, a cinza, que já foi meia dúzia de vezes para o conserto (pudera, custou setenta reais), delatou, não sem uma nota de ciúme: “Ela agora só sai com aquela pequenininha metida, que não cabe nada”.
Vi, então, que era hora de ter uma conversa com elas. Papo reto. Mandar a real.
Falei da pandemia. Do Coronavírus. Da quarentena. Das máscaras. Das UTIs. Dos caixões.
Expliquei que, assim como tenho me esforçado para ficar em casa, elas precisam ser pacientes. No sentido de ter paciência, não de ir para o hospital, Deus nos livre. Que no hospital nem teria lugar para elas.
A bolsa cor de vinho – que a vendedora insistiu, o tempo todo, em chamar de ‘marsala’ – era, nas últimas semanas, a minha preferida no mundo pré-pandêmico. Cabe de tudo, da sombrinha às pequenas compras do dia-a-dia. Jaz, coitada, pendurada na entrada de casa desde março. Estamos em julho. Ensaio toda semana dar-lhe um banho, está empoeirada. Tenho medo, no entanto, de botar a mão lá dentro e encontrar elementais morando ali. Sei lá, uma família de gnomos, uma turma de duendes. Não quero incomodar. O banho fica para o pós-pandemia.
A pequenininha que elas falam é decana. Adquirida, en passant, num salão de beleza que nem existe mais. Eleita para a quarentena, nela mal cabem a chave do carro, o celular, o cartão do banco enfiado na capinha da CNH. Forçando um bocadinho, o mini-frasco de álcool gel também.
Logo eu, que costumo, nas bolsas, trazer o mundo comigo. Creme para mãos, carregador de celular, caderninho, caneta, batom, lenço de papel, Neosaldina, óculos de sol, óculos de grau, mini-lixa de unha. Há anos tenho o costume de ter, para eventualidades, uma pinça. Confesso: jamais usei.
Nas ruas, mais mulheres desbolsadas. Onde levam suas tristezas, agora? Algumas andam para lá e para cá como se tudo estivesse normal. O medo, eu sei, vai a tiracolo. A desconfiança, rente ao corpo. A incerteza pesando nos ombros. A pandemia é uma bolsa sem alça que o mundo terá de carregar por mais algum tempo.
Ao final, as bolsas desistiram da intentona. Resignadas, retornaram aos seus lugares. Mas brigaram para ver quem ficaria na frente nas prateleiras, parecem crianças. Pedi que confiassem em mim. Logo, voltaremos a passear juntas. Fechei a porta do armário, sentei-me aos pés da cama e veio uma ligeira vontade de chorar. Não tenho ideia de quando, nem como, será esse logo. Eu só queria que todos estivessem bem, como estamos aqui em casa.
Dizem que, depois dessa enrascada sanitária, sairemos transformados como pessoas. Leio coisas inspiradoras, sobre sermos menos consumistas, mais conscientes, mais solidários e empáticos.
Tenho dúvidas, embora torça e me dedique, pessoalmente, a isso. Por enquanto, a única certeza é que na minha bolsa não vai mais ter pinça.