Enquanto pintava as unhas, lembrei.
Quando eu precisava ir à farmácia tomar injeção (ai!), comprar remédio ou só acompanhar alguém, ficava fissurada nos esmaltes. Na Droga Cisne havia uma pequena vitrine sobre o balcão, cheia de Coloramas e Impalas. Cada vidrinho era um minimundo de cor, formando um arco-íris de formaldeído e nitrocelulose. Mas criança não pintava as unhas.
Nos anos setenta, não havia a overdose cromática dos esmaltes de hoje que, só de rosa, tem uma centena de tons. É a popularização da escala Pantone, com secagem ultra-rápida. Os nomes dos esmaltes também eram simples, quase singelos. Zazá. Rebu. Areia. Kirei. Hoje quem os batiza não quer saber de minimalismo. Nos rótulos, frases com sujeito e predicado nomeiam cada vidrinho, numa espécie de storytelling. Dias atrás passei um com o nome “Zeca chamou pra sair”. Sendo eu uma mulher casada, devo considerar isso traição?
Minha mãe preferia os clarinhos, “cor forte, não”. Gostava do Zazá, um lilás suave. Só nas mãos, no entanto. Ela nunca pintou as unhas dos pés. Eu tinha trinta e nove anos quando estreei a cor nos meus artelhos. Taquei logo um vermelhão, para compensar a vida passada em branquinho. Achei-me bem ousada, aqueles pontinhos vibrantes nas pontas dos meus pés.
Os dedos dos pés da minha mãe, quando vistos por baixo, pareciam balas de coco. Aquelas, que as tias faziam para as festas de aniversário ou casamento. Sempre quis escrever isso, não sei por que. Nunca mais comi aquelas balas. Quase não tenho mais tias.
Na Droga Cisne quem nos atendia era o Arquimedes. Farmacêutico dedicado, simpático, falava baixinho. Tinha um problema nas costas que fazia sua cabeça pender para o lado. Diziam que ele chegara a estudar Medicina, sem, no entanto, ter se formado. Era comum o bairro todo se “consultar” com ele. Quando o Arquimedes ficou velho, seu filho, parecidíssimo com ele, assumiu a farmácia. E se tornou médico.
Eu achava bonito o desenho do cisne na fachada. Pensava na história do patinho feio, que crescia e se tornava uma linda ave. Eu me identificava com o patinho. Queria crescer logo, para ter unhas compridas e usar aqueles esmaltes. Viraria, então, uma cisne.
Depois que meus pais foram trabalhar na venda, Dona Angelina não tinha mais tempo para a manicure. Pudera. O dia inteiro fatiando frios, pesando arroz e feijão, arrumando mercadoria nas prateleiras, lavando copos no bar. Que esmalte sobreviveria? Suas mãos tinham um permanente cheiro de café moído. Ou de presunto.
Eu gostava de brincar com suas coisas: acetona, lixa, palitinho de laranjeira. Quando vi um pé de laranja, pela primeira vez, fiquei procurando o tal palitinho. Não achei. Eu roía minhas unhas. De vez em quando era autorizada a usar um rosinha nas mãos. Logo o esmalte descascava nas unhas carcomidas, uma feiúra só. O cisne nunca chegava.
Assim que Nina saiu da minha barriga e a aconchegaram em meu colo, a primeira coisa que vi foi seu rostinho. A segunda, seus dedos finos e longos. Queria que minha mãe soubesse que a neta caçula, que já nasceu cisne, tem as unhas mais lindas do mundo.
A Droga Cisne, tão única, não existe mais. Na mesma rua abriu uma Drogasil, igual a qualquer outra Drogasil. Deve ter uma prateleira cheia de esmaltes multicoloridos. E uma garotinha que passa por ali, de vez em quando, atenta aos vidrinhos. Esperando sua vez de ser cisne.