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Caneta

A professora Genoveva Lé anunciou: “Hoje vocês vão usar caneta para fazer a lição.” Terceiro ano do primário, só dava lápis nos livros e cadernos. A caneta, portanto, representava um upgrade na minha vida escolar.

Fiquei secretamente eufórica. Estava, oficialmente, autorizada a usar a ferramenta de escrita dos adultos – como se meus rabiscos à caneta, em casa, não contassem. Olhei ao redor, os colegas também se sentiam assim? Não importava. Então pronto, eu já era grande. Isso bastava. Quando bateu o sinal da saída e eu cruzei o portão, devo ter descido a rua com expressão igual à da garota do comercial do primeiro sutiã.

A primeira lição à caneta é uma espécie de primeiro sutiã.

Sobre a máquina de costura da minha mãe, onde eu fazia o dever de casa (uma Singer com gabinete, quando fechava virava uma mesa), ajeitei caderno, livro, lápis e borracha para apoio moral, e a Bic azul. E se eu errasse?

O lápis era o cara legal, condescendente com meus erros. A caneta bancava a impiedosa. Com ela, sem o recurso do “branquinho”, que também estava proibido, era como gravar na pedra. Manejá-la demandava certeza. E alguma autoconfiança.

A professora ensinara a fazer tracinhos verticais, paralelos e levemente inclinados sobre a palavra errada, escrevendo a certa em seguida. O que era desvantajoso, pois revelava o erro. Se escrevesse ‘giboia’, ou confundisse um tempo verbal, ela ficaria sabendo. Para disfarçar, o jeito era encher de tracinhos, até que o erro se tornasse ilegível. Quem preferisse, poderia fazer a lição a lápis, e depois passar a caneta por cima. O que levava duas vezes mais tempo e não me parecia um bom negócio.

Nos dias seguintes, quando havia ditado ou problemas de matemática, a turma, na dúvida, perguntava com qual, lápis ou caneta, era para fazer. Crescer, às vezes, carece de confirmação.

Logo depois, fomos liberados para usar as borrachas bicolores, que prometiam resolver o problema das palavras riscadas, enfeiando a lição. A parte vermelha apagava lápis, e a azul, tinta esferográfica. Foi minha primeira decepção como consumidora. Além de não apagar direito, borrava o papel e, às vezes, o rasgava. Mas o importante é que eu havia sido promovida na hierarquia estudantil, deixando para trás o universo das criancinhas dos primeiro e segundo ano. Eu já tinha nove anos, oras.

Depois da caneta azul, pudemos introduzir a verde e a preta. Vermelha não, que essa era reservada à professora. Uma paleta bastante restrita, comparada ao arco-íris infinito das Stabilos de agora.

Hoje, quando digito no smartphone ou no notebook, é como se eu escrevesse a lápis o tempo todo. Escrevo, apago, reescrevo. Tenho à disposição uma borracha mágica, invisível e eficaz, que nunca acaba. E o melhor: não deixo rastro. Isso quando não sou corrigida automaticamente – o que pode ser tanto o céu como o inferno, mas essa é outra história.

Tecnologias à parte, a verdade é que as canetas seguirão registrando o mundo. E sempre haverá uma garotinha secretamente eufórica usando uma pela primeira vez.

O piano e a máquina de escrever

piano

Sempre quis saber tocar piano. Em vez disso, fui escrever. Combinar letras, em vez de notas, sempre me pareceu mais fácil. Repare: palavra é um tipo de nota musical. E um texto não deixa de ser uma música. Ouça esta história; leia esta canção. Tem poesia de dançar coladinho.

Quando criança, fiz meia dúzia de aulas do instrumento com o amigo, vizinho, gente boa. Osmar tinha cabelos loiros e compridos, parafinados como pedia a moda. Trouxera um skate dos Estados Unidos, o que, nos anos 70, o tornaria uma celebridade no quarteirão. Tocava piano como poucos. Conta a lenda que, no aprendizado, eu estaria mais interessada na hora do lanchinho. Costumava levar algum quitute para as aulas na casa dele, pegada à nossa. Por isso, ou não por isso, a coisa não foi para frente. Entre outros motivos, eu odiava solfejar. E não sei se ele gostava daquele ofício.

Nunca cheguei a tirar som de um piano, exceto o antológico trecho d’O Bife. Sou capaz, no entanto, de tocar uma máquina de escrever (das de ferro, das virtuais). Componho meus textos instintivamente; não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe o que são orações coordenadas sindéticas, quanto mais as assindéticas. Quer dizer, devo ter aprendido um dia, não sei mais. Escrevo “de ouvido”.

Quando tinha vinte anos, chorei as pitangas para um (outro) professor de piano. Disse-lhe que, àquela altura, achava tarde para aprender a arte. Aos trinta, lamentei: houvesse começado aos vinte, já estaria tocando tudo, tudinho. Aos quarenta, mesma lamentação, retroativa aos trinta. Hoje, um pé nos cinquenta, tivesse começado aos vinte, trinta ou quarenta, já estaria tocando tudo, tudinho. Imaginei-me aos sessenta. Jamais consegui responder, com razoável argumentação, por que não retomo o sonho.

Osmar e eu ficamos muito tempo sem saber um do outro. Da última vez, eu fui lhe dar um abraço pela sua exposição; ele se tornara artista plástico. No reencontro, quase vinte anos depois, ele veio me dar seu abraço pelo meu livro. O piano, para nós dois, e cada um ao seu modo, ficara para trás.

E se nem todo sonho deixado para trás tiver que ser lamentado, dado como morto? Já sonhei ser professora, já sonhei me chamar Noeli (por causa da novela Bandeira 2), já sonhei ter uma calça baggy verde limão (da loja Piter, centrão de São Paulo). Três quimeras infanto-juvenis que, simples assim, não são mais. O piano, talvez, esteja na mesma categoria, e meu deleite seja apenas seu som, enfim. Eu disse talvez. Gostar de cinema e de pavê de chocolate não me faz, obrigatoriamente, desejar produzir um e outro. Cinema e pavê estarão em mim, do mesmo jeito.

A partir de hoje, quando me perguntarem o que estou fazendo com caderno e caneta nas mãos, direi: “Estou compondo”. E o farei, por que não?, solfejando.

Sob controle. Ou não

Ganhei do ex-namorado. Uma máquina de escrever Underwood, garimpada num antiquário em Santana de Parnaíba. Era 1992, era sábado e tinha sol.

Eu nunca soube precisar sua data de nascimento. Uns batem o olho e atestam: anos 30. Outros  chutam, é cinquentinha. Minha intuição (mentira; pesquisei rapidamente no Google) diz que ela está no meio dos dois. É o presente mais cheio de passado que já recebi.

Ficou bom tempo encostada, sem lugar que a acolhesse. É grandalhona, pesa feito chumbo (embora eu nunca tenha pego em chumbo). Há pouco, resolvi colocá-la em exibição na sala de jantar. Desde então, não dá outra. Cada um que passa por ela – em especial, crianças que nunca viram uma – faz questão de testá-la como bem entende, tec tec tec tec tec tec. Falta-lhe certa lubrificação, então lá se vão as letras, ou tipos, encavalando.

Eu, como mãe zelosa-furiosa a controlar a apalpação excessiva de seu recém-nascido pelas visitas assanhadas, vivia barrando. “Não faz assim”, “Assim estraga”, “Não puxa desse jeito”, “Não fica girando o cilindro!” e outras ordens, cumpridas à revelia ou desobedecidas na cara dura.

Movida pela compaixão (nostalgia?), mostro (brevemente; não tenho tanta paciência) como funciona. Querem saber se era a minha, quando criança. Para quem nasceu neste século, qualquer coisa com mais de quinze anos é antiguidade. Então, tanto faz se eu usava uma Underwood dos anos 40 ou uma Olivetti dos anos 90. É tudo velharia, passado longínquo, matéria dos livros de história.

A própria época do namoro e do passeio à Santana de Parnaíba já é velharia, passado longínquo, matéria do meu livro particular de história.

Como não consigo frear a curiosidade dos pequenos (deveria, afinal?), uma decisão tomei. Não os detenho mais. Desisti. A Underwood permanece em exposição em seu altar (mentira; é sobre o bufê). As crianças seguem em suas investidas. Mas já não dou uma voadora em quem aperta o liberador e o carro dispara para a esquerda, pá, plim! Divirto-me, aliás; o pequeno infrator sempre toma um susto. Não ligo se brincam com os marginadores. Não reclamo mais se os tipos encavalam.

O exemplo é bobinho, mas o aprendizado tem valido para um bocado de coisa, digamos, não-bobinha. A gente é mais feliz quando para de querer controlar o incontrolável. Cansa menos. E isso é de uma obviedade, tão fundamental quanto oculta, impressionante.

Escreve (datilografa ou digita) o que estou dizendo.

A falta que o F me faz (*)

Vi o gato brincando com algo no chão, todo animado. Fui conferir, ele costuma torturar lagartixas. Nunca deixo, liberto todas e ele me odeia por isso. Atrás do pé da mesa, identifiquei o objeto de tanta alegria: a letra F do teclado do meu notebook.

A pobre consoante, parceira de tantas frases, caíra sabe-se lá como e agora era um pedaço de plástico sem ânima, arremessado de lá pra cá e de cá pra lá na sala de jantar. Como sempre faço com as lagartixas, ralhei com o gato e acabei com a farra. Tentei reimplantá-la, estudei-lhe a engrenagem, resisti à tentação do Super Bonder. Guardei-a para, um dia, levá-la à assistência técnica. Nunca fui. E não sei mais onde a guardei. O F se foi, para sempre. È finito.

Sei de cor sua posição no teclado, desde os tempos em que datilografava os trabalhos de História na velha Olivetti. É verdade que preciso apertar mais o dedo ali, no buraco deixado por ele. Como alguém que muda o andar quando perde uma perna, e nem por isso deixa de chegar aonde precisa. F F f F f f f f. Vê? Quem precisa da assistência técnica?

No teclado banguelo D e G ficaram sem o vizinho do meio. Sabem que F não morreu, só não está mais entre nós. Como um anjo virtual, ele segue conferindo significado à cada palavra onde é requisitado. Faca, farinha, aferição, fermento, afinidade, fantasia, elfo, fé (firme, forte). Franco.

Se alguém vai usar meu notebook deficiente, é preciso avisar da letra faltante. Igual quando se orienta uma pessoa que começa a conversar com um surdo, “Ele não ouve”. A pessoa fica incomodada, hesitante, com certo medo de piorar a situação.

Tem gente que perde braço, dedo, namorado, e aprende a viver sem. Se reinventa. Eu aprendi, por exemplo, a viver sem a minha mãe. O buraco (fundo) que ela deixou nem é mais buraco. E basta que eu me lembre dela para que ela exista. (Não sei, porém, se saberia me reinventar no caso da falta de um filho.)

As letras, como as pessoas, moram no pensamento. Não nos teclados.

Assim como da minha mãe, também sinto falta do F ao meu alcance, na ponta dos dedos. Acostumei-me, porém. Reinventei-me? Não sei. Só sei que continuo escrevendo felicidade do mesmo jeito.

 

(*) Licença poética de “A falta que ela me faz”, livro (indispensável) de Fernando Sabino.

De papel

Arte: Etringita
Arte: Etringita

Eu uso agenda de papel.

Faço reuniões pelo Skype e uso agenda de papel.

Compro sapatos pela internet, tenho leitor de código QR no celular e uso agenda de papel.

Baixo músicas, subo arquivos, utilizo vários aplicativos de mensagem instantânea ao mesmo tempo, estou nas redes sociais, tenho blogs, vou a qualquer lugar com GPS e uso agenda de papel.

Sou, com razoável desempenho, quase um ser digital. Na hora de organizar tarefas e compromissos, porém, ainda sou analógica.

O amigo geek me vê chegar para a reunião empunhando a dupla improvável tablet & agenda de papel. Pergunta se vim a cavalo. Sou discriminada. É bullying.

Nem sempre foi assim. Tive um relacionamento sério – casamento, propriamente dito – com um handheld, aquele pequeno computador de mão. Seu nome era Top. Palm Top. Estávamos sempre juntos. Ele sabia tudo da minha vida. Ele entendia tudo que eu escrevia.

Um dia, ele morreu. Inesperadamente.

Fiquei viúva, só no mundo, com contas a pagar cujas datas de vencimento eu não lembrava; só ele sabia. Quedei-me desnorteada, sem saber para quando estava marcada a consulta na ginecologista, a reunião na escola das crianças. Perdi aniversários, quase esqueço de renovar minha carteira de motorista. Levei um tempo para recompor minha rotina, resgatar a autoconfiança. Retomar a vida, enfim.

Naturalmente, passei a ter um pé atrás com a espécie. Não queria me entregar ao primeiro handheld que aparecesse, apesar das promessas de amor, estabilidade e backup eternos. Não, não. Preferi ir à papelaria. Flertei com vários modelos e saí de lá com minha nova companheira – virei gay? – , todinha feita em celulose. Desde então, nada de compromisso sério. Agora sou adepta do ‘ficar’. Papel sim, passado não. Uma vez por ano, adiós muchacha.

Tirante furto, incêndio ou enchente, a agenda de papel jamais me abandonará. Difícil é quando preciso transferir um compromisso para nova data (toca escrever tudo de novo) ou localizar uma informação importante (o que toma bons minutos). A tranquilidade tem seu preço.

Vez por outra, penso em superar o bloqueio afetivo-tecnológico, dar uma segunda chance à ciência para cuidar dos meus afazeres. (Afinal, a lista de endereços ainda é confiada ao chip do celular. Se perdê-la, não serei capaz de ligar para ninguém. Quem decora número de telefone hoje em dia?) Mas gato escaldado tem medo de água fria – já dizia minha avó, que odiava gatos e nunca soube o que é uma agenda.

Estou satisfeita com minha Tilibra amarela, modelo espiral, toda rabiscada. Que não é touchscreen, não requer bateria, não tem sistema operacional e roda com qualquer Bic. Viveremos felizes pelo resto do ano. Até que 31 de dezembro nos separe.

Crônica de minuto para quem sabe escrever

Arte: Chrysti

Filho recém-alfabetizado dá nisso: Nina escreveu o alfabeto inteirinho, de A a Z, sabe onde? Na colcha da cama dela. Novinha, acabou de ganhar. Catou a Bic e foi lá, treinar letra de forma.

Em seu papel de algodão cru, caprichou na caligrafia e expôs o recente aprendizado. Criança não diferencia os meios de comunicação autorizados dos não-autorizados.

Eu me lembro muito bem de, mais ou menos na idade dela, ter decorado a parede da sala de casa com uma canetinha. O “painel” consistia em uma longa estrada que nascia por detrás do sofá, subia e descia algumas montanhas, dobrava a quina e terminava atrás da poltrona. Fiz vários carrinhos trafegando, para conferir realismo à cena. Achei lindo. Não me recordo do que aconteceu depois. Considerando que podíamos brincar com as peças do aparelho de jantar da minha mãe, bem como com seus anéis e colares, a bronca pela estrada não deve ter sido tão feia.

E agora?, pergunto à Hello Kitty estampada na colcha. Mas que bobagem, as colchas não falam. Tampouco a gatinha do desenho. Através do seu olhar, ela chama minha atenção para o K e o Z espelhados e diz que é preciso falar algo à Nina. Que ainda não sei o quê. Faltam-me as letras.

Mundo de papel

Foto/montagem: Massimo Nota
Foto/montagem: Massimo Nota

Se seres extraterrestres resolvessem (se é que já não o fizeram) fazer uma varredura em nosso pequeno planeta, a fim de analisar este mundo e seus moradores, um item certamente não ficaria de fora dos relatórios: os papeizinhos. Os nossos papeizinhos.

“Humanos gostam de fazer anotações em pequenas superfícies produzidas a partir de fibras de celulose, cujo produto é chamado papel, que por sua vez vêm das árvores observadas na região”, registrariam. Talvez acrescentassem: “E, com frequência, eles os perdem”.

Não estariam os ETs referindo-se aos papéis em geral, os que documentam a nossa trajetória, nem aos livros, e sim, àqueles, soltos, que se lança mão na hora de registrar as coisas “para não esquecer depois”: de promessas de ano novo à listinha de compras da semana; dos projetos dos desejos ao telefone da fundamental nutricionista; dos desenhos concretos às ideias esparsas; das senhas diversas ao nome da canção que acabou de tocar no rádio; do resumo de ontem ao texto para amanhã; as prioridades para hoje. Seja na folha arrancada do bloquinho, na ponta de uma página de revista, em versões autocolantes ou no imprescindível naco de guardanapo, vale tudo para assegurar a lembrança posterior, não perder o prazo, não deixar de fazer.

A despeito da tecnologia, as coisas continuam sendo anotadas em papeizinhos. Parceiro fiel da caneta que não escreve, o papelzinho ainda é a peça mais importante na vida do executivo, da dona-de-casa, do estudante e até daquele vizinho geek. Carrega em si, em letra caprichada ou garrancho, na escrita lenta ou apressada, a estratégia decisiva, a receita testada e aprovada, uma cola providencial, o nome do aplicativo para baixar depois.

Haverá o dia em que o papel do papelzinho na história da humanidade será tão importante quanto as guerras e as revoluções. No pedacinho escrito à mão reside o amor, o ódio, a saudade, a criatividade; o medo da desmemória, a garantia, a salvação.

Quanto aos papeizinhos perdidos… Ah, esses vão parar num universo paralelo, rodeados de frondosas árvores, a celulose-mãe. Escapam pelas gavetas em misteriosos processos, são abduzidos de bolsas e agendas, levados pelos ventos urbanos e não-urbanos. Carregam seus conteúdos para outra dimensão e lá adormecem. Em sonhos, visitam seus donos que, ao acordar, não hesitam: correm anotar.

Cartas do coração

Arte: JakobT_98
Arte: JakobT_98

A enfermeira posiciona as ventosas no peito de meu pai, é hora do eletrocardiograma. Pergunto se posso ficar ao lado, na cadeira. Posso. Estar perto talvez não faça diferença alguma, mas publica o cuidado. Declara o afeto.

Ela ajusta os botões, aperta um deles e o papel zás!, assume seu posto. Torna a checar as ventosas, inspeciona os fios. Tranquiliza meu pai e delicadamente ordena, talvez pela quinquagésima vez no dia (muitos pacientes), “Agora, o senhor não se mexe”. Começa. A caneta do aparelho, em riste, vai escrevendo o que seu corpo manda. Eletrocardiograma é o ditado do coração.

Eu gostava de fazer ditados na escola. Escrevia rápido, terminava e buscava com o olhar a professora, aguardando a próxima palavra-desafio: “Quadrado”. Enquanto ditava para a classe, ela aproveitava para fazer outras coisas. Assim, dava tempo de errar, apagar, escrever de novo. Verificava as unhas, conferia o tempo lá fora. “Azaleia”. (Que, naquela época, ninguém ousava não acentuar). Caminhava até a porta, espiava o corredor e retornava. “Famigerado”. Essa era para ver quem escreveria com gê e quem botaria jota.

Meu pai obedece a enfermeira, está quietinho. Parece dormir. Eu também quero dormir, tão tarde. Acordado, naquele pronto-socorro, só mesmo o eletrocardiógrafo. Que segue ligeiro, traçando com determinação militar suas frases que sobem e descem. Como é que não se perde pelo caminho? Devem ser as tais linhas tortas de Deus.

Da cadeira, ouço o ronco – não do meu pai, do aparelho, que fala enquanto escreve. Como os doidinhos do sanatório, escritores dos livros imaginários da vida real. Ou será o contrário? Só sei que o exame vai ficando bonito na codificada caligrafia cardíaca. Fosse lição, meu pai tiraria nota boa.

Eu usei caderno de caligrafia. Sugerido a quem tinha a letra feiosa, nele as crianças aprendiam, na marra, a fazer letra bonita. Pena que nunca inventaram caderno de treinar, além de forma, conteúdo. Assim, as pessoas aprenderiam a escrever também coisas bonitas. A professora pedia para eu fazer a ‘barriga’ do bê bem redondinha, caprichar nas ‘perninhas’ do ême, não esquecer o ‘chapeuzinho’ nas vogais de som fechado. Letra é uma espécie de gente. Alfabeto, a família.

A enfermeira vem fiscalizar, o ditado está acabando. Vamos ver se meu pai passa de ano.

Que tanto a engenhoca rabisca no papel de pauta esquisita? O que o exame nos dirá? Se meu pai está doente, se vai ter de tomar remédio, se enfartou?

Que nada. Era só seu coração escrevendo uma carta de amor para minha mãe.

Crônica (amanhecida) de quinta

Arte: Johanesj

Para escrever uma crônica de quinta, é razoavelmente fácil. Recorra à formuleta: um personagem comum, uma ideia comum, um cenário comum. E conte tudo de um jeito comum.

Para escrever uma crônica de quarta, será suficiente acrescentar aos elementos acima uma dose de bom humor. Não há quem não sinta prazer ao ler uma coisa engraçada. “Porque de amarga, já basta a vida”, diria algum melancólico de plantão.

Para escrever uma crônica de terceira, ou terça, siga a receita: junte os itens anteriores (não esqueça o bom-humor) e some uma pequena porção de opinião. Opinião sincera, do coração, espalhada pelos parágrafos ou concentrada em um só – vai de gosto.

Para escrever uma crônica de segunda, o processo torna-se ligeiramente complexo. Além do já mencionado – bom-humor e opinião – , faz-se mister uma pitada de nostalgia. Enfie no meio do enredo uma memória infantil, uma lembrança doce, algo que acorde em seu leitor uma sensação adormecida – e querida.

Agora, para escrever uma crônica de primeira, ah. São outros quinhentos. Há que se eleger um personagem comum e fazer dele uma celebridade. Escolher uma ideia comum e vesti-la elegantemente. Definir um cenário comum, mas desses que enchem os olhos de tanta boniteza. Preferencialmente, fale do mesmo “comum” que seu leitor conhece e vive diariamente, mas que não teria condições de descrever tão bem. Pode-se, até, contar tudo de um jeito comum. E, nesse caso, bom humor, opinião e nostalgia nem farão falta.

Difícil mesmo é escrever uma crônica de sexta.

Os queridos diários

Ilustração: Shelly/Flickr.com

L. perguntou, na lata e por e-mail: o que fazer com os diários antigos?

Eu, que não sabia se ela só compartilhava a dúvida, ou se assumira que eu já os tivera, gelei. Onde estão os meus?

O primeiro diário a gente não esquece. E também não lembra onde o guardou. Foi Silvana que fez para mim, eu tinha oito anos. O caderno comum ganhou capa especial em papel camurça cor de vinho, com um arranjo de flores e trigos (por que trigo, minha irmã?), feito com aquela técnica da raspagem. Vieram outros depois, aprendi a confeccioná-los. De mesma serventia, mas sem o mesmo encanto do original.

Recheado de ilustrações, era um relatório de bobajadas pueris: o que eu fizera e como, descrições das pessoas da família, pedidos de desculpas por não ter escrito no final de semana. Como se diários fossem pessoas, carentes de apresentações e explicações. (E não são?) Aos poucos, fui acrescentando crítica aos registros. Os primeiros pensamentos de gente grande. Com que idade o encerrei? Pudesse, reviraria a casa. Agora.

Diários são feitos para serem lidos; mente quem diz o contrário. Ainda que o único leitor esperado seja o próprio autor. Queremos ser lidos por nós mesmos e a escrita é, quase sempre, o melhor dos espelhos. Diário é uma longa carta onde remetente e destinatário são a mesma pessoa. Já nasce entregue.

Diário é uma espécie de caixa-preta. As informações mais importantes do nosso voo particular estão ali, protegidas. A boa notícia: não é necessário esperar pelo dia da explosão, nem da queda, para entender o que houve e há. Basta abri-lo numa página qualquer.

O revés: diário é um dos mais cruéis instrumentos de tortura e chantagem. Se dá sopa, é abduzido. Geralmente por irmãos mais velhos ou amigos-da-onça. Com sorte, terão sua liberdade negociada. Na maioria dos casos, porém, serão devastados, varridos. Ou, em tempos de internet, escaneados e postados para Deus e o mundo ler. Deus não costuma passar as coisas adiante. Já o mundo…

E o que fazer com os diários alheios, sob nossa guarda? Resgatei os da minha mãe, entre uma mudança e outra. Acessei sua caixa-preta (tarde demais) e fiz meu inventário particular de memórias. Diários também têm dessa; sabendo que serão lidos depois, seus donos escrevem neles o que não puderam (ou não quiseram) dizer em vida. Ainda não encontrei um jeito de dizer a ela que tudo ficou e sempre ficará bem.

***

Quanto à L., direi-lhe, assim que possível: o melhor a fazer com os velhos diários, querida, é nada. Próprios ou não, eles não precisam mais de nós, nem nós deles. A partir da última palavra publicada na última linha da derradeira folha em branco, não estamos mais no controle. Eles mesmos darão um jeito de sumir. E, mesmo destruídos, é bom que se saiba: suas histórias já foram impressas no imorredouro do tempo.

Vida e morte de uma redação

Ilustração: Darlene Carvalho/Flickr.com

Começo assim: “Então ele se foi, tão rápido quanto um vento tolo”. Paro e leio o que acabo de escrever. Já vi vento fresco, mas tolo? Troco por ‘bom’. Continuo: “Então ele se foi, tão rápido quanto um vento bom. Deixando, em mim, a sombra do que eu aprendera a chamar de felicidade”.

Carece agora explicar o que aconteceu. Falar, de modo breve e econômico, sobre o rapaz da história, que não era fresco, nem tolo, nem bom, mas que abandonara a mocinha, narradora, na véspera de seu casamento. Devo ser ousada nesta hora, o enredo é batido. Pior: não sei direito o que uma mulher sente numa hora dessa. Rôo as unhas e rascunho no canto da página: “Então ele se foi, tão rápido quanto um vento bom. Deixando, em mim, a sombra do que eu aprendera a chamar de felicidade. Nenhuma paz restará enquanto essa noite assustadora fria [assim ficou melhor] me acompanhar”.

Até que está bonito. Bem ao gosto da melancólica professora que, dizem, terminou com o namorado. Vai chorar até. E eu ganho nota máxima. Ou um zero bem redondo, dependendo do estágio do luto. E do nível da caixa de lenços de papel em cima da mesa. Meia hora para entregar. Vamos lá, força na caneta.

“Então ele se foi, tão rápido quanto um vento bom. Deixando, em mim, a sombra do que eu aprendera a chamar de felicidade. Nenhuma paz restará enquanto essa noite fria me acompanhar. Eu, que aceitara viver com ele pelo resto dos meus dias, lhe acompanhando numa eterna contradança no salão das nossas vidas, agora me via condenada a um triste solo”.

Agora ficou meio bobo. ‘Salão das nossas vidas’?

“Então ele se foi (…) Eu, que aceitara viver com ele pelo resto dos meus dias, lhe acompanhando num eterno pax de deux, agora me via condenada a um triste solo”.

Faltam dez minutos. Eu deveria ter escolhido outro tema. Bomba atômica, Copa do Mundo, Rock in Rio. Não sirvo para escrever histórias românticas. Como é que eu saio dessa?

A morte há de resolver a parada. Mato todo mundo: ele num acidente de carro; ela, de bala perdida. Tudo numa prosa bem parnasiana. Vão os dois para o quinto dos infernos, e eu me livro, em três linhas, de perpetuar a bobajada.

Passo a limpo, entrego a redação, não encaro a professora. A caixa de lenços está vazia. Danou-se.