De casa dava o que, cem metros? Nem dois minutos a pé. A Escola Estadual Professor André Xavier Gallicho ficava, literalmente, na esquina. Mesmo assim eu, menina carente de pai e mãe em casa, posto que os dois trabalhavam na venda de manhã até à noite, gostava quando eles, a caminho do batente, me deixavam na escola.
A bordo do Corcel marrom eu tinha a carona mais breve e deliciosa do mundo. Mal dava tempo de abrir a janelinha do banco de trás, e já havíamos chegado. Eu queria ter um relógio esticador de instantes, para poder ficar um pouquinho mais com eles. Só os veria novamente quase na hora de dormir.
Para aproveitar a carona zás-trás, eu tinha que chegar cedo, muito cedo à escola. As aulas no primário começavam às sete, e às seis e vinte eu já estava no pátio. Sozinha. Quer dizer, eu e o bedel. Se eu saísse de casa faltando cinco para as sete, ainda chegaria antes de tocar o sinal. Poderia dormir um pouquinho mais, não? Não. E perder o gostinho de chegar de carro, Seu Tonico no volante, ganhar beijo e um “Estuda bastante, fica com Deus” da Dona Angelina? O sacrifício valia a pena.
Valeu até no dia em que meu pai, ainda na frente de casa, não percebendo minha presença ao lado do carro, fechou o porta-malas do Corcel no meu dedo. Não foi da maneira como eu gostaria, mas naquela manhã o relógio esticador de instantes funcionou. Muita dor, chororô e um pouco de gelo depois, alguns “Mas você não viu a mão dela ali?” e outros “Como é que eu ia ver?”, eles me deixaram no portão da escola. Estavam atrasados para erguer as pesadas portas de ferro da venda, e a freguesia não perdoava.
Eu perdoei meu pai pelo dedo inchado e dolorido, que foi mudando de cor ao longo da semana.
Nosso Ford Corcel também mudou de cor. Branco de nascença, foi repaginado pelo meu irmão, que havia descolado um compressor para pintura. Para quê gastar com funileiro, não é mesmo? A vila onde morávamos virou oficina, era tinta marrom para cá, lixa para lá. Findo o trabalho, a cor não deu brilho por igual, umas partes da lataria ficaram manchadas. Não ficou bonito, não. A história estabeleceu-se na família como aquelas empreitadas cômicas que até hoje a gente insiste em relembrar em (quase) todo encontro.
Naquela época, eu nem desconfiava que corcel é sinônimo de cavalo. Cavalo veloz, de batalha, para ser exata. Então fazia sentido aquele ser o carro da família. Levantar cedo, trabalhar o dia inteiro, negociar as contas, enfrentar credor, criar três filhos, era pura batalha.
O Corcel marrom foi o último carro que meu pai dirigiu. Ele nunca fora lá muito bom das pernas – “má circulação”, cresci ouvindo falar. Era prudente, então, aposentar-se da direção. Minha mãe jamais aprendeu a guiar. E eu perdi as caronas de minuto. Na vida existe perdição e perdeção.
Vi um Corcel na avenida, dia desses. Tão velhinho e desbotado quanto meu pai. Antes que o sinal abrisse, peguei nele uma carona, que me deixou no portão de um outro tipo de escola. Deu até tempo de abrir a janelinha do banco de trás. É que eu guardei o relógio esticador de instantes.