… falta um tanto ainda eu sei (*)

Arte: Iroki

Ela adianta o rádio-relógio em dez minutos, todos os dias. Promulga uma espécie de horário de verão, particular e abreviado, para ver se consegue se safar do próprio atraso. Finge não desconfiar da farsa que constrói. Enganar o oráculo do tempo é seu maior embuste.

A serviço de quem está a sabotagem?

Ao primeiro pi-pi-pi ela abre os olhos, tateia em busca do algoz de seu sono e lhe ordena o silêncio. Confere: seis e meia. Lá fora: seis e vinte. O fuso horário que separa seu quarto do resto do mundo tem seiscentos segundos mentirosos. Sua alma se levanta e tenta convencer seu corpo a fazer o mesmo. A batalha é cruel. Não há vencedores; apenas teimosos.

Nos dez minutos de faz-de-conta cabe o resto de descanso providencial. Cabe um terço de sonho e cabe até um sonolento sentimento de culpa, devidamente aninhado em irresistível travesseiro.

O tempo ganho ilicitamente é suficiente para uma escova expressa, um xixi em paz, uma cutucada nas unhas do pé. Ou para preparar um pão na chapa, passar rímel, combinar saia e blusa, fazer um afago no cão. A farsa continua.

Ela ignora o relógio digital do microondas, a delatar o horário de Brasília. Sua fé analógica é inabalável: ainda há dez minutos, viva!

Confere a bolsa, apanha as chaves, dá a partida no carro. Ainda crê estar no futuro, apesar do relógio no painel jurar dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade. O banco do motorista é o mesmo do réu. Ela dá de ombros, mete os óculos escuros e engata a primeira. Tem quarenta minutos para chegar antes dela mesma ao seu destino. O dia está quase salvo.

Ao burlar a lei do tempo ela se julga mais esperta que si. De esperteza é feita a hora que ultrapassa o dia pela direita.

Enquanto isso Cronos, de seu trono circular adornado com ponteiros de ouro, ri dela. Seu castigo está logo adiante, no primeiro semáforo quebrado. Arruinando o tempo que ela julgava sobrar.

(*) “Sobre o Tempo”, Pato Fu (John Ulhoa)

2 comentários em “… falta um tanto ainda eu sei (*)

  1. Sensacional, este texto está especialmente escrito. Vc caprichou nas construções, e a percepção da realidade está aguçada como sempre. Além disso, sou eu mesminha aí retratada.

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