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Os tijolos

Foram sete fiadas, eu contei.

Sete fiadas de tijolos cerrando o túmulo, aberto mais cedo para receber a tia. Passava das nove da manhã quando ela chegou. A primavera chegou um dia antes, reparei nos canteiros das outras lápides.

No túmulo da família, a tia agora reencontra o tio, seu amor. E também os sogros, os cunhados. Dos três andares em mármore, apenas um está vago e, dizem, reservado. Só Deus sabe o dia da mudança. “Não tenha pressa”, pedi, sussurrando em seus ouvidos onipresentes. Ele deu uma piscadinha. Deus já piscou para vocês? É bonito demais.

O funcionário, sabendo que era observado pela plateia enlutada, foi assentando os tijolos do túmulo com calma, algum capricho e certo respeito. Como quem ergue uma casa. Não deixa de ser uma casa. A última. Se na primeira fiada os tijolos couberam direitinho, na segunda, não. Pensei: e agora? Com a colher de pedreiro, o homem partiu um ao meio; mediu-o, ainda estava grande. Outra pancadinha no tijolo, assentou o toco, pronto. Se na vida tudo tem jeito, na morte também.

Mais uma fiada. A tia, tão elegante. Jamais lhe faltavam o cabelo escovado, a roupa alinhada, o batom. Amorosa, recebeu-me, vinte e um anos atrás, como legítima sobrinha. Sou muito sortuda.

Cemitério, reparem, é uma espécie de condomínio. Nele, a lei do silêncio vale o dia inteiro, e não só depois das dez. De vez em quando, ele é quebrado. Assim que o homem cerrou de vez o túmulo, varreu a baguncinha, lavou a pedra e foi embora, alguém puxou um cântico. Outros seguiram. Tia Lourdinha cantava no coral da igreja. Certeza que ela também os acompanhou, agora mais que nunca, afinada feito anjo.

Uma família é feita de tijolinhos. Bem ou mal assentados. Uns inteiros, outros nem tanto. Nem sempre encaixados com exatidão. Mas unidos por uma poderosa e invisível argamassa. Tijolo sozinho é nada. É no coletivo que a gente existe, nessa imensa olaria que se chama mundo.

Luiz

arte: Jason M. Peterson

Numa tarde, o Luiz foi até a vila onde eu morava e escreveu no muro, com tinta spray: “Silmara eu te amo”. Assim, sem vírgula e sem vergonha. Irmão da amiga de minha irmã, ele e eu tivemos um breve namorico. Coisa de adolescente, os caçulas das duas famílias. Os vizinhos foram conferir a declaração, até então inédita no pedaço. As opiniões, polarizadas, iam de “Que absurdo!” a “Que fofo!”, passando por “Os pais dela já viram?”. Quem viu e não gostou nadica foi meu avô. Mandou limpar, onde já se viu. Lá foi o Luiz com a lata de tinta branca, e a apaixonada missiva desapareceu. Fiz enquete na escola; quem mais já havia ganhado anúncio igual?

Numa noite, o Luiz e eu fomos dar um rolê no Opala branco – coisa fina – do pai dele. Sábado, anos 80, o point mais badalado da cidade era a Avenida Ibirapuera. Eu me sentia o máximo, circulando naquele carrão. Vidros abertos, uma Janis Joplin rouquíssima se esgoelando no toca-fitas, Moema inteira há de ter ouvido. Lembro direitinho, era Summertime na fita K7.

O namoro não engatou, a amizade ficou em pé. Luiz era divertido, sarrista, criativo. Onde ele estivesse presente, certeza que a gente iria rir, e muito. Família inteira, tão querida. As festas na casa deles eram animadíssimas. Em uma, com o tema “Ridículo”, o Luiz surgiu metido num casaco com pisca-pisca, desses de árvore de Natal, que ele próprio instalara. Quem não ama um amigo assim?

Numa manhã, o Luiz se foi. Estava em casa com a esposa, passou mal. Acode, o Samu vem vindo, a equipe orientando pelo telefone. Não deu tempo. Morreu nos braços da irmã caçula. No velório, eu não sabia o que pensar. Então, emprestei da Janis:

“One of these mornings

You’re gonna rise, rise up singing

You’re gonna spread your wings, child

And take, take to the sky, Lord, the sky”

Sua mãe partiria um ano depois. Sim, é possível morrer de tristeza.

Ontem vi num muro, em letra cursiva, meio torta: “Fulana, eu te amo”. São bonitas, as declarações públicas de amor. E os muros são perfeitos para isso. Acho até que essa deveria ser a principal função deles. Enquanto eu esperava o sinal abrir as lembranças passaram por mim, feito filme. Nunca mais andei de Opala. Há tempos não passo pela vila. Sete anos que o Luiz foi embora. E, de todas as suas brincadeiras, essa foi a única que não teve graça.

Wilson

O ano? Não me lembro. Estávamos no Primário, hoje Fundamental. Ao subir as escadas, estranhei os colegas no corredor, quando deveriam estar na sala de aula. Ninguém correndo ou fazendo bagunça, que seria o normal. Uns com olhar espantado, outros conversando baixinho. Perguntei o que havia acontecido. Um deles contou: O Wilson morreu.

Wilson era da nossa classe. Oito, nove anos? Fora atropelado na rua Florianópolis, onde morava, enquanto brincava. Caminhão, disseram.

Até então, nenhuma criança, que eu tivesse conhecimento, havia morrido naquele nosso pedaço da Mooca. Tão perto de mim. O ineditismo da morte pegou-me de jeito. Um estranhamento, uma tristeza recheada de susto.

Não fui ao seu enterro. A professora deve ter ido. As aulas continuaram sem ele. Seu nome era o último na chamada. Que ficou mais curta.

Daquele dia em diante, a cada vez que eu passava pela sua rua, pensava nele. (Ninguém sabe, mas até hoje, se acontece de eu passar por ali, penso.)

Não que fôssemos grandes amigos. Pouco sabia dele. Se assistia Família Dó-ré-mi ou se preferia Perdidos no Espaço. Para qual time torcia. O que gostava de pedir na cantina na hora do recreio. Não conhecia seus pais. Mas era alguém que eu via todo santo dia útil, entre cadernos e livros e provas de matemática e brincadeiras no pátio. De repente, nunca mais.

A morte, às vezes, pode marcar mais que a vida.

Não há uma fotografia dele sequer em minhas recordações da escola, já procurei. Para lembrar de seu rosto, preciso me concentrar. Então, ele surge por alguns segundos, para logo se misturar com os de outros colegas e desfazer-se em uma imagem difusa. De concreto, apenas isto: Wilson, meu colega de classe no Primário, morreu. Tinha oito, nove anos? Caminhão, disseram.

Nota: devo registrar, a título de assossego interno, que quando recebi a notícia dos colegas, ali no corredor, talvez por distração, ou por não ter ouvido direito, entendi outra coisa. Algo como o professor ter faltado, que não haveria aula. Soltei, para espanto geral, um infeliz “Graças a Deus!”. Só depois me dei conta do vexaminoso mal-entendido. Por instantes, e apenas por instantes, fui a sem-coração da turma.

O pato

ilustração: Aimee Marie

Já tive um pato.

Não o que faz quém-quém. Patinho de brinquedo, do tamanho do meu dedão. Todo preto (cinza?), de plástico, desses que param em pé. Uma amiga do primário me dera, nem sei bem por que. Só sei que o brinquedinho simplório e, aparentemente, sem graça, estava sempre ao meu lado. Como um fiel animalzinho de estimação.

Batizei-o, em notório arroubo criativo, de Patolino. Patolino pra lá, Patolino pra cá. Ninguém podia pegá-lo, tampouco desdenhar dele. Eu virava fera, encarnava a pata-mãe furiosa.

Não que não houvesse, em casa, outros brinquedos à minha disposição. Apesar da vida apertada, eu tinha lá minhas bonecas, como a Susi (prima da Barbie, que ninguém conhecia), a Vivinha, a Fofolete, as de papel. Bichos de pelúcia e outros divertimentos, inventados com coisas comuns, como caixinhas de fósforos vazias, pedaços de madeira que sobravam na oficina improvisada do meu avô. Tive também bichos de verdade, muitos. Desde meu primeiro dia de vida neste planeta convivo com eles, em especial os gatos.

O fato é que me afeiçoei ao patinho de plástico, como poucas vezes o fiz a um brinquedo. E podia jurar que o Patolino, pelo teor dos nossos papos (sim, nós conversávamos), também gostava de mim. Fui dando corda a esse antropomorfismo afetivo, sabido e aceito pela família. Até que, um dia, o pior aconteceu.

Vô Paschoal, sem querer, pisou no Patolino. Quem mandou largar no meio do quintal? Quando o vi destruído no chão, e meu avô bufando (para piorar a situação), só consegui recolher o que restara do Patolino, e me recolher à cama para chorar.

Chorei copiosamente a ‘morte’ do patinho como fizera, por tantas vezes, pelos nossos gatos que se iam. Soluçava, lamentando não ter me despedido do Patolino. Condenei-me ao título de criança mais infeliz do mundo, que não sabia como ia viver dali em diante.

Então ganhei outro patinho de plástico. Parecido com o Patolino, só mudava a cor. Não me recordo se foi presente da mesma amiga ou se meu avô, redimindo-se do patocídio culposo e vendo a neta caçula inconsolável, tratou de providenciar. Batizei-o homonimamente em homenagem ao velho amigo, e dediquei sinceros esforços ao novo relacionamento.

Mas o Novo Patolino não era o Velho Patolino. Não se substitui um amigo assim, do dia para a noite. Talvez eu devesse ter dado outro nome. Além disso, faltava-lhe a ânima que o Patolino, em meu julgamento, tinha de sobra. Quem sabe, a diferença não estava nem no pato de plástico, mas em mim. Depois de viver a fundamental e necessária fase de ‘luto’, superei a perda e reconstruí a vida (os dramas infantis são tão imensos!), eventualmente me distraindo com alguma roupa nova, um dinheirinho ganho da madrinha, os passeios a Santos no velho Fusca, os bichos de verdade. E passou.

Patolino brotou na lembrança porque, dia desses, pisei, sem querer, em um pequeno brinquedo de plástico da Nina. Fui checar: um cachorrinho cor de rosa, menor que meu dedinho. Talvez da turma da Polly (neta da Vivinha). Recolhi os caquinhos e joguei fora. Lembrei com carinho do meu velho patinho querido, mas sequer cogitei se aquele cãozinho significava algo para minha filha. Se ela perguntar, jogo a culpa na gata. Ela que pague o pato.

Mãos cruzadas

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arte: Kenyon Cox

Se me deito de costas e, instintivamente, cruzo as mãos sobre o peito, trato rapidinho de mudar. Que essa é, sempre foi e será posição de quem partiu desta para melhor, esticou as canelas, bateu as botas.

O manual dos bons modos dos mortos – que só é lido pelos vivos – diz que defunto que se preze deve permanecer assim em seu derradeiro leito. Quem será que inventou isso?

Só sei que disfarço, desentrelaço os dedos, ponho a mão no travesseiro, me viro de lado. Qualquer coisa que desfaça em mim a pose mortis. Vai que Dona Morte está pelo bairro, resolve aparecer e não confere direito. É risco que não se pode correr.

Quando criança eu ia (obrigada) aos velórios dos parentes, e ao me despedir deles no caixão (de novo, obrigada) meu olhar se demorava nos dedos entrelaçados sob o véu, num tom funesto de azul-frio com cinza-pedra. Minha avó. Meu avô. Minha bisavó (queriam que eu a beijasse; fugi). Que coisa, de minha mãe não me lembro. Não me lembro, aliás, de nada dela no dia em que foi cremada. Apenas que eu vestia, e isso me recordo bem, um macacão de popeline lilás costurado por mim, sob suas doces e pacientes instruções.

Até hoje, não gosto de ver ninguém dormindo, nem cochilando, de barriga para cima e mãos cruzadas no peito. Como se essa postura não pudesse pertencer ao mundo dos vivos. E justo essa posição vem ser das mais confortáveis. Quando o corpo repousa plenamente na horizontal, cabeça e mente alinhadas. Cotovelos apoiados, uma mão abraça a outra, quase em prece. (Será por isso?)

Se vou dar beijo de boa noite nos meus filhos e, por acaso, estão assim… Não chego a tentar mudar; vão perguntar o porquê. E não quero perpetuar a crendice. Resignada, sigo para minha cama, repetindo: “Deixa de ser besta, Silmara”.

Porque eu sou mesmo muito besta. Paciência.

Trégua

Julieta, lembrei. Julieta era o nome dela. A vizinha da casa 3, que morrera em seu quarto. Marcos, o único filho. Um garoto da minha idade, sete anos.

Eu batia boca com ele sempre que podia. Não que fôssemos inimigos, brincávamos juntos. Mas não perdíamos a oportunidade de provocar. Ele dizia algo, eu rebatia, ele soltava outra e assim exercitávamos nossa retórica – com sofisticação intelectual no nível de “Nunca viu, cara de pavio?” e “Você não é de nada, só come marmelada”. O objetivo era ver quem daria a palavra final, a resposta lacradora que calaria o outro. Lembro vividamente de uma vez que ele falou: “Você tem resposta pra tudo”. Fiquei em dúvida se era elogio ou não.

Câncer, disseram. Julieta era jovem, miúda, morena, pintas no rosto. Educadíssima. No dia em que ela morreu, fiquei consternada. Como um garoto de sete anos iria viver sem a mãe? Pai já não devia ter, nunca o vira por ali. Quando minha mãe morreu eu tinha vinte; tempo que já me calçara de certa força e autonomia para enfrentar a vida. Além disso, eu contava com pai, irmãos mais velhos, avós. Mas e o Marcos, que estava no primeiro ano e usava franjinha?

O velório foi na sala. O cômodo onde os dois assistiam TV à noite, juntos, agora exibia outro programa. Eu não fui. E tive que lidar com a ideia de haver um defunto a duas casas da minha. Antes da Julieta, eu não tinha notícia de alguém na vizinhança que houvesse batido as botas em casa. Morria-se em hospital, na rua, longe. Não em casa, lugar de viver.

O portãozinho ficou aberto, um entra-e-sai dos poucos parentes. O Marcos ficou zanzando na vila. Chutando pedrinhas pelo chão, cabisbaixo. Da janela do quarto dos meus pais, eu o observava. Ele via que eu o via. Naquele dia, porém, não tive vontade, nem coragem, de provocá-lo. Como se a morte requeresse trégua entre nós. Era preciso alguma paz. Tampouco fui conversar com meu amigo. Saber se gostaria de comer biscoito champagne com Nescau, ouvir o LP dos Carpenters. Nada. O silêncio foi a trégua.

Logo ele se mudou. Comentaram que fora morar com os tios. Não me despedi. Perdi, então, meu parceiro de embates verbais. A casa 3 ficou vazia por um tempo. Depois, chegaram novos inquilinos. Pensei em avisá-los sobre eventuais problemas com almas penadas, mas desisti. Por via das dúvidas, levei anos para entrar ali de novo.

Mães que morrem conseguem, de algum jeito, cuidar dos filhos? Por que eu tinha sorte de ter minha mãe e ele não? Por que médicos não conseguiam curar tudo? Por que gente viva não vê gente morta?

Fiz-me muitas perguntas, na época. E o Marcos estava enganado. Eu não tinha tantas respostas assim.

Se a minha mãe tivesse Facebook

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Se a minha mãe tivesse Facebook quando eu era criança, não sei se ela seria do tipo que tudo publica acerca de seus rebentos. As fofices, as traquinagens, as frases engraçadinhas, as caretas, as dores, as delícias. Minha mãe era do tipo reservada. Mas quem resiste?

Considerando que a internet estivesse a todo vapor nos anos 70, imaginei a timeline da dona Angelina.

Em uma tarde de 1971, entre uma receita de cuscuz e uma mensagem do Chico Xavier, ela postaria que, para conseguir me fazer almoçar naquele dia, fora me seguindo da cozinha até o portão da vila onde morávamos. Eu, quatro anos, não queria comer. E, com a estratégia, eu ia passeando, ela ia me distraindo e eu papava tudo. Minutos depois choveriam os comentários das amigas, marcando a polaridade das opiniões: “Que absurdo!”, “Que gracinha!”. Ela me proibiria de zanzar durante as refeições ou não, conforme o que lesse?

Noutro dia, faria um post-desabafo contando que, em um momento de descuido seu, eu, aos cinco, assumira o controle da velha Lanofix e simplesmente arruinara a encomenda de tricô que ela preparava, e lhe garantiria alguns trocados no final do mês. Nos comentários, a torcida para que ela conseguisse recuperar o tempo perdido, tudo ia dar certo, calma. O apoio lhe daria ânimo para recomeçar do zero?

Ela também postaria, a título de diversão, que eu, aos sete e na intenção de imitá-la, coloquei um absorvente – o velho Modess, que nem de longe lembra os ultrafinos de hoje – e saí na rua, feliz da vida, desfilando o duvidoso volume na calça. Finalizaria o post com kkkkk. Emojis boquiabertos ilustrariam o feedback?

Só não sei se publicaria, num dezembro de vacas magras, que meu presente de Papai Noel fora um xampu Johnson’s (bem mais caro e raro que o Colorama – lanolina ou ovo – de todo dia). Mas era do grandão. Afinal, era Natal.

Ademais, ela rechearia sua página com fotografias de flores e das suas bordações, vídeos de valsas, truques para limpar manchas de molho de tomate, indignações a respeito do Led Zeppelin (“Mas isso é música?”).

Só sei que se a minha mãe tivesse Facebook, eu a seguiria por toda vida.

Saudade é a linha do tempo que não volta mais.

As mangas

Foto: Simon D

Quando minha mãe era internada, o que acontecia com alguma frequência, eu a visitava à tarde. Sempre levava uma coisinha para ela comer. Ela gostava de manga, quase nunca serviam no hospital. E eu sabia por que. Manga é uma delícia, mas dá trabalho descascar e cortar. Podia imaginar as reuniões semanais do pessoal da cozinha com a nutricionista, discutindo o cardápio dos pacientes: “Manga, não”.

Eu preparava a manga em cubinhos cortados à perfeição, não sem reclamar um pouco. Ajeitava-os num pote de plástico, pegava ônibus e metrô até o hospital. Cumpria minha missão filial, muitas vezes, cansada pelas aulas da manhã. Ela comia com a melhor boca do mundo, e eu ficava com remorso.

Papar uma banana, por exemplo, é simples. Já a manga envolve processo sofisticado, requer habilidade, tempo, fé, determinação. Envolve objetos, como faca e prato. Travar luta inglória em busca do melhor aproveitamento da fruta, posto que a polpa ao redor do caroço é ingerenciável. Lavar as mãos, pois a meleca é certa. E só então desfrutá-la. Comer manga no pé, se lambuzando, é delírio romântico. Vale para quem está em férias no sítio e tem estoque extra de tempo e fio dental. Banana não; é pá-pum.

Quando meus filhos pedem manga para o lanchinho, a preguiça me invade. Por que não escolhem os morangos, as uvas, essas frutas que nasceram prontas para a degustação? Banana, por que não? Respiro e, não sem reclamar um tanto, cumpro minha missão maternal. Preparo-a em cubinhos, cortados à perfeição. Quando os vejo, com a melhor boca do mundo, fico com remorso.

Há um caule invisível (porém encorpado) ligando culpa e amor.

No ano em que minha mãe morreu passou a novela “O direito de amar”. Ela gostava de assistir. Ainda bem que tinha TV no quarto do hospital. A música de abertura era “Iluminados”, do Ivan Lins. A letra diz assim: “O amor tem feito coisas, Que até mesmo Deus duvida, Já curou desenganados…”

O amor não curou a minha mãe. Mas ela comeu as mangas que pôde. Só não deu tempo de ela ver o final da novela.

Façam manga cortadinha para suas mães.

Crônica de minuto #58

“sem título”, 2013 – Simone Huck
“sem título”, 2013 – Simone Huck

Aconteceu que ontem foi meu aniversário. E também o funeral do marido da minha amiga. Entre comemorar meu nascimento e lamentar a morte alheia, eu não sabia se ficava alegre ou triste. Na dúvida, fui os dois. A mim, chegavam as mensagens virtuais de parabéns. A ela, num desolador tête-à-tête, as de pêsames. Em todas, um brinde aos polos da existência – mais conectados, simultâneos e implacáveis do que se imagina.

Ele pedira para ser cremado. Sem velório, sem delongas. No crematório, a sala da cerimônia, ou sala da despedida, é uma espécie de arena. No centro, quem vai; ao redor, em circulares bancos cor de cinza-dor, quem fica. Pareceu-me aquele programa de entrevistas da TV, o Roda-Viva. No centro, sempre um pobre sabatinado; em volta, impiedosos inquisidores e suas mortíferas questões. Na despedida de ontem, as perguntas dos que (desta vez) ficaram eram feitas em silêncio. E ninguém sabia as respostas.

Para Dinah.

Crônica de minuto #56

arte: Jairo Souza
arte: Jairo Souza

Alguém morre e logo se conjuga:

– Descansou.

É a secular, esperançosa e bem-aventurada ideia de que, ao morrer, ganha-se de presente o repouso absoluto. Seja porque a pessoa livrou-se do sofrimento da vida nem sempre fácil no planetinha azul, porque se foi sem aviso-prévio ou porque viveu o bastante.

Estão pensando que é assim, é? Que morre-se e entra em férias eternas? Que se muda para um céu de infinita varanda com sofás fofos e macios, poltronas reclináveis, música da boa e suco de frutas vermelhas à vontade? Que o universo celestino é um dolce far niente sem agenda, sem relógio, sem calendário e muita, muita soneca?

Talvez estejamos todos redonda e mortalmente enganados.

Liberta da carcaça e agora transmutada na luz e energia originais, a alma ainda não chegou ao seu destino. E se a pós-vida terrena exigir de quem se foi, em vez de folga, trabalho dobrado? Tratamentos, estudos, reflexões, revisões de lições que ficaram para trás, atualizações de mundo, planos para um retorno.

Viver dá trabalho, morrer também. A vista, de lá, certamente é bonita. Mas Deus não dever dar mole, não.

Sete dias

arte: juliana moraes
arte: juliana moraes

Ontem fui à missa da mãe de minha amiga. Já são sete dias, na contagem terrena, desde que ela partiu. Somos semanais. E precisamos das missas para pontuar as chegadas, as partidas e os durantes da vida. O que é uma missa, se não uma conversa, coletiva e no viva-voz, com Deus?

Antes de ontem, conversamos longamente, ela e eu. Ela falou das mudanças que a vida quer que ela dê conta, dos aprendizados com pai e mãe, esses sujeitos compostos, determinados e nada ocultos da nossa história. Queixou-se do inferno astral – faz anos semana que vem. A morte é um tipo de aniversário.

Cheguei atrasada, a missa já havia começado. Sentei-me atrás, em silêncio. Escaneei o salão, à procura da minha amiga. Logo avistei seu cabelão anelado, no primeiro banco, à esquerda. Durante a celebração, foram suas costas que vi. Não soube de seus olhos, se secos ou molhados. De costas, ninguém é alegre ou triste.

(É da fachada que todos cuidam mais: gravata, colar, estampas, enfeites. Adereços, assim como emoções, estão invariavelmente na parte da frente. Vivemos todos em uma imensa igreja, porém. E também somos demoradamente vistos por trás…)

Quando eu era nova, nas missas, queria ser como as pessoas que sabiam todos os ritos, faziam os movimentos na hora certa, conheciam as rezas, cantavam as músicas sem precisar olhar no papelzinho. Eu, semianalfabeta católica,  nunca sabia o que fazer: em que hora deveria me levantar ou erguer as mãos ou fazer o sinal da cruz; desconhecia todos os refrões e não entendia por que não podia mastigar a hóstia, mas esperar que aquela massa insípida e redonda se dissolvesse por completo em minha boca. Preocupada em acompanhar a coreografia e não errar, não me atinha à fala do padre. ‘Colava’ de quem estivesse ao meu lado. Mesmo assim, estava sempre perdida, deslocada, atrasada. Ontem, soube: ainda estou.

Sempre quis saber se a pessoa que se foi assiste sua própria missa. Encarapitada n’alguma imagem de santo, zanzando pela nave da igreja ou flutuando feito nuvem ao lado de quem ficou. Pensei no dia, lá na frente, em que os amigos de meus filhos comparecerão à minha missa de sétimo dia, como fiz ontem. Que saberão, os amigos, de mim? Eu pouco sei da mãe da minha amiga. Eles não saberão nada. Não saberão, inclusive, como é gostoso encarapitar-se n’alguma imagem de santo, zanzar pela nave da igreja e flutuar feito nuvem ao lado de quem ficou.

Para Monica

E eu não morri

Arte: Steve Bridger

Eu viajaria no dia seguinte, pela manhã, e retornaria à noite. Na véspera, me vi redigindo longo e detalhado email ao marido, com um inventário de informações e eventuais providências sobre a rotina da casa, das crianças, do meu trabalho em andamento. Por quê? Para o caso do avião cair e eu morrer, oras.

Tive medo de partir desta para melhor e não quis lhe dar trabalho para descobrir o modus operandi de algumas coisas que somente eu cuido ou sei. Não que ele seja alheio a elas, mas as minúcias, como a senha do meu computador, não é exatamente assunto que se lembre de conversar no jantar. Precaução extra de minha parte? Maluquice? Talvez apenas um devaneio de insubstitubilidade. Como se a Terra fosse interromper sua rotação, caso eu esticasse as canelas. Ou, como bem pontuou a amiga psicanalista assim que soube da missiva candidata a póstuma: meu caso é grave.

Se eu batesse as botas durante o voo, como é que o marido daria conta de saber, com relativa facilidade, quando as crianças têm consulta no pediatra? Que remédios meu pai toma? Onde está o bilhete da Mega Sena do concurso de amanhã? (Vai que.) Como ele daria a notícia aos leitores deste blog e aos meus amigos do Facebook, se não soubesse logins e senhas?

Contatos, pendências, compromissos marcados, as ONG’s de proteção animal que eu ajudo, a reiteração de que sou doadora de órgãos. Tudo se perderia entre as missas de sétimo dia e de um ano. Eu bem que tentaria falar com ele, mas não é certeza de que o wi-fi do lado de lá seja bom.

Nem em meus mais esquisitos sonhos pensei numa ação preventiva como essa. É algo que não passa pela cabeça. Como se morrer fosse uma possibilidade remota. Como se isso só acometesse quem viaja de avião. Ah, o nosso ingênuo imaginário. A morte pode estar em um tropeção na sala, num atropelamento besta, num  assalto, num infarto sem aviso prévio. Nunca cogitamos a impermanência no cotidiano.

Fui caprichando no email. Quando cheguei ao item 9, ri. Nisso que dá ter trabalhado em planejamento. Imaginei o marido lendo o email no outro dia, e eu em casa, vivinha da silva, dando comida aos gatos, levando as crianças para a escola. Como de costume.

Mesmo rindo e duvidando da sua utilidade, enviei o email. Ele não respondeu. Deve estar aguardando o melhor momento para fazer piada.

É bom estar viva.

Casal

Apanho o xampu, cabelos curtos precisam d’um pouco só. A primeira ensaboada é “pra tirar o grosso” – quem falava assim? Modo de dizer, em cabelo lavado todo santo dia sujeira nenhuma tasca. Repito a operação para melhores resultados. O rótulo que diz.

Volto o frasco ao seu lugar de costume, no canto, mais à mão. Reparo que o do condicionador, ao lado, com capacidade para os mesmos duzentos e cinquenta mililitros, está quase cheio. O do xampu, quase vazio. Não, não é papo sobre otimismo e pessimismo. É papo de amor, bicho.

Xampu e condicionador são, essencialmente, um casal. Apesar de vendidos separadamente, formam uma unidade, têm ingredientes ativos semelhantes. São complementares. Foram feitos – assim espera o fabricante – para habitar o mesmo lar, box, banheira, pia, frasqueira.

Eu gosto de comprar o casal. Eles não brigam, deixam o mesmo perfume nos meus cabelos. E eu sigo acreditando nos melhores resultados. Mas eles nunca findam juntos. O xampu morre antes. O condicionador sempre fica viúvo.

Minha mãe se foi antes do meu pai. E ela não estava, digamos, nem pela metade. Será que eu a usei demais, mais que a meu pai? Soubesse, eu a teria a usado menos, para que durasse mais. Meu pai continua lá. Quase vazio, mas lá.

Pai e mãe, apesar de nascidos e crescidos separadamente, aos olhos dos filhos, formam uma unidade, têm ingredientes ativos semelhantes. São complementares. Foram feitos – assim esperam os filhos – para habitar o mesmo lar, para sempre. O que quase nunca acontece, por separação ou morte. Separação é quando o amor não faz mais espuma. Viuvez é quando o banho acaba.

Meu pai nunca quis se casar de novo. Permanecer viúvo, mais que de amor, é um ato de coragem. A saudade, às vezes, arde nos olhos.

Coloquei um xampu novo ao lado do velho condicionador; salvei-o da solidão. Porém, tal filha mimada, estranhei o casal logo de cara. Não são nada parecidos – apesar dos benditos ingredientes ativos semelhantes. Vamos ver como é que os dois, juntos, se saem. Porque não tem nada pior que rebeldia. Nem de filho, nem de cabelo.

Error

Arte: Id-Iom
Arte: Id-Iom

A mãe de um amigo do marido morreu. “Quantos anos?”, perguntei. A gente quer sempre saber a idade de quem morreu, assim como o peso de quem nasceu. Para, em seguida, inquirir de quê que foi e com quantos centímetros, respectivamente. São as perguntas-padrão, ponteando a curiosidade matemática nos extremos da vida.

“Era bem velhinha”, ele respondeu. Soltei um “Ah” vestido de ligeira tristeza, porém conformado. E segui com meus afazeres, sem choque, sem pena, sem filosofias. Tudo bem morrer velhinho, então.

Há algum tempo, a filha do amigo de uma amiga morreu. Perguntas feitas, respostas dadas, fiz coro na unânime inconformação: uma criança! Ninguém acreditou.

A velhice autoriza a morte. A juventude, não. O velho que morre está em conformidade com a vida. O jovem que o faz comete infração grave contra a (inventada) legislação da natureza. E quanto mais novo, parece, maior o agravante.

É como se disséssemos ao velho: “Já viveu o bastante; pode ir”. E, da mesma forma, ao jovem: “Ainda não viveu o que tinha para viver; tem de ficar!”.

Por um instante, incomodei-me com a possibilidade de ninguém ligar quando eu morrer, quem sabe, com oitenta e quatro anos. Não que eu vá querer choro e vela (nem fita amarela), mas não gostaria que considerassem justa a minha morte apenas por conta da idade que terei no derradeiro dia. E se eu ainda não tiver vivido tudo a que tenho direito? Se ainda tiver planos? Se ainda estiver aprendendo a tocar piano? Quem decide os fins, afinal de contas?

Culpa do planejamento. Assim como se programam tarefas ao longo dos dias da semana, viver está distribuído em anos. Nascer, engatinhar, andar, brincar, estudar, trabalhar, comprar uma casa na cidade, casar, ter filhos, continuar trabalhando, fazer um cruzeiro, ter netos, se aposentar, comprar uma casa na praia, ter bisnetos, morrer. Tirante as pontas, poucas variações dessa ordem são aceitas. Se se morre fora do script, é como se a brincadeira não houvesse valido. Falha na programação. Error.

Não quero mais saber a idade dos mortos. Nem o peso, tampouco altura, dos recém-nascidos. Vou querer saber, sobre eles, outras coisas, mais relevantes para uma lembrança ou votos de vida.

O que explica o mundo, desconfio, não são as respostas. São as perguntas.

Crônica de viagem #3 ou O cortejo

Arte: Craig Walkowicz

Deve ser, ao menos, romântico morrer nos alpes franceses. Passar desta para melhor só há de valer a pena se na outra vida existir uma cadeia de montanhas tão estonteante quanto a que sou condenada a ver por dez dias seguidos; meus olhos quase recusam o piscar.

Elas são três e é preciso decorar seus nomes, dizem que faz parte da iniciação local: Chartreuse, Vercors, Belledonne. Quem vive em Grenoble, cidade abraçada por elas, compulsoriamente vê, ao final de cada rua ou canto, uma delas. É como morar na folhinha. Aquelas, penduradas na porta da cozinha ou no paneleiro de antigamente, a marcar os dias e os meses com paisagens tão paradisíacas quanto impossíveis. Tínhamos em casa. Era brinde da quitanda, do mercadinho, da loja de material de construção. Eu, criança, era desesperançosamente fascinada pelas paisagens. Não as supunha reais; era tudo ficção. As fotografias nem legendas tinham; pertenciam a alguma longínqua terra de faz-de-conta. Há alguns anos, minha irmã , cunhado e sobrinhos atravessaram alguma porta ou paneleiro perdido e foram parar no mundo da folhinha. Agora eles têm um pays des merveilles só deles. Ao visitá-los, mergulho também num calendário onde o passo do tempo é mais breve que o da infância. Não se usa mais pendurar folhinha. O mimo do mercadinho é uma empobrecida versão magnetizada da folhinha, de tamanho e encanto reduzidos, onde ninguém quer morar.

Do outro lado da rua, vejo um cortejo. É a morte pedindo passagem. A cidade, nessa época, é fria como as mãos do morto, falsamente entrelaçadas sobre o peito mudo. Lilás-sujo como sua retorcida boca que, em vida, talvez não tivesse palavras para puxar uma procissão assim. A cidade está vestida de inverno para acompanhá-lo no derradeiro passeio. O que separa vida e morte é apenas um punhado de neve – derretível neve. E, no caminho entre uma coisa e outra, as montanhas, danadas de bonitas.

Quem seria ele, ela? Não importa, é belo morrer no inverno. A não-vida orna com o coração gelado de quem arde em tristeza e saudade.

Tento contar os carros que vão atrás. A morte também tem seus seguidores. É a grande e pesada rede social da ausência, se expressando em cento e quarenta carros, lutuosos e sombrios.

Ninguém desconfia: é no inverno que a vida, secreta e organizadamente, pulsa e se prepara.

Há flores, muitas e coloridas flores a fecundar o féretro.

Ninguém desconfia: é primavera.

Voar é com os pássaros. Ou não

Arte: Mariana Fossatti

O mais perto que estive de um suicida foi, de fato, longe. Próximo o bastante, porém, para que a quase-imagem do fato consumado se eternizasse nas minhas memórias. Cristalizadas com os anos – o episódio tem quase duas décadas  –, nem sei mais se vi o que vi, se sonhei que vi, se aumentei ou diminuí algum ponto no conto.

Era meu horário de almoço, eu trabalhava no centro de São Paulo. Saí e, na ida, um cenário na avenida. Na volta, outro. “Há um segundo, tudo estava em paz”, não tem aquela canção? Ou não havia paz desde muito. Nunca, nunca mesmo, se sabe.

O homem saltara da janela do prédio e se espatifara no parabrisa do carro que passava na avenida naquele exato instante. Pronto: contei a história inteira em duas linhas. É relativamente simples narrar a vida e o fim dela.

Mas sempre é possível – e necessário – enfeitar os acontecimentos.

Enquanto, no trajeto da ida, eu matutava no que almoçaria aquele dia, cogitando entre meia dúzia de lugares que prestavam na região, o suicida preparava seu último ato. Talvez, enquanto eu passava pela calçada, sob sua derradeira janela, ele estivesse revendo seus dramas, infortúnios, tristezas e desesperos sem fim, como dizem fazer os suicidas antes de dar cabo de suas vidas. Eu ainda teria que decidir o que jantaria naquela noite. Ele, não.

Digestão em andamento, eu rumava de volta ao trabalho pela mesma avenida da ida, quando avistei o tumulto. O trânsito de carros e pessoas parou. O motorista do veículo atingido nada sofreu – exceto a inenarrável surpresa. Alguns arranhões, os estilhaços do vidro. Como explicaria aos amigos o atropelamento ao contrário? Policiais presentes, fazendo anotações em seus caderninhos. Calculavam a altura, tratavam de identificar a janela original. Motoristas e pedestres no entorno, estupefatos. O suicida pausara a tarde naquele quarteirão. Quem apertaria o play novamente? Só lembrando: a vida não tem replay.

O voo do homem-pássaro não contou com trilha sonora de anjos vocalizando uma tristonha melodia celestial, nem com a câmera lenta, igual nos filmes. (Eu sei porque o cinema gosta tanto da câmera lenta: nossos olhos pensam devagar.) Foi zás-trás, pá-pum. Sem tiro, somente queda. A plateia, desprevenida, não pôde assisti-lo em detalhes. Quem viu, viu.

O Ícaro urbano quis testar, naquele dia, suas invisíveis e frágeis asas de cera. Fugir da Creta paulistana era preciso. E, embora a tarde se anunciasse rara de sol, elas se derreteram. O tombo não só era inevitável, como desejado. A gente que nunca entende isso.

O termo “queda livre” ganhou novo sentido na pele do suicida; era o caminho para a liberdade. Engano ou certeza?

Poucas pessoas despertam tantas reações e sentimentos quanto o suicida. Da incompreensão à compaixão, do desprezo à indiferença. Todos têm uma opinião, poucos ficam reticentes. É assunto polêmico. Popular e, ao mesmo tempo, secreto. Está presente nos versos, nas canções, nos noticiários, nas famílias dos outros. Só dos outros.

Suicídio é a vida como ela é, e como ela deixa de ser. Suicida é a pessoa que, no meio da brincadeira, pede para sair. Porém, o suicida não o faz porque precisa beber água, fazer xixi, a mãe chamou. Ele sai porque cansou. Porque a brincadeira estava sem graça. Ou insuportável. O suicida quer sair da brincadeira e ir para casa. E a casa dele, ele crê, não é aqui.

Da costura e do corte (ou Crônica de minuto #2, revista e ampliada)

Arte: In Pastel

Juntou que fiz aniversário e, no mesmo dia, comecei um curso de corte e costura. Era parte dos desejos antigos e explicáveis: minha mãe costurava. Cresci em meio às linhas, agulhas, tesouras, fitas métricas.

Quando eu era pequena, sempre ganhava cortes de tecido de presente, geralmente das tias. Que viravam, pelas mãos da minha mãe, vestidos e blusas.

Inventei de perpetuar a tradição e, aos dezesseis, confeccionei para mim um macacão de popeline lilás, sob suas pacientes instruções. Foi a única peça que costuramos juntas – insuficiente para que eu absorvesse seu saber, o bastante para despertar a fome de pano.

Já sem ela, na faculdade, arriscava e abastecia meu guarda-roupa através do maquinário herdado. O corte e a costura tomaram ares de adivinhação, tentativa, erro, sorte. Funcionava. Faltava-me, porém, a técnica materna.

Ninguém mais me dá cortes de tecido. Acho que é porque nem tenho mais tantas tias. Ou então, porque minha mãe não pode mais fazer minhas roupas. As coisas todas têm suas razões.

Vasculhei os armários em busca de retalhos para a primeira aula. Encontrei uma panaiada tão antiga quanto o desejo de costurar direito. Cortes e retalhos do passado, gentilmente poupados pelas traças.

Foram todos comigo para a aula. Dentre eles, um, velhíssimo, intacto em sua abstrata estampa de cores, ainda tão cheias de vida. Presente de quem, afinal? Para mim ou para minha irmã, que também costumava ganhar os seus? Como surgira no acervo têxtil da família, e como resistira a tantas mudanças de endereço? Eu bem que já tentara, várias vezes, fazer algo dele. Sua personalidade, no entanto, sempre trouxera dúvidas sobre o que poderia vir a ser – blusa? Saia? Écharpe? Talvez nem ele soubesse direito o que queria ser. Cogitei, há algum tempo, usá-lo para outro fim – pensando na hipótese dele, de fato, não ter nascido para vestir ninguém. Era tecido arrogante, eu duvidava que fosse se dar bem com outros panos num mesmo traje. Como um animal de estimação ciumento, que não autoriza seu dono a ter mais ninguém. Deu nisso: ele sempre retornou ao fundo do armário, que é para onde vão as coisas da categoria “depois-se-vê”.

Professora bateu os olhos nele e vi ali certa surpresa. “É seda javanesa, não se faz mais dessas!”. Explicado estava, ele não era um tecido qualquer e sabia disso. E não era ele, era “ela”. Naquela hora, no turbilhão sereno das lembranças, vi as tias falando “javanesa”. Jamais havia associado: javanesa é gentílico de Java. Java fica na Indonésia. A gente vive falando coisas sem prestar atenção às origens, aos significados. Por que a camiseta é regata? E a gola, olímpica? A calça, capri? Só sei que a ancestral seda, num processo tardio, em breve sairá de seu casulo reverso. (Antes mesmo de eu tentar ler “O homem que sabia javanês”, aquele, do Lima Barreto.)

Corte é rompimento, morte. Costura, união. Corte e costura, de tão antagônicos, são complementares. Um não vive sem o outro, eles se precisam para que o feitio da vida se dê.

Por isso vou estudá-los. Para, além de ser autora da minha própria moda, aprender a viver com os dois. E também para mostrar que não perdi o fio da trama, tampouco abri mão dos sonhos já alinhavados. Será meu presente de Dia das Mães a longo prazo. Entregue à Dona Angelina com beijo e abraço apertado, embrulhado em papel-saudade.

Crônica de minuto para ficar triste num instante

Arte: João Grando

A mãe do João Hélio disse que, naquele dia, gostaria de ter tido superpoderes para salvá-lo.

O pai do Mitchill disse que gostaria de voltar no tempo para mudar o desfecho da história, ou avançar nele, até um dia em que tudo houvesse, enfim, passado.

Outras mães e outros pais, vivedores da experiência de sepultar um filho, também já desejaram ter superpoderes, mas não disseram nada. Superquerer não é superpoder.

Super-heróis, pense nisso, são inspirados em pai e mãe. A coisa da proteção, do cuidado. Uma vez que a estes foi concedido o superpoder de trazer uma pessoa ao mundo, igualmente deveria lhes ser concedido mais um, para mantê-la por aqui. Imitar Ícaro, domar Cronos – não importa qual. Desde que pudessem, através dele, garantir a existência daquele que lhes é confiado.

Aos pais e mães tristes, calados ou manifestos, se não recebem o poder providencial, cabe apenas a capacidade de superação. Que, de certa forma, é um jeito de ser super.

Das causas desconhecidas

Ilustração: Lamerie

E Leo foi encontrado em sua casa, mortinho da silva, numa manhã de segunda-feira. Era dezembro, pouco antes do Natal. Causa desconhecida, disseram.

De véspera, Leo parecia normal. Recebeu visitas, posou para fotos, tudo nos conformes. Tinha dezessete anos. Vivia com a esposa e a filha no zoológico de Brasília. Leo era uma girafa. Ou “um girafo”, como diria minha filha.

Causas desconhecidas incomodam. Prefere-se as causas reveladas, as que se mostram, entendíveis. O escuro das razões não faz bem à cegueira humana. Já para os bichos, tanto faz.

Foi na escola primária que aprendi sobre os substantivos epicenos, aqueles que só têm uma forma – a girafa, o tatu -, sendo necessário explicar em seguida: macho ou fêmea. Eu gostava das aulas de português, com suas causas sempre conhecidas.

Yaza, a viúva, há de ter sentido a falta do marido nos primeiros dias, no pasto onde costumavam passar o dia e namorar. Girafas viúvas, porém, não fazem escândalo. Não se vestem de preto, não choramingam pelos cantos, não deixam de se alimentar por conta do luto. Não são girafas de Atenas. Nem sabem onde fica isso, tampouco ouviram falar do Chico – desconhecem o assunto por completo e, por isso mesmo, não sofrem.

Com a morte do patriarca, trouxeram de volta Zagalo, o primogênito (filho do Leo com outra girafa, a Bia), que morava no zoo do Rio. Para Evelise, a filhota, foi bom: conheceu seu meio-irmão. E Yaza deve ter ficado feliz com sua presença, um trecho do seu amor. (Ah, humanizar a vida animal é tão alentador.)

Disseram também que Yaza estaria prenha do Leo, os funcionários vinham achando a pescoçuda meio diferente. Fêmeas grávidas, de qualquer espécie, ficam “diferentes”. A natureza dos bichos e das pessoas é cheia de histórias assim: um pai que morre antes do filho nascer, uma mãe que falece no parto. É a vida, tratando de continuar. Com suas causas – sabidas, desejadas, ou não.


Baseado em uma história real (“Zoológico de Brasília ainda não sabe o que causou morte de girafa”)

O rei, a imigrante e a falta de saudade

 

Vovó Carmela e vovô Antônio (centro) e a filharada. E a data, que só reparei depois.

Elvis não morreu, ao contrário da Vovó Carmela. Ela morreu no mesmo ano em que ele, já que é assim, não o fez. Sei muitíssimo mais dele que dela. Estranho?

Faz trinta e quatro anos e dois dias que ela partiu. Ele, trinta e quatro anos e cento e oito dias. Dele, se fala – e muito. E dela?

Ele é famoso. Ela não. O Google tem setenta e sete milhões e quinhentos mil resultados para o nome do rei do rock. Cento e sessenta para o dela. E nenhum é, efetivamente, sobre ela. Deveria existir a “Deuspedia”. Cada ser humano com seu verbete, atualizado por Ele e seu staff de anjos.

Vovó Carmela é minha bisavó, mãe da minha avó. Sou, por ora, a penúltima bonequinha da matrioska; a última é Nina, minha caçula. Ninguém a chamava de bisavó, nem de bisa. Já considerei seu nome pavoroso, sentia pena de uma prima que fora batizada em sua homenagem. Hoje, não mais. É nome tão bonito.

Na casa da vovó Carmela seus filhos, netos e bisnetos se reuniam em compridas tardes de sábado. O invariável cardápio: chá-mate dulcíssimo e pelando de quente, o pão com manteiga. O chá era servido nas xícaras de bolinhas, de porcelana tão fininha quanto a pele da matriarca. Quem ganhava sua fatia de pão podia ia brincar lá fora. Quantos passarinhos alimentei no quintal com minhas migalhas chovidas? E quem ficou com as xícaras? Não é só a infância que é cheia de questões.

Eu não conversava com a vovó Carmela nessas visitas. Velhos têm mania de falar com as crianças através dos seus pais, mesmo que elas estejam presentes, como se não fossem capazes de responder sobre suas vidas. Eu estava na cozinha, mas era à minha mãe que ela dirigia as perguntas: “Ela vai bem na escola?”. “Ela quer mais pão?”. Eu também não perguntava nada sobre ela, nem a ela, nem a ninguém. Só queria saber do Elvis. Eu, que derivei dela, não dele, ia bem na escola. E, sim, sempre queria mais pão.

Dela, sei tão pouco. Só que tinha imensos cabelos cinza-claro, permanentemente enrolados num coque e presos num pente-fivela. Que usava vestidões compridos e arrastava os chinelos. É todo meu conhecimento. Sequer de sua voz me lembro. Já do Elvis… Minha irmã me ajuda, por e-mail:

“Carmela Mameli nasceu em 16/05/1889, filha de Diogo Mamelli (o pai tem 2 L) e Elena Pucci. Nunca consegui saber a cidade, só sei que é na Sardenha. Casou-se em 30/10/1908 em Jacutinga e morreu em 30/11/1977 em São Paulo. Não lembro do quê exatamente ela morreu, lembro que ela tinha uma hérnia enorme na barriga, de longa data… Lembro também que depois que ela quebrou a perna não saiu mais da cama e morreu logo depois”.

Ela, que tinha alguma coisa com o dia trinta (a foto que ilustra esta história foi tirada em 30 de novembro de 1958, conforme anotação feita na própria). Ela, que não sei se gostava do Elvis. Ela, que não está always on my mind. Será que ela loved me tender? É assim que junto tudo: as letras das canções do rei do rock, a imigrante de onde me originei e a minha confessa falta de saudade.

Quando eu ficar bem velhinha, devo cuidar das minhas roupas, chinelos e penteados. É deles que, provavelmente, meus bisnetos se lembrarão. Mais, muito mais, que da minha voz. Que, aliás, nunca aprendeu a cantar nada direito.

Matrioska

Foto: Zeta/Flickr.com, efeitos: Gimp

A bebê dorme em seu carrinho. Enche de amor o coração da mãe que a embala. Enche de amor-perfeito a avó que as contempla. Enche o mundo de graça. E enche d’água meus olhos. Como podem três quilos e cinquenta centímetros ocupar tanto espaço? Na minha tarde de sexta-feira há três mulheres. Saídas uma de dentro da outra. Estou diante de uma matrioska viva. Passaria horas montando-a e desmontando-a. Brincando de nascer e desnascer. Mas quem gosta dessa brincadeira é Deus. A gente só brinca junto; as coordenadas são sempre dele.

No breve tempo de nanar, a bebê se desliga deste orbe, enquanto se liga ao de onde veio, aquele que deixou há pouco tempo. O dos anjos e jardins sem fim, gosto de imaginar desse jeito. Desconecta-se daqui e se reconecta lá. Mata as saudades dos amigos, ainda não sabe que os reencontrará aqui – é surpresa. Joga bola, canta uma canção, afaga um pássaro. E daqui trinta minutos pega um avião de volta, faminta de mãe.

No futuro, as fotografias dos álbuns de família mostrarão o quanto terão sido parecidas essas três mulheres. Pois cada uma tem em si um pouco da outra. O detalhe no sorriso, o jeito de ficar brava, a paixão por alguma arte. E também coisas que as outras se esqueceram de trazer nesta vida, ou não o fizeram de propósito, só para ver se a outra lembrava. Mulheres.

Cada uma delas cumpre um ciclo. E nem sabem por que o cumprem. Só sabem que é assim. Lá se vão, as três mulheres. A primeira ainda não sabe andar. A segunda, sim. A terceira está desaprendendo. Cabe à do meio ajudar as que estão nas pontas do tempo presente. Ela sabe que, breve, o terceiro lugar será seu. E arrepia-se só de pensar: a que cochila no carrinho, um dia, tratará de continuar a história, aumentando a matrioska.

É boa a roda da vida, como não? Vida de meia volta, volta e meia que se dá. Estamos todos cirandando.

Ouça isto

Ilustração: Marina Cuello/Flickr.com

Basta ouvir – no rádio do carro, numa festa, num assobio que vem pelo ar – a música de um cantor que já morreu, para a imaginação sair galopando feito cavalo doido. Invento um questionário sem fim, sem ninguém para me ajudar a responder.

Será que as notas viajam no tempo e no espaço e chegam aos ‘ouvidos’ de seu dono, onde quer que ele se encontre nessa hora? E, no caso de chegarem, e de haver letra na parada, será que ele, de feliz, canta também? Será que dança, sentindo seus acordes reverberarem junto à pulsação da Terra? Música ilumina. Não à toa tem clave que é de sol. Quem sabe se tamborila o ritmo com os dedos? A propósito, quem morre continua precisando de dedos depois? Sabe como é. Para o piano, a harpa, o violão.

E se é dessas obras que atravessam eras, reproduzidas e interpretadas à exaustão? Será que o autor pensa no quanto a sua música foi famosa? Talvez nem ligue para isso, posto que no céu todo mundo é famoso, não só meia dúzia de santos e o chefe da casa, como nos ensinaram no catecismo.

Pena sabermos tão pouco sobre quem parte, depois que parte. A gente sabe como é a nossa saudade por alguém que morreu. Como será a saudade de quem foi por quem ficou, ou pelo que deixou? Pena, às vezes, sabermos tão pouco sobre quem a gente canta e já não está mais no planeta. De que jeito fica a voz quando não há mais boca? Não tem nada mais vivo do que voz. Viva-voz.

Só sei que quando dezenas, centenas, milhares, milhões de vozes entoam uma mesma canção pelo mundo, ao mesmo tempo ou não, e ainda que uma não saiba da outra, ou então se essa canção vive e revive em milhares de CDs e iPods, é um coro e tanto. O dono há de ouvir. E seu coração – ou o que quer que ele tenha agora no lugar – ficará em paz.

Os finados e o amor

Ilustração: Ciro Esposito/Flickr.com

Foi no dia de Finados que meus pais se conheceram. Ele gosta de começar a história assim: “No dia dos mortos, dois vivos se encontraram”. Ela morreu no dia dos Namorados. Ainda não compreendi direito a relação que existe entre o amor e a morte. Só sei que no calendário um vem antes do outro.

Nunca visitei o lugar onde as cinzas de minha mãe foram lançadas. Combinamos: ela é quem me visita. Em sonho, roupa, fotografia, receita de panqueca. De tempos em tempos, tomamos um chá da tarde juntas. Mas falta algo nesses encontros. A xícara dela está sempre vazia.

Quando meu irmão mais velho entrou na faculdade, ela descobriu que estava doente. Escondeu a doença dos três filhos. Ao fazer isso, escolheu o caminho mais longo para salvar sua vida e, ao mesmo tempo, o mais curto para o fim dela. Só nos contou e procurou o médico cinco anos mais tarde, depois da festa de formatura. Teve tantos medos antes disso. De ser obrigada a parar de trabalhar, de o meu irmão não poder continuar os estudos, num dominó de receios sem sentido (não para ela). Passados cinco anos daquela festa, a família se reuniu novamente. Desta vez, sem nada para comemorar.

Até hoje meu pai faz poesias para minha mãe. Na sua academia particular de letras, ela é a sua imortal. Sempre que ele vê os netos, lamenta ela não ter conhecido nenhum. Um pesar logo substituído pelas novidades do dia, as eleições, o calor, o livro que ele está lendo. É bom assim. Distração é o melhor remédio para a saudade.

Ontem encontrei o gorro dela, de lã cor de vinho, guardado no meu armário. Ainda tem a borboletinha verde costurada nele, ideia dela para aproveitar o enfeite que caíra de um grampo de cabelo. Na verdade, o gorro era meu e acabou ficando para ela, que o usava para se aquecer nos dias gelados, já sem cabelos por causa da quimioterapia. Agora ela não precisa mais dele, eu sim. Como é que se põe gorro no coração? Às vezes, o meu sente tanto frio.

Aqui no quintal de casa as sementes de ipê brotaram, a amoreira da rua de cima está carregada. Meu filho aprendeu a escrever, vive me mandando bilhetinhos escrito “eutiadoro”, assim, com ‘i’ e tudo junto. O machucado do meu dedo (quem manda brincar com tesoura?) já nem dói mais. Acertei fazer moqueca e a filha da minha amiga nasceu. No dia dos mortos, é bom falar de amor.

A pergunta

Ilustração: Frangelica/Flickr.com

Nina, três anos, quer saber:

– Mãe, a que horas a gente vai morrer?

Meu avô morreu às oito e quarenta da noite. Nunca soube que seria nesse horário, até aquele quatro de fevereiro, véspera de Carnaval. Um bom exemplo para dar a ela. Mas não me lembrei na hora.

Eu não sabia que Leo morreria às três horas do dia sete de março. Poucas horas antes, eu ainda acariciava seu pelo macio e branco. Gatos sabem da sua hora. Gente, às vezes, não.

Antigamente, nos velórios, era costume os mais velhos fazerem as crianças beijar os defuntos. Pequenas demais para a altura do caixão, algumas eram erguidas e, suspensas no ar como a alma de quem partira, despediam-se a contragosto. De volta ao chão, com olhos de espanto e medo, umas saíam correndo. Outras permaneciam ao lado do corpo, paralisadas de frio, o frio que vinha da face sem cor. Em todas elas, a marca comum: haviam beijado a morte. Eu tinha as minhas estratégias para evitar a hora do beijo fúnebre. Fugia, me escondia. Sumia. Minha mãe dava cobertura. Eu não sabia que ela morreria ao entardecer de um Dia dos Namorados.

Quando uma estrela morre, em indescritíveis e poderosas explosões, ganha outro nome: supernova. Ninguém sabe, no entanto, a que horas isso vai acontecer. De nada adiantaria. Estrela, mesmo morta, eu beijaria.

A pergunta da Nina não é sofisticada. Ela não quis detalhes da morte, nem filosofias a respeito, tampouco aquilo a preocupava. Ocorreu-lhe perguntar numa hora em que brincava distraída e um pensamento qualquer pousou sobre seus cabelos anelados, tal uma borboleta. Simples assim. Eu é que tentei pensar numa resposta sofisticada, cheia de nove horas. Bobagem. Respondi: “Na hora certa, filha”.

Satisfeita, ela retornou às suas brincadeiras. Corri anotar a pergunta num caderninho, junto a tantas outras que meus filhos soltam, assim, sem hora marcada. Não poderia deixar para depois. É fato: a gente pode morrer a qualquer hora. Aproveito. Por ora, não é agora.

A rolinha (segunda – e última – parte)

Ilustração: Charis Tsevis/Flickr.com

No dia de São João, comecei a cuidar de um filhote de rolinha que caíra do ninho. Foi minha promessa à sua mãe, que sequer conheci. Embora eu soubesse que não haveria garantias, fiz de conta que não sabia. Fiz de conta que era eu também uma rolinha, para ver se entendia o que seus pequenos olhos me diziam. Fiz de conta que alimento e calor lhe bastariam. Fiz de conta que era normal levá-lo à casa dos outros para não atrasar o horário das suas refeições. Fazer de conta ajuda um bocado quando não há outra saída.

No dia de São Pedro, Beetle, assim batizado pelas crianças, não comeu direito. Recusou a água fresca. Seu bico já não procurava abrigo entre meus dedos. Não lhe importava ficar nesta ou naquela posição, numa já doente resiliência. Tanto fez o sol da tarde, tomado através da janela do quarto. Nada foi capaz de lhe aquecer. Às sete da noite cobri sua gaiola, apreensiva: Beetle dormiu sem jantar. Travou o bico como se dissesse “Não, obrigado”. “Então amanhã tiramos o atraso”, anunciei. Mas se houve algum atraso, foi o meu. Às onze, fui lhe dar boa-noite. Pé ante pé, para não acordá-lo. E vi que havia perdido seu último instante.

Num instante de igual tamanho, lembrei dos meus bichos que já morreram, tantos quanto pude. Dois cães, um hamster, algumas tartarugas, dezenas de gatos. A maioria, sepultada com pompa e circunstância em caixas de sapato sob as terras da vila onde morávamos. Outros tantos, sumidos. Eram bichos livres, desaparecer fazia parte. Olhei-me no espelho do banheiro e vi como estou velha. Como Beetle era novo. Como ele era pequeno perto de mim. E grande, para as formigas que já começavam a passear nele. Lembrei das aulas no colégio técnico, com o escalímetro que ajudava a entender a proporção de tudo. Deus também tem um desses.

Uma pena Beetle não ter conhecido a nossa jabuticabeira. Só o fez de vista, o que não é a mesma coisa. Ele conheceu gatos mansos, porém. O que não é para qualquer passarinho. Sinto não ter ouvido sua voz. No final, fizemos exatamente como havíamos combinado, ele e eu: um dia de cada vez. Foram cinco, no total. E quem é que sabe o quanto isso é pouco, ou o quanto isso é muito? A vida é inexata, embora regida por tanta exatidão. Quanto à promessa feita, mamãe-rolinha há de me perdoar. Mães se entendem.

Quando as crianças acordaram, dei assim a notícia: “Beetle se foi. Ele aprendeu a voar.” E fomos juntos procurar uma boa caixa de sapatos.

O funeral

Ilustração: Serendigity/Flickr.com

Em enterros é proibido ser feliz. Sorrisos são mal vistos. Se você foi promovido na empresa no dia anterior, deixe a alegria em casa. Se sua sobrinha nasceu na semana passada e você já teve oportunidade de pegá-la nos braços, finja que não se recorda da sensação. Se amanhã você embarca com seu namorado para vinte dias num charmoso vilarejo italiano, faça de conta que deu tudo errado e vocês não vão mais. Cemitério não é lugar de gente alegre. Nele só são permitidos pensamentos tristes. Não cumprimente efusivamente um amigo que não vê há tempos, mesmo que você esteja sinceramente contente em vê-lo – ainda que não ali. Nesse caso, esboce um sorriso, sem muito entusiasmo, e dê-lhe um abraço mudo. Só. Para a etiqueta dos funerais, basta.

Ontem fui a um. Convém registrar, e já: claro que ninguém fica feliz com a morte de um familiar, um amigo (ou amiga, no meu caso), salvo casos previstos na psiquiatria. Nos funerais, as pessoas mais chegadas – parentes ou não – ficam, de fato e visivelmente, tristes de dar dó. Quase dá para ver (ou ouvir) seus corações chorando. A morte desarranja, abala, desconcerta, despruma, desconstrói, faz bagunça. Verdade verdadeira. No entanto, sejamos honestos, sem medo do bofetão: parte dos presentes não tem o coração tão dilacerado assim. É preciso estabelecer uma fronteira entre os pesares. Acompanhar enterro de pai não é a mesma coisa que acompanhar enterro de cliente. De tio que nunca lhe deu um abraço. De mãe do amigo do filho, aquela que você não viu mais que duas vezes no último ano. Por que, então, lançar mão de um semblante tão forçadamente triste, se não é isso que vai na alma? Não é, claro, o caso de contar a última do papagaio ou relembrar o episódio d’Os Normais da semana passada. A menos que o falecido seja da área do humor, coisas assim nem vêm à lembrança. Naturalmente. O silêncio é uma forma universal de respeito. Mas repare: assim como se vestem de preto, algumas pessoas se vestem de tristes. Nos dois casos, o efeito é apenas superficial. Protocolar.

Serei uma pessoa fria por não ter chorado? Talvez eu tenha sido mais tocada com a perda da minha amiga do que outra pessoa que tenha exibido um copioso pranto durante seu sepultamento. O manual ainda estabelece que, quanto maior o choro, maior a dor. Assim como quanto mais e maiores coroas de flores, mais querida ou importante a pessoa era. Parâmetros sociais da vida. E da morte. Enquanto as últimas pás de terra selavam o túmulo da minha amiga sob um alaranjado entardecer de outono como testemunha, pensei na impermanência das coisas todas. No sentimento do seu marido, também meu amigo, ao ver o frasco de xampu dela ontem à noite, na hora do banho, e o que ele fez com a saudade naquela hora. Pensei nos seus sapatos solitários no armário, órfãos de pés até que alguém dê a eles novos donos. No que ela mudaria em sua vida se fosse avisada, há um ano, que hoje não estaria mais aqui. Em quem deve tê-la recebido do lado de lá e como se ajeitarão as coisas do lado de cá, sem ela. Pensei em tudo e desejei, profundamente, seu bem. Sem, contudo, perder de vista minha alegria diária, apenas por estar viva.

Funerais me deixam assim. Esquisita.

O fio da antiga meada – II

Mais um da pasta vermelha, dando sequência à sessão retrô do blog. Este aqui eu escrevi quando tinha dezessete anos. O ano era 1984. Foi uma encomenda: minha irmã deu as três primeiras palavras, e pediu que eu escrevesse o resto. Ficou assim.

Foto: J.Mark Dodds/Flickr.com

Já era tarde e ninguém o escondia mais

Surgia da profunda dor o pavor, o calor, o senhor

Brusco alívio de amor

Enternecida, a mão que o afaga

Sorri que agrada; deseja, mas não fala

Alisa o pedaço de corpo que já se esquiva

Já não era dor, nem pavor

Era cor

Cor do corpo que transmite luz

Na doce dança que não mais traduz

A leveza do já partir

E a tristeza de mãe, de não poder ir

Fere. Estilhaça.

O pequeno corpo tão cheio de graça

Que ri sem graça, pois que graça ter?

Se ao nascer já parte

Não. Não há cores que a agrade

Parece assim, luz que ofusca, mas não arde

E reanima o pavor de todos nós

Pois que senão, já era tarde.

Carta para minha tia

Tia Zelinda

Meu avô sempre dizia, em meio às prosas e sem maldade alguma, que você era meia-irmã dele. Engraçado, dividir as pessoas pela metade, conforme o pai e a mãe. Ser meio-irmão é como ser meia-pessoa. Que teria sentido se fosse feito só de pai ou só de mãe. Mais ou menos como, dizem, aconteceu com Jesus. Não foi assim com você.

Nunca me disseram, no entanto, que você era minha meia-tia. Tampouco você me tinha como meia-sobrinha. Para mim, você era tia inteira. Que telefonava de vez em quando só para saber se a gente estava bem. Que usava vestido com calça comprida, onde quer que fosse. A estranha combinação ficou sendo a sua marca registrada. Mal sabia você que isso viraria moda. Eu deveria ter prestado mais atenção em você, tia.

Eu também deveria ter sido uma pessoa menos atarefada. Menos atrasada. E daquela vez, com razão, mais apressada. Daquela vez, recebi um recado seu, pedindo que eu fosse à sua casa. Você queria conhecer a Nina, minha filha que acabara de nascer, para dar a ela um presente: uma roupinha nova. E eu não fui, tia. Não fui. Poucos meses depois, você que se foi.

Vocês duas acabaram não se conhecendo. Nina não recebeu seu presente, certamente embrulhado com papel celofane cor-de-rosa e fitilho enrolado em espiral. Roupinha de bebê, quando é para presente, deixa de ser só roupinha para o bebê. Vira abraço. Presente, quando não é dado, vira nuvem. E o vento leva.

Obrigada pelo presente, tia. Ainda que tarde. Um dia, eu aprendo a fazer as coisas direito. Ou por inteiro.

Saudades,

Carta para a amiga que foi embora

Ilustração: Tim Morgan/Flickr.com

Querida Rô

Não estranhe receber somente agora esta carta, não é culpa dos Correios. Tenho essa mania de adiar as coisas. Fiquei sabendo que isso se chama procrastinação. E fiquei sabendo também que é coisa do meu signo, Touro.

Ainda estou triste por não ter me despedido direito de você. Como fazem as grandes amigas, quando uma delas está prestes a fazer uma grande viagem de avião. Por não ter telefonado para você dia sim, dia não, naquela primavera de 2003. Acabei perdendo seu, digamos, embarque. Sem direito ao último abraço, ou mesmo um aceno. É que seus pais ficaram com receio de me contar. Eu estava grávida, um barrigão deste tamanho. Nunca se sabe.

Sempre achei curioso o nome do que tirou você da gente: diabetes. Lembra ‘diabrete’, que é um diabo pequenininho. Pensando bem, nem é uma associação tão equivocada assim. Tal um diabinho, a doença pintou e bordou em você, que encarou tudo. Até transplante. Bonito, isso: primeiro, sua mãe lhe teve no corpo dela. Depois, com um pedaço dela em você, foi a sua vez de tê-la em si. O amor tem dessas: nos põe um dentro do outro.

Recebi a notícia dias depois. Foi como chegar atrasada ao aeroporto. Sua mãe contou para minha irmã. Que falou para o meu marido. Que me contou. Lembrei de nós duas no pátio da escola, finalzinho dos anos 70, ladeadas pelos amigos, brincando de telefone sem fio. A graça era quando o último entendia um absurdo qualquer, diferente do que o primeiro havia falado. Naquele dia, eu fui a menina da ponta. E entendi certo. Não valeu.

Quis que não fosse verdade. Quis não ser de Touro. Quis que você tivesse adiado sua viagem, também numa espécie de procrastinação. Mais três meses e você conheceria meu filho. Um pouquinho mais e me veria, pela primeira vez na vida, de cabelos curtos. Três anos depois, você pegaria minha filha no colo. Iria gostar de brincar no Facebook. De tomar café no Starbucks. De vir me visitar usando GPS. De ver o Obama na Casa Branca. E de ouvir a Céu. Porque o nome dela deve lhe inspirar mais do que a nós.

Sempre que eu penso em você, Rô, tenho a sensação de que você está perdendo um monte de coisas legais acontecendo por aqui. Talvez você, daí de onde está, tenha a mesma sensação – mas a respeito do que eu esteja perdendo.

Escreve, um dia, contando?

Saudades,

O pão nosso de cada dia

Ilustração: N.C.Mallory/Flickr.com

Descrição de acidente de trânsito é sempre estúpida. A gente vai narrando, atinando na sequência de besteiras cometidas e se perguntando como é que aquilo pôde acontecer.

Domingo à noite, após um rápido raciocínio, cheguei à conclusão: não faria sentido algum a suculenta sopa que o marido preparava não ter a companhia de um pão italiano. Como um soldado solitário – estavam todos ocupados no preparo das batatas –, rumei à padaria. E como nos últimos vinte anos eu não me animo a percorrer nem duzentos metros a pé, fui de carro. Do balcão, apontei para o exemplar mais gordo, assado à perfeição. Um harmonioso equilíbrio de cores, do bege claro das partes menos tostadas ao marrom crocante da casca que se rompera ainda no forno, agora salpicada com uma leve farinha branca.

O pão perfumava o carro inteiro, provocante. Mantive, no entanto, a disciplina que caberia ao soldado: não comi nenhum pedacinho. O caminho até em casa é curto, tranquilo. Alguns quarteirões mais e estaríamos diante do trio pão–sopa–azeite, coroando o final de semana. Não fosse um motorista com pressa de chegar à sessão das oito ter feito uma ultrapassagem arriscada e, na contramão, acertado meu carro em cheio, interrompendo de vez a minha experiência sensorial ao lado do pão quentinho.

Se estou contando a história, é fato que não morri. Não sei se tem internet no além (se tem, deve ser mais rápida). Estou bem viva e sem nenhum arranhão, ao contrário do moço apressado. Porém, ainda frustrada pelo jantar realizado sem mim. E pelo pão que acabou esquecido lá no cesto da cozinha. Três dias depois, eu o reencontro. Continua na embalagem, lacrada com a etiqueta da padaria. Petrificado.

No bairro onde eu cresci, de vez em quando apareciam aqueles parquinhos de diversão mixurucos. Eu ia sempre em dois brinquedos: trem-fantasma e carrinho-que-bate. Gostava da sensação de medo no primeiro, e do frio na barriga que antecedia a trombada no segundo. No domingo, foi como ir, ao mesmo tempo, nos dois brinquedos. Só que desta vez, o medo e o frio na barriga eram de verdade. Prefiro o parquinho.

No tempo desses parquinhos, à tarde alguém sempre ia à padaria comprar uma ‘bengala’. Que hoje é baguete, e é menor. Nome mais chique, europeu. Adaptei-me à mudança, praticamente esqueci o antigo nome. Mas sinto saudades da velha bengala. Minha mãe a cortava em fatias, passava margarina nos dois lados e as colocava para dourar na frigideira. Acho que nem aquele pão italiano poderia ser tão bom.

A compaixão e a raiva me dividiram em duas pessoas distintas enquanto, sob a chuva fina do local, eu ditava ao policial meu depoimento. Uma de mim queria que eu lamentasse a sorte do moço que não tinha nada: nem juízo, nem carteira de habilitação, nem coragem de encarar-me, nem carro (arruinado e apreendido por falta de documentação), nem seguro, nem mão direita (que seria engessada) e nem sessão das oito. Outra de mim só fez praguejar: só a mão quebrada? Por que não os dois braços e o pescocinho também?

E entre as duas coisas, outro sentimento, que ainda não batizei, me lembra da impermanência das coisas todas. Num segundo, moro neste mundo; no próximo, posso me mudar. Num instante, meus filhos têm mãe; no seguinte podem não ter mais.

Num dia, aquele pão era o supra-sumo; no outro, apenas uma massa endurecida e sem graça. Eu deveria era tê-lo devorado já na saída da padaria. Isso sim.

A blusa da minha mãe

Arquivo pessoal

De vez em quando é bom passar um tempo com quem já partiu. No Dia dos Pais eu vesti o colete que fora do meu avô. Na semana seguinte, enquanto eu procurava no meu armário o que usar, bati os olhos em uma roupa. E senti saudades da minha mãe. Meu avô sempre dizia que não era certo filho ir primeiro que pai. Um dia ele viveu aquilo que não concordava.

Dona Angelina fazia umas panquecas que eu nunca vi igual. A coisa mais simples do planeta: uma em cima da outra, muito molho de tomate. Só. Sem recheios nem firulas. Uma torre de panquecas. Construída aos poucos, no calor da velha frigideira cheia de furinhos em relevo que eu jamais soube onde foi parar.

Sempre tive dificuldade para pensar na minha mãe como uma jovem dos anos sessenta, onde quase tudo parecia estar em ebulição – música, comportamento, política. Dona Angelina era dona de casa exemplar. Dois filhos, mais eu chegando no finalzinho da década. Mamãe não fervia. (Ou fervia. E eu preferi acreditar no contrário.)

Por aqueles anos, ela foi madrinha de um casamento. Eu nem era nascida. Ela, que nunca teve dinheiro sobrando, foi esperta: investiu em algo que usaria depois. Comprou um conjunto, espécie de tailleur, na Prelude (chique, na época). Vermelho, num suave xadrez com preto e azul marinho. Ela só não imaginava que a aquisição fosse render tanto.

Quarenta e cinco anos (estimados) depois daquele casamento, apanho do cabide o que guardei daquele conjunto: a blusa com o casaqueto. A etiqueta ainda está lá, amarelada e puída. Mas o poodle, marca da confecção, continua empertigado em seus pompons. Digo bom dia ao totó, visto a blusa e vamos, mamãe e eu.

Ela me dá o braço e vai contando, com certa pena, que a saia do conjunto, de tão usada, não sobreviveu. Disse estar espantada como a peça combina comigo, ela pensava que éramos mulheres bem diferentes. Mamãe, às vezes, acha que eu deveria ferver menos.

Pergunto como vai a vida do lado de lá. Ela olha para o céu, em seguida para o chão. Desvia da fila indiana de formigas e me conta (de novo) a história de um tio que desdenhou dela ao vê-la, muito criança, em frente a um formigueiro, caprichando no plural: “Quantas formiguinhas!”. Só para se divertir, ele mandou que ela colocasse a mão ali. Ela obedeceu. E as formigas não tiveram dó.

Rimos mais uma vez e nos despedimos com um beijo, como sempre. Antes de ir ela me lembrou: aquela blusa não deve secar ao sol.

Álbum de família, ainda sem mim. As crianças: meus irmãos. Exceto o garoto da esquerda, que eu não sei quem é.

O colete do meu avô

Foto: Denis Collette/Flickr.com

Casa de gente morta não é para gente viva ficar entrando. Se a casa de alguém que morreu fica vazia por um tempo, certas almas pensam que ela está vaga e se mudam para lá. E não se deve incomodar os mortos.

Meu irmão dizia que via ‘pessoas’ na casa dos meus avós. Segundo ele, eram várias freiras enfileiradas cruzando o pequeno quarto deles, indo para não se sabia aonde. Só se sabia que o quarto ficava no caminho delas. Minha mãe não achava aquilo bom para uma criança e resolveu procurar ajuda. Depois disso ele nunca mais as viu. Por certo, alguém pediu para que elas fizessem outro trajeto e não passassem mais por ali. E elas resolveram quebrar nosso galho.

Quando meu avô morreu, anos depois da minha avó, fomos, minha irmã e eu, até a casa dele buscar algumas coisas e separar o que seria doado. Eu não quis entrar sozinha. Não queria ver os mortos que haviam se mudado para lá. Nem as freiras, as conhecidas do meu irmão, agora liberadas para fazer o velho caminho.

Minha irmã abriu o armário. Vi o terno cinza do meu avô, o único que Seu Paschoal tinha. Quase nunca o usava. Foi meu pai, seu genro, quem me contou porque o terno se chama assim. Porque é composto de três peças: calça, colete e paletó. Mas os ternos de hoje em dia raramente têm colete. Deveriam mudar o nome, então.

Pedi para ficar com o colete. Ele acabou guardado no meu armário por muito tempo. Semana passada, decidi usá-lo. Levei-o à costureira para ajustar. Éramos da mesma altura, mas o ombro do meu avô era mais largo que o meu. No dia em que morreu ele parecia tão miúdo. A morte faz as pessoas encolherem. Vida ocupa espaço dentro de nós.

Hoje, Dia dos Pais, é a primeira vez que eu o visto. Saí de casa bem cedo e a vizinha, estranhando me ver em pé àquela hora, perguntou aonde eu ia. Respondi: “Vou passear com o meu avô”. Ela sorriu e lembrou: “Hoje a gente precisa dar um abraço neles também”.

Concordei. Já estava fazendo isso.

A mão da santa

Foto: Maria Guimarães/Flickr.com

P. tem cuidado muito dos santos, ultimamente. Os santos da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, que há tempos precisavam de um carinho. A pequena igreja, feita de taipa de pilão e tombada pelo patrimônio histórico, fica escondidinha no centro de São Paulo e agora está sendo restaurada. Era ali que, antigamente, os escravos condenados davam uma passadinha para rezar, antes de serem enforcados em praça pública, ali perto, onde hoje fica o Largo da Liberdade. Daí o nome da igreja. Pois tudo o que aquelas pessoas poderiam pedir, àquela altura do campeonato, era uma boa morte.

Eu conheci P. no final dos anos oitenta. É uma mulher bonita, alta, magra, esguia, criativa e inteligente. Naquela época, sem noção de sua beleza (ou talvez ciente demais), se escondia nos jeans, camisetas, sapatos sem salto e na ausência do batom. Mesmo assim, chamava a atenção por onde passasse. P. cozinhava, costurava, tricotava, gargalhava, dançava. Dona de um fino senso estético sobre todas as coisas, conversava coisas incomuns e amava intensamente seus amores. Ficou viúva. No velório de T. eu a abracei forte. Seu olhar pedia que eu lhe dissesse o que seria dela daquele dia em diante. Não pude atender minha grande amiga naquela hora: eu não sabia.

O ofício de P. é restaurar objetos que já viveram demais, e que precisam continuar vivendo. Para que, de certa forma, eles expliquem nossa vida, de onde viemos e como chegamos até aqui. Os santos dessa igreja, em especial, devem ter muita história pra contar. Quanto desespero devem ter visto, quanto apelos devem ter ouvido. No entanto, imóveis em sua santice de barro, louça ou madeira, pouco podiam fazer pelos condenados.

P. chegando pela manhãzinha em seu ateliê. Ela diz “bom dia” aos seus santos e se prepara para o trabalho. Um nariz quebrado, um manto puído. Enquanto mexe aqui e ali, vai ouvindo os pequenos e gelados amigos contando coisas do passado. E quando volta para sua casa, à noitinha, certamente chora por tudo que ficou sabendo.

Há nove anos P. e eu não nos vemos. Três anos atrás encontrei, por acaso, um endereço seu, perdido na agenda. Escrevi. Ela respondeu, atualizamos a amizade, o carinho, as saudades e as novidades. E mais uma vez nos distanciamos. Agora, vez por outra nos damos um alô.

P. também costuma recolher bichos abandonados. Os mais recentes – uma cadelinha doente e um gatinho – foram resgatados do Centro de Controle de Zoonoses. Um nobre ato de misericórdia, posto que os animais que vão parar lá e não chegam a ser adotados sequer têm uma igreja aonde possam fazer uma última reza antes do sacrifício. Cujo método, tirante a semelhança da crueldade, chega a ser mais moderno que os enforcamentos dos nossos ancestrais.

Semana passada, após um bom período de silêncio e às voltas com a santaiada da igreja, ela me escreveu:

“Imagine você, que eu estava aqui retocando (vamos ser mais técnicas: reintegrando a policromia) e, olhando as mãos da santa, lembrei das tuas: tão branquinhas! Tem até umas manchinhas como se fossem sardas…”

A lembrança, espécie de elogio, comoveu. Eu não tinha noção – embora fosse de se esperar, pois a praia de P. é o detalhe – de que minhas mãos merecessem. Muito menos tanto tempo e ausência depois.

Acabou que naquele dia fiquei olhando para as minhas mãos mais do que de costume. Tentei me lembrar como elas eram, para entender como elas estão. Ainda são branquinhas. Mas nem tanto, o sol campineiro é mais implacável que o paulistano. O que, nesse ponto, confere à terra da garoa um fator a mais de proteção, ainda que solar. Continuam com sardas. Há nove anos uma aliança vive na mão esquerda, sem ter passado pela direita. Não são mais mãos jovens, com fome de mundo, como aquelas que P. conheceu. Tampouco são as mãos da última vez que nos vimos – já mudaram. Longe de serem santas, elas envelhecem com o resto do meu corpo, no mesmo compasso, nem adiantadas, nem atrasadas. Elas escrevem, desesperadamente escrevem. E hoje já fazem menos sinais feios no trânsito. Sim, as mãos também criam juízo.