O funeral

Ilustração: Serendigity/Flickr.com

Em enterros é proibido ser feliz. Sorrisos são mal vistos. Se você foi promovido na empresa no dia anterior, deixe a alegria em casa. Se sua sobrinha nasceu na semana passada e você já teve oportunidade de pegá-la nos braços, finja que não se recorda da sensação. Se amanhã você embarca com seu namorado para vinte dias num charmoso vilarejo italiano, faça de conta que deu tudo errado e vocês não vão mais. Cemitério não é lugar de gente alegre. Nele só são permitidos pensamentos tristes. Não cumprimente efusivamente um amigo que não vê há tempos, mesmo que você esteja sinceramente contente em vê-lo – ainda que não ali. Nesse caso, esboce um sorriso, sem muito entusiasmo, e dê-lhe um abraço mudo. Só. Para a etiqueta dos funerais, basta.

Ontem fui a um. Convém registrar, e já: claro que ninguém fica feliz com a morte de um familiar, um amigo (ou amiga, no meu caso), salvo casos previstos na psiquiatria. Nos funerais, as pessoas mais chegadas – parentes ou não – ficam, de fato e visivelmente, tristes de dar dó. Quase dá para ver (ou ouvir) seus corações chorando. A morte desarranja, abala, desconcerta, despruma, desconstrói, faz bagunça. Verdade verdadeira. No entanto, sejamos honestos, sem medo do bofetão: parte dos presentes não tem o coração tão dilacerado assim. É preciso estabelecer uma fronteira entre os pesares. Acompanhar enterro de pai não é a mesma coisa que acompanhar enterro de cliente. De tio que nunca lhe deu um abraço. De mãe do amigo do filho, aquela que você não viu mais que duas vezes no último ano. Por que, então, lançar mão de um semblante tão forçadamente triste, se não é isso que vai na alma? Não é, claro, o caso de contar a última do papagaio ou relembrar o episódio d’Os Normais da semana passada. A menos que o falecido seja da área do humor, coisas assim nem vêm à lembrança. Naturalmente. O silêncio é uma forma universal de respeito. Mas repare: assim como se vestem de preto, algumas pessoas se vestem de tristes. Nos dois casos, o efeito é apenas superficial. Protocolar.

Serei uma pessoa fria por não ter chorado? Talvez eu tenha sido mais tocada com a perda da minha amiga do que outra pessoa que tenha exibido um copioso pranto durante seu sepultamento. O manual ainda estabelece que, quanto maior o choro, maior a dor. Assim como quanto mais e maiores coroas de flores, mais querida ou importante a pessoa era. Parâmetros sociais da vida. E da morte. Enquanto as últimas pás de terra selavam o túmulo da minha amiga sob um alaranjado entardecer de outono como testemunha, pensei na impermanência das coisas todas. No sentimento do seu marido, também meu amigo, ao ver o frasco de xampu dela ontem à noite, na hora do banho, e o que ele fez com a saudade naquela hora. Pensei nos seus sapatos solitários no armário, órfãos de pés até que alguém dê a eles novos donos. No que ela mudaria em sua vida se fosse avisada, há um ano, que hoje não estaria mais aqui. Em quem deve tê-la recebido do lado de lá e como se ajeitarão as coisas do lado de cá, sem ela. Pensei em tudo e desejei, profundamente, seu bem. Sem, contudo, perder de vista minha alegria diária, apenas por estar viva.

Funerais me deixam assim. Esquisita.

6 comentários em “O funeral

  1. Sabe quando as pessoas às vezes falam “esse danado tem resposta para tudo”? É o que eu penso de você.

    Beijo alegre. Apenas por estar viva.
    Camila

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  2. É… talvez não estejamos evoluídos o suficiente para sentir alegria pelo amigo que partiu. A vida é dor, sim. Mas da dor conhecemos e tememos qualquer movimento para do desconhecido.
    Eu acredito que a morte é a abertura para outra dimensão da vida, mas se me perguntarem, direi ‘não sei de nada’. E fico triste quando a morte acontece nas proximidades.
    Talvez se um dia tivermos essa certeza a vida como a conhecemos não seja mais necessária. Teríamos evoluído e entendido o valor da unica constante…

    “Há também uma experiência mais profunda, o mistério do útero e da sepultura. Quando as pessoas são enterradas, o que se visa é o renascimento. Eis a origem da idéia do sepultamento. É colocar alguém de volta no útero da mãe terra, para o renascimento. Imagens muito primitivas da Deusa mostram na como uma mãe recebendo a alma de volta.” Joseph Campbell, O Poder do Mito

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  3. Ao ler o texto minhas emoções passaram desde uma Consciência Maior sobre a “morte” até o auto-flagelo da dor e do sofrer junto… porém, quando pensei em chegar em casa e ver o vidro de shampoo da minha esposa… os sapatinhos dela… eu fiquei com os olhos cheios d’água… afinal, mesmo que a Consciência dela seja Eterna e mesmo que em meu coração ela sempre viva… eu sentiria uma dor enorme em não poder mais tocá-la, ouvi-la, sentir-la… imagina nunca mais ver o brilho de seus olinhos?

    Enfim… nossa dor é com base em nossa proximidade, nossa conexao…

    Não como carne mas sei que um boi que morre sem ninguem ver não dói nada no coração de muita gente mas…o cachorrinho que morre (proximidade) causa muita dor…

    Minha mente, minha razão se aplica para tudo e todos.. menos para meus queridos… para estes.. ainda sou refém do meu coração e da minha carência deles, do carinho que me trazem.

    Namastê querido Atma escritor, Namastê! (“O Deus em Mim reconhece O Deus em Você”)

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  4. A morte é uma coisa que também mexe comigo Sil. Confesso que ainda não sou resolvida com relação a ela, como muitas pessoas também não são. Mas, a sensação pior da morte, acredito que é pensar que não veremos mais, não sorriremos mais juntos, não sentiremos seu perfume e sua alegria. Acredito que a morte é triste porque não estaremos mais perto da pessoa que amamos e partiu. É triste porque acreditamos que a morte física é o fim!
    Então, agredeçamos a cada segundo de vida!

    bjs

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  5. Querida!
    Muito importantes suas colocações e muito verdadeiras tb!
    Eu concorco com tudo o que vc disse e acho realmente que não precisamos seguir protocolos em momentos como esse.
    No enterro do meu amado irmão, não nos vestimos de preto, não nos limitamos a falar de coisas tristes e demos muitas risadas durante o velório, pois ficar a madrugada toda chorando, ninguém aguenta.
    Ele sabe, com certeza a falta e a dor de tê-lo perdido e é isso o que importa de verdade.
    Você é linda e muito verdadeira.
    Realmente precisamos agradecer por estarmos vivos e termos a chance diária de mudar pra melhor.
    bjaooooooooo…

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  6. Tão bonito, tão verdadeiro. E tão oportuno, não é? Hoje estou verdadeiramente muito mais triste pela morte do grande Saramago, do que estive há duas semanas, no enterro de um familiar. Sentimentos… ninguém explica. beijos.

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