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Azul

Havia mais, dentro da caixa de papelão. Aquela, há tempos encostada no corredor. A da etiqueta invisível, “Depois eu vejo”, e que, um dia, resolvi ver. Nela, entre outras preciosidades, parte de um antigo enxoval de bebê, pertencente a nós, os três filhos de Angelina e Antonio. Uma touquinha de tricô, pagãozinhos bordados, um xale de lã. E o vestidinho azul.

Enodoadas e meio esfareladas pelo inclemente tempo, não houve saída para as roupinhas, a não ser o lixo. O xale, inexplicavelmente em bom estado após meio século e tanto, teve fim mais nobre e foi embalar algum bebê rechonchudo; é o que disse a moça da igreja, quando levei a sacola.

E o vestidinho azul.

Por pouco não foi embora também. Cheguei a colocá-lo junto ao xale. Tirei. É que a memória apitou, feito um trem quando atravessa a neblina da serra. Olhei as rendinhas, tão delicadamente costuradas. No peito, um pequeno enfeite em forma de flor, trançado em linha, numa técnica que não sei o nome. Vesti-me duma espécie de epifania misturada com déjà vu. Esse não vai embora, não.

Dia seguinte, mostrei à irmã a foto que fiz dele com o celular. “Era seu?”. Ela devolveu na hora: “Não. O azul era seu. O meu era igual, só que rosa”.

Estava explicado por que eu não fora capaz de me desfazer dele. Tão pequeno, como pude caber nele? Eu tinha, quanto?, dois ou três anos. Nas minhas mãos, pareceu-me roupa de boneca. Devo ter sido criança miúda. Está certo que o tempo encolhe as coisas. Repare: até as pessoas, quando ficam velhas, encolhem. Estão tentando descrescer.

Minha irmã lembrou de nossa mãe fazendo os dois vestidinhos em sua máquina mágica de costura, que ampliava os tecidos, esticava as linhas, virava a vida do avesso, fazia milagre, enfim, com o orçamento sempre tão curto. No final das contas, estávamos sempre bonitinhos, meu irmão, minha irmã e eu. Costurar é contar uma história.

Qual terá sido o primeiro passeio que fiz com ele? E qual será o último que fará? Aprisionado na caixa por tanto tempo, hoje ele está engruvinhado, desbotado. É nem sombra da peça graciosa que um dia foi. Saibam todos, porém: o meu vestidinho era lindo, lindo. Azul da cor do mar. Ah, se o mundo inteiro me pudesse ouvir.

RG

Tirei RG aos (quase) doze anos. Estava com sarampo, abatida. Saí ligeiramente prejudicada na 3×4 em preto-e-branco que me identificaria dali por diante.

Minha mãe também precisava tirar o dela, fomos juntas. Assim, nossos RGs foram numerados em sequência. Primeiro o dela, par, depois o meu, ímpar. Ela tinha quarenta e três anos e também estava doente. A 3×4 escondeu direitinho.

Passei a adolescência achando a coisa mais linda, aquela numeração. Ainda acho. Veja: no documento e na vida, ela veio primeiro, eu vim depois. Ela se foi primeiro, eu vou depois. Continuo por aqui, aguardando minha vez. Meu RG é minha senha com Deus. Ele quem decide. Par ou ímpar ?

Guardei comigo o RG dela. Ela não precisa mais. Eu sigo precisando do meu para tudo. Tive que renová-lo; a menina com sarampo envelheceu e ninguém mais aceitava um documento da década de 70. Na 3×4 nova e colorida e digital estou mais parecida com a minha mãe. Pudera: tirei-a com quase a mesma idade que ela tinha, quando tirou a dela.

Nas fotografias a gente congela o tempo. Até as doenças. Mas eu sarei. Ela, não.

Inverno

É inverno no hemisfério sul. Meu quinquagésimo quinto. Da minha coleção de estações frias, lembrei de duas.

Era uma vez, inventamos de fazer tricô. Minha irmã, as amigas e eu. Viramos militantes da lã, partidárias das tramas, as doidas das agulhas. Nas geladas tardes paulistanas, nos reuníamos para tricotar. A cada ponto, uma bobagem no ar. Rir e tricotar são terapias avançadas.

Ficamos freguesas de um depósito de fios perto da rua Siqueira Bueno. Um mar de novelos, cones e cores à disposição. Se as temperaturas eram baixas, nossa criatividade não. E a gente era boa mesmo nas blusas. Depois de prontas, algumas ganhavam até nome, conforme a personalidade da peça. Fiz uma azul e verde, lã grossa, grandona. “Com que roupa você vai?”, “Hoje vou com a Big”. A amiga lembra dela até hoje.

Minha irmã se dedicou a um modelo com tranças na frente, maior capricho. Técnica sofisticada. Amarelo-bebê, pura meiguice. Mas ela não gostou nada do resultado, e nós… assim… tivemos que concordar. A pobre blusa sofreu bullying e ganhou a terrível alcunha de Brega. Nem chegou a ser usada. Hoje, acho que fomos injustas.

Ela também se tornaria famosa por tricotar uma blusa investível, razão de algumas das melhores gargalhadas da nossa juventude. Determinada a inovar no modo de fazer, ela a fez inteiriça, quase sem costuras. Toda branca, candidata a linda. Acontece que minha irmã exagerou na quantidade de pontos e só viu depois. As mangas tinham mais de um metro de comprimento, se não me falha a memória. Que ficou gigante, ficou. Sem nome, virou cobertor da nossa cachorra. Ela, ao menos, adorou.

Aquele inverno rendeu ainda muitos suéteres, cachecóis. Coloridos, listrados, gola assim, gola assado. O tempo passava, a gente se divertia e, de quebra, economizava e incrementava o guarda-roupa.

Minha mãe era craque nas agulhas gerais. Fez tanto tricô “pra fora”, como se dizia, na velha Lanofix. Entre as roupas que tricotou à mão para mim, guardei duas. Uma de verão, em barbante cru. E uma de inverno, amarelo-limão. De tempos em tempos eu as retiro do armário, sacudo a poeira, conto-lhes as novidades. Tão miúdas. Incrível que tenham me servido um dia. De tempos em tempos pergunto à Nina, sua neta, se ela gostaria de usá-las. Mas elas sempre retornam ao armário.

Então, era outra vez e Dona Angelina partiu. Nos últimos dias de um outono gélido, não houve blusa de lã que aquecesse o peito. Era dia dos namorados; nevou no coração do meu pai. Trinta e quatro junhos depois, recebo no celular uma foto dele com chapeuzinho colorido de palha, todo alegrinho. Não são só riso e tricô que fazem bem. O tempo também. Faz tempo que não vou a uma festa junina.

No inverno passado, em meio à pandemia, resolvi retomar as agulhas e tricotei. Nina pediu uma blusa para ela, também. Escolheu a cor, falamos sobre modelos, providenciei agulhas novas. Até hoje não fiz. Filha, eu estou te enrolando, tal um novelo. Sua avó já teria lhe feito mil roupas, uma mais bonita que a outra.

É inverno no hemisfério sul. Meu quinquagésimo quinto. A cada ano, completo uma carreira nova nessa minha malha de viver. E não pretendo arrematá-la tão cedo.

O dia em que nasci

arte: Lillian Chan

Eu era pequenininha quando minha mãe operou o estômago. Ficou uns dias no hospital, voltou para casa com dores, fez repouso, ganhou jantinha na cama. A cicatriz era grande, um corte deeeste tamanho na barriga.

Por algum tempo, acreditei que aquela ida de Dona Angelina ao hospital fora para… eu nascer! Para dar à luz sua caçula, no caso, eu. E que, diferente do resto da humanidade, sim, eu tinha na memória o registro da minha estreia neste mundo. A cicatriz grande? Da minha cesárea, oras. O repouso e as dores, completando o quadro pós-parto. E não era nadica estranho o fato de eu, recém-nascida, já andar, falar, ver, entender. Considerava isso normal, e não um milagre, nem desafio à ciência. “Sim, eu me lembro direitinho do dia em que nasci”, diria, placidamente, ao ser entrevistada na TV.

A dura verdade, no entanto, não tardou. A revelação veio de gente mais velha e, portanto, lembradora do real dia em que nasci. Foi quando soube da tal operação de estômago. Aquelas cenas tão bem conservadas na memória eram somente uma memória equivocada. Como muitas que ainda devo conservar.

Já considerei grandessíssima sacanagem não podermos nos lembrar do nosso próprio nascimento. Já pensou? Recordar, com precisão, da primeira vez dos nossos olhos nos da mãe. Da mamada iniciática. Da palavra pioneira, do primeiro passo coordenado, em plena sala de estar.

Porém, a incapacidade de lembrar desses momentos talvez seja uma prova de inteligência da espécie. Para quê, afinal, lembrar da aterrorizante e estreita passagem do útero? Dos primeiros minutos gelados fora do corpo morno da mãe, da primeira e devastadora cólica? Para que se saber gente tão cedo, se dá para borboletar nesse dolce far niente de bebê?

Nascer não é para maricas.

No rol das minhas memórias comprovadamente reais, há um par com a etiqueta “Mais antigas”.

A primeira: tenho dois anos, estou na areia da praia, de costas para o mar; aceno para alguém (minha mãe?) ao longe, uma onda (ok, marola) vem e me derruba – o que ajuda a explicar meu pânico de mares, rios, lagoas, cachoeiras.

Segunda: estou com três anos, na cozinha; minha mãe acaba de estourar pipoca, passa-a da panela para a vasilha, pulveriza o sal e me chama para a sala, onde já estão meu pai e meus irmãos; é a Copa de 1970, o Brasil vai jogar.

De maio de mil novecentos e sessenta e sete, ao contrário do que cheguei a acreditar, nada guardo. O que, mais tarde, passei a considerar ótimo. Lembrar dum complicado nascimento a fórceps, meu corpinho todo ferido, Dona Angelina chorando, crente que eu havia morrido? Ah, nem.

Receita

Eu bem que tento. Corto a abobrinha dum jeito, corto doutro. Fatio fininho, fatio mais grosso. Produzo cubinhos maiores, menores, médios. Ora deito na panela pouco óleo, ora bastante. Alho e cebola, sempre. Refogo, provo o sal, deixo cozinhar. Depois, quebro os ovos por cima e espero a mágica acontecer. Quando gema e clara estão a um passo de firmar, revoluciono tudo com a colher de pau. Então sirvo.

Ficar bom, fica. Pouco lembra, no entanto, a iguaria da infância, de sabor e receita registrados naquele caderno invisível, com letra de mão de mãe. Sempre falta alguma coisa. A toalha xadrezinha sobre a mesa de fórmica, os pratos duralex que não quebravam nunca. Faltam o quintal de caquinhos vermelhos e o porão onde ficava a enceradeira. Falta a Françoise Hardy na vitrola, com sua “La Question”. La question que não cala: por que não sou capaz de reproduzir a abobrinha com ovo da minha mãe? Algum tempero secreto, será? Eu exagero nos ovos? Falando em ovo, quem nasceu primeiro, o amor ou a saudade? Que tonta, eu. Falta é ela.

A gíria é velha: quando alguém falava bobagem, dizia-se que estava “falando abobrinha”. Injustiça. Eis aí legume bacana, de boa com a vida. É ter abobrinha dando sopa na geladeira e o banquete está garantido (inclusive sopa). Logo, na minha avaliação, falar abobrinha é bom. “Benzinho, me fala alguma abobrinha” – sussurraria a mocinha apaixonada, na novela das seis.

Contam que minha sogra fazia a receita. Em vez de abobrinha, porém, vagem picadinha. Família é assim. A base é a mesma, só mudam os personagens. Ou ingredientes.

Fiz abobrinha com ovo esta semana, para acompanhar o arroz e o feijão. É o sabor e a receita que meus filhos terão registrados em seus próprios cadernos invisíveis, com letra-mãe. Não saberão da abobrinha com ovo da avó, que não conheceram. Memórias culinárias são feitas de passado, embora se construam no presente. E repetir receitas afetivas é uma forma de perpetuar a espécie, um modo bom de fazer vida. Eu vivo falando das minhas. E se, por acaso, disserem que falo muita abobrinha, já sabem: é elogio.

(crônica finalista no Prêmio Off Flip/Festa Literária Internacional de Paraty, abril/2021)

Fratura

Foi no Cine Comodoro, acho. Avenida São João. Pegamos o 378 e fomos eu, minha mãe e minha irmã. Estava passando “Uma janela para o céu”. Eu tinha oito anos e fiquei comovida com a história da moça que quebrou a perna esquiando naquelas montanhas tão branquinhas. Jill Kinmont, a personagem. Não me esqueço.

Minha mãe também quebrou a perna, anos depois. Mas não ao esquiar. Ela deitou-se na maca para fazer o raio-X, virou de lado e crec!, lá se foi o fêmur. Os ossos da Dona Angelina estavam fraquinhos. Pudera, tanta radioterapia.

No filme, a moça participava de uma competição. Minha mãe também. Em vez de montanha a vencer, um câncer. “Vamos ver quem ganha”, ela devia pensar.

Um dia, bem antes do tal raio-X, nós descemos a rua do Acre e atravessamos, já quase na avenida Álvaro Ramos. Um garoto de bicicleta vinha na maior vula – gosto bastante dessa palavra, vula – e não conseguiu brecar. Minha mãe se estatelou no chão. Achei que tinha se quebrado inteira, já estava doente. Enquanto eu e uns desconhecidos a acudíamos, o garoto teve a coragem de reclamar. Catou sua bicicleta e se mandou, fazendo careta. Não é bonito pensar assim, mas eu desejei que um dos ônibus na avenida desse um sustinho nele. Um pé quebrado, de leve, sabe?

Nunca me quebrei. Nem perna, nem braço, nem dedo. Já contei isso. Criança inconformada com a inquebrabilidade, fui até a Casa São Pedro e saí de lá com um quilo de gesso em pó. Em casa, peguei a bacia com água e inventei meu próprio braço quebrado. Não convenci ninguém.

Quando minha mãe se quebrou, eu deveria ter proposto a ela: “Fico com a perna partida, você com o braço quebrado de mentirinha”. Os médicos disseram que ela não andaria mais. Dona Angelina fingiu que não ouviu, inventou sua própria perna consertada e andou. Não lembro se a Jill Kinmont conseguiu.

Dez anos depois de receber de um Dr. Fuad, visivelmente preocupado, a carta de encaminhamento urgente ao Instituto Arnaldo Vieira de Carvalho, a competição terminou para minha mãe. Era quase inverno e meu coração fraturado congelou. No filme da vida da minha mãe, a montanha venceu.

Gorro de cossaco

Em casa tínhamos o livro de receitas do Açúcar União. Era só trocar não sei quantas embalagens por um exemplar. Na verdade, tínhamos dois; faziam parte de uma coleção. Açúcar era com a gente, mesmo.

Eu passava tempão folheando o livro e me distraindo com as fotografias coloridas dos pratos prontos, um mais apetitoso que o outro. Livros de receitas não são como romances que, para sabê-los, é preciso ler inteiro e na ordem. Cada receita é um conto, independente e autônomo em seu sabor.

Uma das receitas do livro colorido eu me lembro bem: “gorro de cossaco”.

Achava o nome intrigante, mais até do que o indecifrável “bavaroise” ou o insondável “chifon”. Eu não sabia o que era cossaco. Nem a relação que um gorro poderia ter com aquele magnífico bolo de chocolate da fotografia, coberto com muito, muito chocolate granulado. A ideia de usar um bolo na cabeça poderia até ser apetitosa, mas não me parecia muito prática.

A fábrica da União ficava na Mooca, meu bairro. O cheiro do açúcar refinado tomava as ruas e casas ao redor, mas não chegava na minha. No meu pedaço, o aroma reinante era de outra fábrica, a dos biscoitos Raucci. Eu sonhava poder entrar ali e comer todos os biscoitos que eu quisesse.

Cossacos, aprendi depois, eram soldados russos. Parte de seus uniformes era um robusto e negro gorro feito de pele e pelos de animais, para protegê-los do impiedoso frio. E o formato do tal bolo lembrava o do adereço. Se for pensar assim, qualquer bolo se parece com um gorro, e vice-versa.

Em seu caderno de receitas, minha mãe tinha mania de acentuar a palavra doce. Antigamente, o verbete, de fato, levava circunflexo no “o”. Mas ela confundia e botava o chapeuzinho no “e”. Sempre. Era docê de não sei que pra cá, docê de não sei que pra lá. Eu sempre a corrigia. Ela ria. Dona Angelina, que saudade docê.

Uma de suas receitas era famosa: o tal do bolo coelho. Ela recortava no pão-de-ló a silhueta do bicho, e o enfeitava com glacê branco. Uma cereja virava o olhinho. Sucesso garantido entre a parentada, que costumava encomendá-lo para as festas de aniversário. Ela guardava um molde em papel, que ela mesma desenhara, para recortar o coelho sempre do mesmo jeito. Não era receita do livro da União. Era da sua cabeça criativa, mesmo.

Quando minha mãe fez quimioterapia, seus cabelos caíram. Ficou carequinha. Para o inverno, ela arrumou um gorro de lã cor de vinho. Enfeitou-o com uma pequena borboletinha verde, bijuteria que fazia parte de um grampo. Guardo o gorro até hoje. Minha mãe era uma espécie de cossaco da família. Valente, guerreira.

A refinaria da União não existe mais. No local, ergueram um condomínio de apartamentos. Apenas a majestosa chaminé de tijolinhos foi poupada. O passado se derreteu como cubos de açúcar em chá quente. E quem mora ali agora nunca vai saber do velho e doce aroma no ar.

Cisne

Enquanto pintava as unhas, lembrei.

Quando eu precisava ir à farmácia tomar injeção (ai!), comprar remédio ou só acompanhar alguém, ficava fissurada nos esmaltes. Na Droga Cisne havia uma pequena vitrine sobre o balcão, cheia de Coloramas e Impalas. Cada vidrinho era um minimundo de cor, formando um arco-íris de formaldeído e nitrocelulose. Mas criança não pintava as unhas.

Nos anos setenta, não havia a overdose cromática dos esmaltes de hoje que, só de rosa, tem uma centena de tons. É a popularização da escala Pantone, com secagem ultra-rápida. Os nomes dos esmaltes também eram simples, quase singelos. Zazá. Rebu. Areia. Kirei. Hoje quem os batiza não quer saber de minimalismo. Nos rótulos, frases com sujeito e predicado nomeiam cada vidrinho, numa espécie de storytelling. Dias atrás passei um com o nome “Zeca chamou pra sair”. Sendo eu uma mulher casada, devo considerar isso traição?

Minha mãe preferia os clarinhos, “cor forte, não”. Gostava do Zazá, um lilás suave. Só nas mãos, no entanto. Ela nunca pintou as unhas dos pés. Eu tinha trinta e nove anos quando estreei a cor nos meus artelhos. Taquei logo um vermelhão, para compensar a vida passada em branquinho. Achei-me bem ousada, aqueles pontinhos vibrantes nas pontas dos meus pés.

Os dedos dos pés da minha mãe, quando vistos por baixo, pareciam balas de coco. Aquelas, que as tias faziam para as festas de aniversário ou casamento. Sempre quis escrever isso, não sei por que. Nunca mais comi aquelas balas. Quase não tenho mais tias.

Na Droga Cisne quem nos atendia era o Arquimedes. Farmacêutico dedicado, simpático, falava baixinho. Tinha um problema nas costas que fazia sua cabeça pender para o lado. Diziam que ele chegara a estudar Medicina, sem, no entanto, ter se formado. Era comum o bairro todo se “consultar” com ele. Quando o Arquimedes ficou velho, seu filho, parecidíssimo com ele, assumiu a farmácia. E se tornou médico.

Eu achava bonito o desenho do cisne na fachada. Pensava na história do patinho feio, que crescia e se tornava uma linda ave. Eu me identificava com o patinho. Queria crescer logo, para ter unhas compridas e usar aqueles esmaltes. Viraria, então, uma cisne.

Depois que meus pais foram trabalhar na venda, Dona Angelina não tinha mais tempo para a manicure. Pudera. O dia inteiro fatiando frios, pesando arroz e feijão, arrumando mercadoria nas prateleiras, lavando copos no bar. Que esmalte sobreviveria? Suas mãos tinham um permanente cheiro de café moído. Ou de presunto.

Eu gostava de brincar com suas coisas: acetona, lixa, palitinho de laranjeira. Quando vi um pé de laranja, pela primeira vez, fiquei procurando o tal palitinho. Não achei. Eu roía minhas unhas. De vez em quando era autorizada a usar um rosinha nas mãos. Logo o esmalte descascava nas unhas carcomidas, uma feiúra só. O cisne nunca chegava.

Assim que Nina saiu da minha barriga e a aconchegaram em meu colo, a primeira coisa que vi foi seu rostinho. A segunda, seus dedos finos e longos. Queria que minha mãe soubesse que a neta caçula, que já nasceu cisne, tem as unhas mais lindas do mundo.

A Droga Cisne, tão única, não existe mais. Na mesma rua abriu uma Drogasil, igual a qualquer outra Drogasil. Deve ter uma prateleira cheia de esmaltes multicoloridos. E uma garotinha que passa por ali, de vez em quando, atenta aos vidrinhos. Esperando sua vez de ser cisne.

Cidade-mãe

O ônibus dobrou a esquina e bati o olho no letreiro: Itapira.

Cidade da minha mãe. Que, vejam só, não conheço. Tão pertinho de onde moro, não dá uma hora de carro. Quando passo por ali, pela estrada, sempre estico o olhar. Procurando nem sei o quê (ou sei). Mais ou menos como os bichos, quando farejam o vento.

Deveria ser um mandamento, “Conhecei os lugares em que teu pai e tua mãe nasceram”. Com Seu Tonico, estou satisfatoriamente quite. Já com Dona Angelina, carrego a dívida. Ou pecado.

Leio na internet: Itapira, município do estado de São Paulo, tem 74.773 habitantes e localiza-se a uma latitude 22º26’00” sul, longitude 46º49’18” oeste. Dou risada. Essa Wikipedia sabe nada das coisas que realmente importam. Soubesse, o texto começaria assim: “Itapira é onde nasceu a Angelina, que fazia o melhor pão de batata do sistema solar e era conhecida por sua risada de apito”.

Quis tomar o ônibus. Aquele, vermelho, que virou a esquina e passou por mim, como um recado. Que se danasse aonde eu estava indo e o que eu tinha para fazer. Acenaria para o motorista, feito doida, fazendo-o parar ali, no meio da rua. Esbaforida, entraria e pediria desculpas aos passageiros pela confusão. Aboletaria-me em uma das poltronas vagas (haveria de ter uma). Durante a viagem, telefonaria para o marido, avisando, “Não me esperem para a janta”.

Desceria, então, na rodoviária da Itapira. E daria início à atrasada missão: encontrar a casa onde minha mãe viveu, quando criança.

O problema é não ter a menor ideia, única pista sequer, fotografia que fosse, de onde ela e meus avós viveram. Para que lado ficava? A casa tinha alpendre? Roseira na frente? Quantas casas da década de 1930 ainda estão em pé em Itapira? Quantos itapirenses se lembrariam dos meus avós e de minha mãe? Não temos parentes lá. Andaria a esmo, perdida, à espera de providência divina de súbita intuição ancestral. Deveria existir um Google Maps afetivo, sabedor de coisas assim.

Perguntaria ao rapaz da farmácia, puxaria conversa com a senhorinha da quitanda, bateria na porta do cartório. Apelaria aos meninos a caminho do jogo, interromperia o Tik Tok das garotas na porta da escola, quem sabe não teriam uma bisavó centenária e com boa memória.

Rodaria Itapira inteirinha, viraria a cidade do avesso. Bateria na porta da rádio, iria ao jornal, alugaria um carro de som, descolaria um megafone. Quanto tempo levaria para falar com 74.773 moradores? Onde a Angelina menina comprava balas? Qual era o nome da sua escola? Sem respostas, só me restaria tomar o ônibus vermelho de volta.

A casa onde nasci e vivi por quase metade da minha vida está vazia, fechada. Talvez, habitada por comunidades de fantasmas e aranhas. Meu filho tem pálidas lembranças de lá. A caçula, nem isso. Em São Paulo, a casa número 1 da pequena vila da Mooca é morta. Embora tenha abrigado tanta vida.

Já é fato doído, mas meus filhos terão esse buraco em suas biografias. Não terão sabido da casa onde sua mãe nasceu. Já do pai, novamente, estão ricamente quites (em história que, por alguma razão, se repete). Eles não saberão onde eu comprava balas e gibis. Talvez, um dia, lá na frente, se deem conta disso. E quedem assombrados com um letreiro de ônibus dobrando a esquina.

O boneco feio

Dos poucos brinquedos que minha mãe teve, quando criança, um permaneceu. É um bebê de louça, acabou ficando comigo. Se hoje ela teria oitenta e quatro anos, ele beira os oitenta. Apesar da idade, continua bebê. Não tinha nome de gente, como Alfredo ou Sérgio. Minha irmã lembrou: a Angelina-criança, minha mãe, o chamava, vejam só, de Boneco.

Se Boneco era o bebê de mentirinha da minha mãe, eu sou irmã de mentirinha dele. Além de compartilharmos a orfandade, tornei-me, nem sei desde quando ou por que, tutora dele. Dia desses, tirei-o do armário onde vive, envolto em xales, protegido dos perigos deste mundo. Nina, minha filha, neta de Angelina, sobrinha de mentirinha do Boneco, assustou-se ao vê-lo na sala. Já Luca não poupou o desaforo: “Que feio!”.

Eles têm razão. Boneco, o boneco, é feio.

Tem cabeça, bracinhos e perninhas de louça pintados à mão, em cor de pele sem vida. Seus olhos são fundos, inertes, perturbadores. A boca mal desenhada em cor de rosa, a balbuciar o nada. As mãozinhas, fechadas como as dos recém-nascidos, parecem de gente velha, cheias das marcas do tempo. Seu corpinho, de tecido estofado, está puído. Falta-lhe a ponta do pé esquerdo, quebrado sabe-se lá como. Na nuca, um misterioso buraco que acabou por lhe rachar parte da cabeça. Como é oca, alguém enfiou ali um chumaço de pano. Pois, todo mundo sabe, cabeça vazia é oficina do diabo.

Minha irmã e eu, de pequenas, também brincávamos com ele. Minha mãe deixava (o que, talvez, explique os acidentes). Crescemos, ninguém mais brincou com ele. Pudera. Que criança, hoje em dia, há de querê-lo? Não é bebê rosado, gordinho, fofo. Não se pode pegá-lo de qualquer jeito. O Boneco é durão, não fecha os olhinhos quando o deitam. “Não faz nada”, como diriam. E, duro dizer, é feio pra burro. Aqui em casa, nunca lhe arranjei merecido lugar, como num museu afetivo. Então, ninguém o embala mais. Resignado em sua condição de relíquia, Boneco é brinquedo esquecido. Nem por isso ele chora. Se ele é de louça, o coração deve ser de lata. Já chorou um dia, porém. Em suas costas há uma espécie de alto-falante inativo, enguiçado, podre. Devia ser desses bonecos que, se lhe apertam a barriguinha, choram metálico.

Tenho vontades de lhe dar um banho, mandá-lo a um hospital de bonecos, fazer-lhe curativos, vesti-lo decentemente, providenciar um bercinho. Não se pode esconder um pequeno irmão mais velho assim, num armário, para sempre. Ele precisa de cuidados. Boneco, o boneco feio, é frágil. Embora ninguém que chegue aos oitenta com apenas um pé quebrado e um buraco na cabeça deva ser considerado frágil.

Frágil sou eu. Que pareço de louça e me quebro inteira, imaginando a Angelina-menina dando-lhe papinha, trocando a fralda do xixi invisível, passeando com ele para lá e para cá, conversando com ele, ninando-o, fazendo-o adormecer. Ensaiando a mãe que já era desde sempre.

Boneco, o feio, deve ter sido bonito, um dia.

Sagu

sagu

Fiz sagu.

Enquanto despejava na panela cheia d’água os grãos crus, tão redondinhos e branquinhos, lembrei do presépio montado todo dezembro, quando eu era criança. Parecem as microbolinhas de isopor que a gente usava para decorá-lo, fazendo de conta que era neve. Presépio que se prezasse tinha que ter neve.

Minha mãe era craque no sagu. Usava o vinho mais barato que tinha. De vez em quando, colocava pedaços de abacaxi no meio. Foi um dos deleites gastronômicos da minha infância, ao lado do nhoque de batata e do bolo nega-maluca. Eu gostava de morder as bolinhas, uma a uma, adorando-as na boca como a um deus. Deus Sagu.

No doce pronto, as bolinhas cozidas ficam todas juntas, grudadas. E, ainda assim, mantêm-se separadas umas das outras. Deve haver alguma metáfora importante nisso, que eu não sei qual é.

Da primeira vez que fiz sagu em casa, meu filho perguntou, antes de provar: Que gosto tem?

Não sabia se respondia que, na verdade, sagu tem gosto de nada, que não passa de uma fécula boba, e que o vinho e o açúcar é que são o segredo, ou se contava que sagu tem gosto de assistir minha mãe, avó dele, fazendo casaquinhos de tricô na Lanofix, para vender. Ou que tem gosto de ouvir o LP da novela Selva de Pedra na vitrola, a Françoise Hardy murmurando lindamente “Je ne sais pas qui tu peux être, Je ne sais pas qui tu espères”. Tem gosto, talvez, do chão de caquinhos vermelhos do nosso quintal. Ou até gosto de encapar os cadernos novos da escola com plástico xadrez.

O importante é que ele gostou. Ele que faça suas próprias associações ao sabor do sagu, quando for mais velho. É isso que os doces nos ensinam, não?

Se a tradição do sagu está mantida, a do presépio, não. Talvez por medo de os gatos comerem ou quebrarem as peças. Talvez porque tenha perdido a graça, mesmo. Ou porque não há mais necessidade de inventar neve. Presépio bom é presépio dentro da gente.

Sagu é barato, ordinário. Porém, se vou a um restaurante e tem sagu de sobremesa, “de cortesia”, já colocado em potinhos de alumínio ou plástico, o self-service por quilo vira, na hora, fino bistrô. Sagu é um doce luxo memorial.

Já fiz sagu com vinho caro, não contei a ninguém. Gourmetizei a lembrança. Já errei a medida, deu um panelão que durou mais de uma semana.

É que sagu rende muito. Feito a saudade da gente.

Pijamas

pijama
ilustração: Karolina Pawelczyk

O dinheiro para roupas novas era curto. Solução: descolar um tecido aqui, outro ali, e inventar modelitos para minha mãe costurar. Vestido, blusa, calça, saia, conjunto.

Eu deixava Dona Angelina doidinha. Além dos modelos que via na TV e pedia para ela copiar, eu criava os meus. Alguns, irrealizáveis, davam uma trabalheira danada. Como se eu fosse uma arquiteta maluca, projetando estruturas que a engenharia jamais sonhara. Outros, ela tirava de letra. Não havia técnica que não dominasse. Era bom ter mãe costureira. Embora, adolescente, tudo que eu desejava era usar Pakalolo e Soft Machine.

Lembro da saia mídi de lãzinha marrom que usei com botas de caubói. Do vestido branco, igual ao da mocinha da novela das sete, com gola que abria de lado e faixa do mesmo tecido na cintura (usei-o em um casamento em Jacutinga). Da blusa azul-céu com pala frisada e golinha padre, desenhado em inédito desvario de recato. Da camisa amarela com ajuste de botão no quadril, que ficava subindo e era deveras irritante. Do macacão lilás de popeline, que passeou comigo por São Paulo inteira. Do colete feito de sacaria. O colete, meu Deus! Meus avós faziam panos de prato para vender. Vô Paschoal buscava no Bresser os sacos de algodão, aqueles de armazenar cereais, e os alvejava no tanque – o mesmo tanque onde minha avó, em passado tenebroso, afogava os filhotes recém-nascidos da nossa gata. Os sacos ficavam branquinhos da silva, uma beleza. Então, os dois passavam os dias cortando, fazendo bainha e bordando com linhas coloridas. Vendiam bem, na feira. Uma vez, pedi para minha mãe um colete de saco, na cor original, sem alvejar. Ela fez umas franjas no próprio tecido, dando à peça uma pegada riponga. Perfeito para a adolescente bicho-grilo que fui. Fiz relativo sucesso na escola.

Daria meu reino para ver, em algum arquivo perdido na memória, aquelas roupas todas. As imagens que guardo são difusas, sempre falta um pedaço. Talvez, hoje, eu me surpreendesse com os estilos que adotei ao longo da vida.

Em época de ficar em casa compulsoriamente, se viva Dona Angelina fosse, eu lhe pediria para fazer uns pijamas. De flanela, bem quentinhos. Não inventaria moda, só os básicos. Pijamas que me vestissem como um abraço dela. Pijamas mágicos, antivírus e antitristeza. Com botões de avançar no tempo. E que me fizessem sonhar, à noite, com dias melhores.

Água e sabão

bolha sabão
arte: Guenevere Schwien

A brincadeira consistia em 1) jogar bastante água no quintal, 2) espalhar um pouco de sabão em pó e 3) ficar escorregando pra lá e pra cá a manhã toda.

Diversão da qual eu, caçula, não era autorizada a participar. Minha irmã e meu irmão mais velhos, privilegiados pelo tempo, deslizavam pelo chão vermelho de caquinhos, felizes da vida. Eu só assistia. E desejava, com toda determinação que garotinhas de quatro anos são capazes, crescer logo para entrar naquela farra também.

O quintal, pequeno, tinha bom formato para a pista ensaboada. Na lateral estreita, quinze metros, no máximo, os tombos não importavam. Eram, aliás, a melhor parte. Com direito a adrenalina extra: ao final do corredor, havia uma bela escadaria que dava para o portão de entrada. Se mal calculada, a brincadeira poderia acabar em choro. Ou coisa pior. E quem se importava?

Um dia, enquanto meus irmãos capotavam, às gargalhadas, meu pai me chamou na porta da cozinha, que dava para o quintal. Abaixou-se um pouco e me olhou, sério. Pediu que eu tirasse a blusa. Era de botões, eu me lembro. Fiquei só de calcinha, já vislumbrando o anúncio. Ele desfranziu o cenho e, sorrindo, proclamou o tão sonhado alvará: “Vai!”.

Finalmente, eu estava liberada para a epifania aquática. Já não era mais criancinha, então. Joguei-me naquele pequeno parque de diversões caseiro. Imitei o quanto pude meus irmãos, veteranos do sabão. Acatei suas dicas, Ó, faz assim, Olha a escada!, e nunca me diverti tanto.

Era a água e o sabão, lavando a alma dos três filhos de Antonio e Angelina.

Nina, a neta caçula deles, lembrou esta semana de quando sua escola montou para a turminha do maternal uma lona ensaboada. Pediram até para levar biquíni. No fim da tarde, quando a busquei, vi em seus olhinhos castanhos e nos cabelos molhados: foi dos dias mais alegres que ela passara ali.

Será que transmiti a ela, em algum gene, a experiência do pequeno quintal? Hereditariedade é mesmo um barato.

Voltinha

“Fusca com família”, Gustavo Rosa

À noite, meu pai pegava a chave do Fusca, dava uma chacoalhadinha no chaveiro, olhava pra nós e já sabíamos: dia de dar voltinha! O destino? Nenhum. O programa era a voltinha. Breve ou longa, dependendo do nível no tanque e da disposição do Seu Tonico, único motorista da família. Ele e minha mãe na frente; nós três, os filhos, atrás. Rodar pelos bairros, só pelo prazer de andar de carro. Uma espécie de peregrinação a Santiago de Compostela sobre rodas, onde o caminho é mais importante que o fim.

Desde que me entendo por gente, tivemos carro em casa. Nem por isso o encantamento se esgotava; não era sempre que o usávamos. Matinê no Cine Comodoro, para assistir a “Uma janela para o céu”? Ônibus. Visitar a Vovó Carmela na Vila Diva? A pé. Tia Zinha, em Mauá? Trem. Passear de carro, para meus poucos anos de vida, ainda era acontecimento recheado de novidade e finesse, coisa de gente rica.

A discussão era sobre quem iria nas janelinhas. Geralmente, Seu Tonico e Dona Angelina ajudavam nos pitacos. Negociações feitas, lá íamos. Sem cinto de segurança, que nos anos 70 a gente mal sabia onde ficava. Era comum o item permanecer enroladinho em um elástico, tal qual saíra da fábrica. Acho até que o Fusca nem tinha. Nunca sofremos acidente. São Cristóvão era nosso chapa.

Sob o ronco das mil e trezentas cilindradas, a gente pedia para meu pai passar aqui e ali, ou seguia a esmo, guiados pelo nada. Eu gostava das avenidas, dava para correr mais. Quando era minha vez,  aproveitava a janelinha particular (para o céu?), decorando a cidade e treinando a leitura nas placas. Torcia para passar em frente à casa de alguma amiga. Quem sabe ela não me veria e, admirada, diria, “Olha, a Silmara!”. Ah, se nosso Fusca falasse.

Hoje, caso eu sugerisse um passeio assim aos meus filhos, acostumados ao carro desde o bebê-conforto, eu seria bombardeada por questionamentos incrédulos – Pra quê?, Mas aonde vamos?, Que graça tem? – e ganharia debochada recusa a tão besta convite.

São poucas as novidades para quem nasceu neste século, e os encantamentos, outros. Definição de simplicidade, para eles, é uma velha conexão 3G, o pacote básico da Net, pizza sem borda recheada.

Já meu pai, piloto-herói da minha infância, hoje se embanana todo na hora de entrar no carro, confunde as portas, não se entende com o cinto de segurança. Agora, sou eu que o levo passear. O destino, geralmente, é o médico. Para ouvir que está tudo bem com seu motor 8.7. O que não é para qualquer um.

Por pura nostalgia, hei de ter um Fusca. A caçula avisou: estou proibida de buscá-la na escola com ele. Em silêncio, penso: o mundo dá voltas. Deixa estar.

Os furinhos do arroz

Diminuo o fogo, tampo a panela. A superfície do arroz está cheia de furinhos. Lembrei: de criança, pedia para minha mãe fazer “arroz com furinhos”. O mais gostoso do mundo. Engana-se quem pensa que esses miniburacos são resultado de simples fenômeno físico. Há mais coisas nos furinhos do arroz cozido do que sonha nossa vã gastronomia.

Ao lado do fogão, eu vigiava a panela semitampada até que a água começasse a secar, dando lugar à mágica dos furinhos. Na ponta dos pés, espiava dentro deles, na tentativa de descobrir-lhes a razão. Nada via, além dos borbulhos. Se a visão não trazia resposta, o olfato se esbaldava: meu nariz era inundado pelo vapor perfumado do alho, da cebola e do cheiro verde temperando os grãos.

Logo eu me distraía com outra coisa. A gataiada brigando no telhado, a vizinha tocando a campainha, o mandrová na folha da comigo-ninguém-pode. Até ouvir o chamado, “Tá na mesa!”. Eu pedia e, com a escumadeira, minha mãe escavava apenas a primeira camada do arroz, capturando, assim, os furinhos. Que se desfaziam no encontro com o caldo do feijão. Tem comida que é pura oração.

Já o arroz da minha avó, que passou a cuidar dos netos quando meus pais abriram a venda e nela trabalhavam o dia todo, era empapado. Não continha furinhos. Nem sabor. Houve época em que reclamamos. Minha mãe resolveu fazer nosso arroz na venda, entre um freguês e outro, numa cozinha improvisada atrás do balcão, trazendo-o à noite para casa. Sei que ela se esforçou, mas não ficava o mesmo sabor. Quando ela ficou doente e parou de trabalhar, ganhamos o arroz de volta. Eu não sabia se ficava triste ou alegre. Quando ela morreu, perdemos de vez o arroz.

Desligo o fogo, aviso que o almoço está pronto. Meus filhos disputam a escumadeira para ver quem pega primeiro o arroz. Pergunto se está gostoso. Bocas ocupadas, seus olhinhos apertados dizem ‘sim’. Então concluo: os furinhos do ancestral cereal continuam mágicos. Dentro deles cabem presente e passado.

Lembrança é um prato cheio para a saudade.

Batom

Na loja, testei os batons no dorso da mão esquerda. Tão bonitos, assim, alinhados. Roxos, lilases, rosados, vermelhos, alaranjados. Verdadeiro festival cromático. Fui conferindo também o cheiro de cada um – coisa da maior relevância. Quatro sentidos ativados de uma só vez: tato, visão, paladar e olfato. Batom é troço muito sensorial, grudado no imaginário desde sempre.

De repente, um cheiro. Específico, único, arquivado nos confins da memória. O cheiro do batom da minha mãe. E eu não estava doida.

Dona Angelina, devota da cara limpa, por gosto ou falta de recursos, não era de muita maquiagem. Mas um batonzinho ia bem, para alguma ocasião especial. De criança, eu gostava de brincar com os dela. Ela, o desapego em pessoa, deixava. Lembro bem do estojinho, com um mecanismo diferente dos de hoje. Uma pequena saliência ao lado, bastava empurrá-la para cima e o batom brotava do tubinho. Talvez fossem mais baratos. Qual marca, meu Deus? E o indelével cheirinho de mãe arrumada para passear.

Fui apanhando os batons, um a um. De onde vinha aquele cheiro de tempo antigo, macio, quieto, cor de rosa? Numa saudade urgente, passei a abrir os blushes, as bases, as sombras, tudo. Onde, onde?

Então, me dei conta. Que tonta, eu. O cheiro não vinha da coisarada cosmética nas prateleiras da loja. Nem eu louca estava. Foi ela que, num voo etéreo, passou por ali e me deu um beijo.

Farofa

Se o tempo amanhecesse bom no domingo, meu pai anunciava: “Vamos!”.

Pega a esteira, o chapéu, não esquece o bronzeador Bozzano, “Mãe, já vou com o biquíni por baixo?”, as toalhas, os sanduíches, o refrigerante, o guarda-sol, a prancha – de madeira, não existia de isopor.

Fusca cheio, vambora. O programa: farofar em Santos. Seu Tonico no volante, Dona Angelina ao lado, eu e meus irmãos atrás. Todos sem cinto de segurança. Deus existe, meu bem.

O Google diz que da Mooca até o litoral são setenta quilômetros. Bom para um bate-e-volta. Como não existia GPS nos anos 70, eu perguntava de quinze em quinze minutos se a gente já estava chegando. Era minha maneira de calcular o tempo e a distância da viagem.

No caminho pela Estrada Velha de Santos, ou Via Anchieta, tinha Cubatão. Ouvia tanta história sobre a cidade, as chaminés das indústrias lançando fumaça preta no ar, dia e noite, crianças nascendo sem cérebro, que esse nome – Cubatão – já havia, para mim, virado metonímia para poluição. Lembro-me também de achar graça no nome de uma rodovia no pedaço, a Pedro Taques, que eu acreditava ser Pedro Táxi. Por certo, um taxista muito famoso.

Ao mesmo tempo que amava passar o dia na praia, comendo salgadinho, brincando com meu baldinho e fazendo castelos na areia, eu também sofria; o sol mandava a fatura. Vermelha como a roupa do Papai Noel, logo eu me encheria de bolhas doloridíssimas. Minha mãe tinha lá suas panaceias para essas horas e, quando a dor passava, eu gostava quando ela – que nenhum pediatra me ouça – as furava com agulha de costura e linha. Era meio nojento quando vazavam. Depois vinha a fase de descascar; uma coceira dos diabos, mas a despelação era divertida. Não existia protetor solar naquela época, só bronzeador – um veneno para minha tez de Branca de Neve. Fui uma criança sardenta, não por acaso.

Certa vez, Seu Tonico estacionou, como sempre, em uma rua próximo à orla. Passamos a manhã na praia e, na hora do almoço, voltamos ao carro. Surpresa: o Fusca havia sido arrombado. Lembro-me da expressão preocupada dos meus pais, contando os trocados que haviam sobrado num cantinho do porta-luvas que passara despercebido pelo ladrão. Se a farofada já estava em andamento, o frango assado estava garantido.

Então, quando fiz seis anos e entrei na escola, meus pais compraram a venda. Como o batente era de segunda a segunda, o fim dos passeios a Santos foi decretado.

Tanta coisa mudou. O advento do protetor solar com fator 50 cancelou as queimaduras e as bolhas. Moro a mais de setenta quilômetros da praia, não entro num Fusca há décadas (suspiro). Na Estrada Velha, agora, só gente e bicicleta. Cubatão, vejam só, deixou para trás o estigma de “Vale da Morte”. O sanduíche da minha mãe é só saudade, e meu pai mal sabe em que dia da semana estamos. Meus filhos não sabem o que é andar de carro sem cinto de segurança, não conhecem Santos, tampouco o prazer da legítima farofagem. E, apesar da minha atual pouca disposição para a dupla mar & areia, minhas lembranças daquele tempo continuam ensolaradas. Arrisco dizer que foram as farofas mais bem temperadas da vida.

Ailili-ailou

Minha mãe adorava a canção “Hi-Lili, Hi-Lo”. Aquela, do filme. Cantarolava do seu jeito, ailili, ailili, ailou. Não sei se ela assistiu ao clássico de 1953, nem se compreendia a letra. A melodia a encantava, e isso bastava.

Dona Angelina nasceu nos anos 30. Sua playlist era feita, basicamente, de composições suaves, ternas, doces. Como ela. Quando, na vitrola, a agulha acordava um Led Zeppelin nervoso, sacudindo a pequena vila em que morávamos, invariavelmente ela ironizava: “Isso é música?”.

Mais ou menos o que eu disse à Nina, sua neta, quando me apareceu cantando um tal MC Kevinho. “Ai, mãe. Você não sabe de nada. Só ouve música velha”. O que não é totalmente inverdade, mas argumentar com adolescente, às vezes, é monologar em um deserto.

Nos anos 70, quando estreou a novela Estúpido Cupido, reproduzindo os anos 60, eu quis, fervorosamente, o LP com a trilha sonora. Velhas canções, tão novas para mim. Lembro-me do dia em que, finalmente, meus pais chegaram em casa com ele. (Ou será que nesse dia ganhamos só o compacto, com a canção-título e “Banho de Lua” no lado B? Minha memória é meio riscada.) Desta vez, consenso na vitrola: ao reviver seus dias de glória, aquela trilha foi capaz de unir duas gerações.

O que a avó de minha filha ouviria hoje? Que toadas a embalariam? Talvez, ela ainda pedisse para tocar – não mais na fita K7, mas no Spotify – uma de suas preferidas: “Valsa para uma menininha”, de Toquinho e Vinicius:

Menininha do meu coração

Eu só quero você

A três palmos do chão

Essa eu cantei tanto para a Nina, quando era bebê. Primeiro, porque também gosto. Segundo, era um jeito de reinventar a presença da minha mãe; ela não conheceu nenhum neto. Por fim, eu queria acostumar seus miniouvidos à boa música. Porém, ao contrário dos versos, nunca desejei congelar em três palmos a menininha do meu coração. Quero-a gigante, do tamanho do mundo. Como a mãe de sua mãe também gostaria. E como tem sido.

Mas poxa vida. MC Kevinho?

A tônica do Tonico

agua tonica

Em nove, de dez vezes que meu pai vai a um restaurante, ele pede água tônica. Limão espremido e gelo completam o ritual. Embora, ultimamente, venha deixando o gelo; reclama que tem lhe feito mal à garganta. O refrigerante, ao lado do molho de pimenta, é dos seus hábitos mais antigos. Seu nome bem que podia ser Tonico da Tônica.

A lata diz que é feita de quinino. Que diabos é quinino, menino?

With a little help from my friend Google, aprendo: é uma substância que se tira da casca da árvore cinchona, que nunca vi. Um pó branco, tecnicamente batizado de hidrocloreto de quinina. Como esse título não faria o menor sucesso, pelo contrário, resolveram chamá-la simplesmente de água tônica de quinino. Mais bonito e poético. Perguntar qual a sílaba tônica de tônica é mais ou menos como perguntar qual é o doce mais doce que o doce de batata doce.

Gramática e trocadilho à parte, a água tônica deve funcionar como uma espécie de tônico da longevidade. Seu Tonico acaba de completar oitenta e sete anos, nos trinques. Um dos médicos que o acompanha brinca que ele está tão bem, que podemos vendê-lo. Ele acha graça.

O garçom traz o pedido à mesa, meu pai faz uma piadinha qualquer. O garçom entra na onda (ou não), e todos riem (ou não). Ele quebra o lacre, plec, e a vira no copo. Do encontro do amargo da bebida com o azedo do limão dá-se a química da felicidade do meu pai, traduzida no primeiro gole e o quase onomatopeico “Aaah” de prazer.

Falando em química, na tabela periódica, oitenta e sete é o número atômico do Frâncio. O sobrenome do meu pai é Franco. Uma coincidência dessa, bicho.

O slogan impresso na latinha afirma: “o amargo transforma”. O quê em quê, nunca soube ao certo. Mas desconfio. Olho meu pai partindo o quiabo ao meio e juntando-o, metodicamente, ao arroz e feijão. O rosto enrugado de mundo, os cabelos branquinhos, a indefectível boina. Meu pai soube transformar sua vida. Viúvo aos cinquenta e cinco, era do tipo que não se servia sozinho à mesa – tarefa exclusiva de minha mãe. Quando ela se foi, inventou sua autonomia e entendeu-se com a solidão. Amargura? Se sentiu, metamorfoseou-a em poesias e músicas dedicadas à Dona Angelina. Apropriou-se da casa e suas domesticidades, aprendeu a cozinhar e a preparar suas gororobas. (Algumas tornaram-se lendárias: sua vitamina matinal, por exemplo, costumava levar leite, óleo, ovo, banana, mandioquinha, beterraba, vinho, Sonho de Valsa e o que mais estivesse dando sopa na bancada da pia, tudo no liquidificador. Praticamente um suco atômico. Melhor: um tônico.)

Com a poção acre-doce no copo, meu pai acessa a memória que lhe resta e se põe, com genuíno entusiasmo, a contar causos. Os mesmos de sempre, de novo e de novo. O pisão que levou da vaca Beleza, quando criança. O orgulho dos dons oratórios e literários do meu avô, seu pai. O primeiro emprego quando chegou a São Paulo, na fábrica de sapatos, aos dezesseis anos. O dia em que conheceu minha mãe, em pleno Finados. Sua saudade é líquida. Eu, que antes me chateava, aprendi a ouvi-los como se fosse a primeira vez.

Bendito quinino. Transformou até a mim.

Trégua

Julieta, lembrei. Julieta era o nome dela. A vizinha da casa 3, que morrera em seu quarto. Marcos, o único filho. Um garoto da minha idade, sete anos.

Eu batia boca com ele sempre que podia. Não que fôssemos inimigos, brincávamos juntos. Mas não perdíamos a oportunidade de provocar. Ele dizia algo, eu rebatia, ele soltava outra e assim exercitávamos nossa retórica – com sofisticação intelectual no nível de “Nunca viu, cara de pavio?” e “Você não é de nada, só come marmelada”. O objetivo era ver quem daria a palavra final, a resposta lacradora que calaria o outro. Lembro vividamente de uma vez que ele falou: “Você tem resposta pra tudo”. Fiquei em dúvida se era elogio ou não.

Câncer, disseram. Julieta era jovem, miúda, morena, pintas no rosto. Educadíssima. No dia em que ela morreu, fiquei consternada. Como um garoto de sete anos iria viver sem a mãe? Pai já não devia ter, nunca o vira por ali. Quando minha mãe morreu eu tinha vinte; tempo que já me calçara de certa força e autonomia para enfrentar a vida. Além disso, eu contava com pai, irmãos mais velhos, avós. Mas e o Marcos, que estava no primeiro ano e usava franjinha?

O velório foi na sala. O cômodo onde os dois assistiam TV à noite, juntos, agora exibia outro programa. Eu não fui. E tive que lidar com a ideia de haver um defunto a duas casas da minha. Antes da Julieta, eu não tinha notícia de alguém na vizinhança que houvesse batido as botas em casa. Morria-se em hospital, na rua, longe. Não em casa, lugar de viver.

O portãozinho ficou aberto, um entra-e-sai dos poucos parentes. O Marcos ficou zanzando na vila. Chutando pedrinhas pelo chão, cabisbaixo. Da janela do quarto dos meus pais, eu o observava. Ele via que eu o via. Naquele dia, porém, não tive vontade, nem coragem, de provocá-lo. Como se a morte requeresse trégua entre nós. Era preciso alguma paz. Tampouco fui conversar com meu amigo. Saber se gostaria de comer biscoito champagne com Nescau, ouvir o LP dos Carpenters. Nada. O silêncio foi a trégua.

Logo ele se mudou. Comentaram que fora morar com os tios. Não me despedi. Perdi, então, meu parceiro de embates verbais. A casa 3 ficou vazia por um tempo. Depois, chegaram novos inquilinos. Pensei em avisá-los sobre eventuais problemas com almas penadas, mas desisti. Por via das dúvidas, levei anos para entrar ali de novo.

Mães que morrem conseguem, de algum jeito, cuidar dos filhos? Por que eu tinha sorte de ter minha mãe e ele não? Por que médicos não conseguiam curar tudo? Por que gente viva não vê gente morta?

Fiz-me muitas perguntas, na época. E o Marcos estava enganado. Eu não tinha tantas respostas assim.

Mistura

Tudo que não era arroz e feijão, a gente chamava de mistura. Geralmente, carne. “O que tem de mistura?”, eu perguntava, já abrindo as panelas sobre o fogão. Verduras e legumes também entravam na categoria. Viraram, com o tempo, acompanhamento.

Como se diz a alguém, “Que Deus te acompanhe”, também deve-se falar para a dupla gastronômica mais brasileira que há: “Que o purê de batata te acompanhe”. Afinal, se está com purê de batata, está com Deus.

Cresci com os adultos mandando a gente ir comprar mistura. Lá ia eu no açougue buscar uns bifes, ou na avícola, pegar umas coxas de frango. Para os bifes, havia um martelo especial. Diferente dos martelos do meu avô, o da minha mãe era quadradinho, com pontas achatadas. Para amaciar a carne, diziam. Eu gostava de brincar com ele. Sumiu, nas mudanças.

Não digo que sempre achei esse termo – mistura – curioso, porque jamais deitei pensamento sobre. Fez parte do meu vocabulário desde sempre, é dessas palavras que a gente só reproduz, não questiona. Não, até agora. A mistura é mistura de quê? No Google, leio que o nome remonta ao tempo dos escravos. Nas refeições, eles recebiam um naco de carne que, de tão pouco, era misturado ao arroz, feijão e farinha de todo santo dia. Veio a abolição, o nome ficou. Toda cozinha tem um pé na senzala.

Apesar de amante do bom e velho feijão com arroz, hoje a mistura é o melhor do meu prato. Abobrinha empanada. Shimeji na manteiga. Quiabo refogadinho no alho. Suflê de espinafre. Salada toda coloridona. Por trás de um grande prato há sempre uma grande mistura. Pronto: mistura é a mistura de coisa boa com coisa gostosa.

Quando foi que deixamos de falar mistura? Deve ter sido quando paramos de dizer engrossar (um molho, por exemplo) e adotamos o reduzir. Ou quando substituímos o combinar pelo harmonizar.

Ontem fui pensar no almoço e a palavra saiu assim, sem querer: o que teríamos de mistura? Ri sozinha. Sem acompanhamento.

Lembrei das velhas panelas lá de casa. Fechei os olhos, abri as tampas. Servi-me de saudade. Memória com nostalgia é a melhor mistura que tem.

O nome da minha mãe

Ilustração: Juliana Cassab

De criança, eu não achava o nome da minha mãe bonito. Angelina. Achava-o levemente feio, sonoramente estranho. O problema, acredito, era o ina, que lembrava aspirina, vaselina, gelatina.

Certo dia, na escola, um menino perguntou o nome dela. Com vergonha, inventei, “É Angela”. Senti-me mal com aquilo, então emendei: “Mas todo mundo chama de Angelina”. Como se, sendo apelido e espécie de diminutivo, a coisa amenizasse.

Angela era bem mais lindo. Uma proparoxítona forte e, ao mesmo tempo, doce. O lance direto com o universo angelical. Além disso, tinha a Angela Maria, baita cantora. A Angela Ro Ro. Não havia naquela época, que eu soubesse, nenhuma Angelina importante ou famosa. Personagem da História, atriz de novela, nada. A Angelina Jolie era apenas uma bebê beiçuda.

Jamais contei o episódio da escola para minha mãe. Talvez ela achasse graça, talvez não. Para que correr o risco? Ela se foi há tanto tempo. E esta é a primeira vez que escrevo sobre. Se existe a internet dos mundos e a conexão for boa, ela vai ler. Talvez ache graça, talvez não. Agora eu corro, confiante, o risco.

Levou tempo para eu simpatizar com o nome. No colégio, já não lhe inventava nomes. O som, An-ge-li-na, começou, inclusive, a me agradar. Gosto é gosto, e ele muda. Passei a apreciá-lo. Tanto que o incluí na lista de nomes para minha filha. “Que tal Angelina, pra homenagear a avó?”, propus, no quinto mês de gravidez. Não houve adesão. Não que achassem feio. Acabei – coisas da vida – sugerindo Nina. Que ganhou. Então, “ina” não consistia mais em problema? Eu, definitivamente, estava em paz com o nome dela. E, de algum modo, sei que ela sabia. Na vila dos anjos também se comemora o Dia das Mães?

Pudesse, reencontraria o garoto da escola e explicaria tudo.

Sianinha

sianinha

A amiga comentou, quase en passant: no texto digitado aparecera a “sianinha” embaixo de uma palavra. O risquinho vermelho, sinalizando que a grafia estava incorreta. Mão na roda para escritores distraídos ou erráticos.

Parece uma sianinha, mesmo. Aquele fitilho ondulado usado nas costuras. Achei delicado, o apelido.

Minha mãe costurava. Cresci em meio a coisas enfeitadas com sianinhas de todas as cores. Algumas tão fininhas. Toalhas, roupas, lençóis, aventais. Além de alerta para imprecisões da língua, a sianinha ortográfica acabou cumprindo outro papel: ativadora de memórias.

Fui parar na sala da nossa velha casa, sentei-me no sofá de courvin marrom, o LP da novela Selva de Pedra (primeira versão) na vitrola. Minha avó lavando roupa no tanque, meu avô encerando a casa na enceradeira tão grande que sentávamos em cima dela e íamos junto, minha mãe ora na cozinha, ora em seus tricôs, crochês, costuras. Tão caprichosa, sempre.

Havia um bazar de aviamentos no quarteirão. Era a garagem de um sobradinho geminado, transformada em loja. Sempre íamos, minha irmã e eu, buscar alguma coisa que ela pedia. Até hoje gosto dessas lojas, quero comprar tudo e fazer tudo. Nunca compro nada e nunca faço nada. Sou só uma teoria descosturada.

Enquanto escrevo, várias sianinhas aparecem. O corretor não reconheceu a palavra courvin. É courvin mesmo, meu bem.

Corretor ortográfico é uma espécie de professor. Lembrei da Maria Olívia, minha professora no primeiro e segundo ano. Com delicadeza, ela sublinhava a lição – sem fazer sinhaninha – com caneta vermelha, ensinando que jiboia era com jota e não com gê. Anos depois, batizei uma gatinha com seu nome. Seria bonito dizer que foi em sua homenagem, mas não foi. Por gosto, mesmo. Maria Olívia, a gata, fora abandonada pela mãe, que dera cria no carro do vizinho. Um dia cheguei em casa e ela havia ido embora, levando todos os filhotes, menos ela. Era a mais fraquinha, sempre doente. Gostaria de reencontrar Maria Olívia, a professora. Maria Olívia gata também, se esse negócio de reencarnação também valer para os bichos.

Eu gostava de brincar com as linhas, agulhas, rendas, botões e sianinhas da minha mãe. Dona Angelina sempre deixava. Não havia nada que ela não nos deixasse brincar, aliás. Observava a arquitetura das minicurvas da sianinha, pareciam cabelo anelado de boneca. Ficava imaginando como é que faziam aquilo tão perfeitamente.

(O calçadão de Copacabana, repare, é uma sianinha gigante.)

A amiga que falei se chama Iana. Rima com quê? Siana. Que nem sei se existe, talvez sianinha seja palavra nascida no diminutivo. Igual carinho. Só sei que a vida não dá ponto sem nó.

Vou revisar este texto e ver se tem outras sianinhas para corrigir (ou não). Quem sabe eu me recorde de mais alguma coisa no meio do caminho. Quando escrevo, não uso apenas um editor de texto. Uso um editor de lembranças também.

Se as sianinhas enfeitam os panos, as memórias enfeitam toda a existência.

Para Iana Ferreira

O quadro

jesus 1

No quarto dos meus pais havia um quadro de Jesus Cristo. Minha irmã conta que foi ideia do nosso avô. Provavelmente, para que Ele abençoasse o casal e a família. Ou para lembrar Seu Tonico e Dona Angelina que o filho de Deus estava vendo tudo, tudinho.

O quadro era grande e trazia um Jesus bonitão, loiro dos olhos claros, barba meio hipster. A moldura dourada tinha uma cordinha atrás para pendurar no prego, deixando-o levemente pendente para frente. O que talvez causasse ao Senhor certo constrangimento, de vez em quando.

De qualquer forma, minha mãe devia ter altos papos com o Jesus emoldurado. Contava-lhe dos filhos, das encomendas de tricô, dos apertos financeiros, as fofocas na família. Será que contou a ele quando ficou doente? Para nós, os filhos, não.

Foi nessa cama que nasceu, de parto normalíssimo, meu irmão mais velho. Ter Cristo assistindo ao vivo e em cores, abençoando tudo de pertinho, quem não haveria de querer? No entanto, comigo, a caçula, e minha irmã do meio, meus pais resolveram não arriscar, então nascemos no hospital. No meu caso, fez toda diferença: só estou neste planeta graças ao fórceps.

E a ideia do quadro só pode mesmo ter sido do meu avô. Ele mantinha um exército de santos em seu quarto, dispostos em um oratório ao lado do guarda-roupa. Eu tinha medo da santaiada, evitava entrar lá sozinha. Como se eu adentrasse uma festa sacra, e secreta, para qual eu nunca era convidada. Era nesse quarto também que meu irmão, o afilhado de Cristo por tabela, quando criança costumava ver freiras enfileiradas caminhando e sumindo através das paredes. Coisa que minha mãe tratou logo de resolver na Federação Espírita.

O Jesus Cristo loiro e cabeludão morou com a gente por muito tempo. Sua imagem estava incorporada ao quarto, à casa, à minha infância, adolescência, juventude. Tipo um parente. Lembro-me com exatidão de suas mãos, tão serenas, apesar das marcas da crucificação. Que sina, a dele; pregado na cruz, pregado nas paredes.

Quando minha mãe morreu, reconfiguramos os dormitórios e o quadro foi embora. Não sei que fim levou. Se o demos para alguém, ou se acabou indo para o lixo, de tão velho. É pecado jogar fora um quadro de Jesus, ainda que desbotado e carcomido pelas traças? E será que traças que moram em um quadro santificado, quando morrem também ganham o reino de Deus, fazem upgrade evolutivo e retornam à Terra como peixes?

Na nossa cozinha havia outro quadro, menor, da Santa Ceia. Vá lá: cozinha, comida, ceia. Mas deixar Cristo sobre a cama do casal? Que ideia, vô.

Fábrica

L’Homme endormi, 1936, H.Matisse

Meio-dia e vinte. Os operários fazem, na calçada, a sesta. Em seus uniformes de brim azul-marinho, deitam-se, sem cerimônia, no chão em frente à fábrica. É ali, rente à rua, que se dá o breve descanso pós-almoço.

É preciso um bocado de coragem para fazer, do solo público, sofá particular.

Um deles se esparrama, como se estivesse em uma king size. Embora o modelo da calçada seja de solteiro. O colega ao lado, em quase posição fetal, repousa alinhado ao muro. Outro, barriga para cima, estica as pernas na transversal do passeio e cruza os pés. As mãos sob a cabeça, feito travesseiro. Há, ainda, outros.

Na construção, operários morrem na contramão atrapalhando o sábado. Na fábrica, dormem na calçada atrapalhando a quinta.

Será que chegam a sonhar quando estão de olhos fechados? Sei que descansam na calçada porque não têm onde mais recostar seus corpos. Dentro da fábrica não há lugar para sonhar.

O que embala seus quase cochilos? O arroz com feijão, quiabo e bife, o zum-zum-zum dos carros ou a primeira parcela do décimo-terceiro?

Onde eles se deitam passam as solas imundas dos sapatos. E também os cães, que vão largando pelo caminho seus cocôs e seus xixis. Não gostaria que, se eu tivesse um filho operário, ele descansasse assim após seu almoço. Se eu fosse dona da fábrica onde aqueles homens trabalham, instalaria hoje mesmo sofás, poltronas, redes para eles. Mas dono de fábrica não pensa nessas coisas. Quem pensa nessas coisas é mãe. Mãe é um tipo de fábrica. Só que de gente.

A promessa

cabelo

Prometi à Nina deixar meus cabelos crescerem.

Logo eu. Que, apesar de ser lembrada como cabeluda pela turma da escola, não uso nem um fio abaixo do queixo desde que ela nasceu, há onze anos. Eu, que sou devota de São Joãozinho. Eu, que tenho quimeras antigas com a máquina dois.

O limite negociado foi o ombro.

Tem gente que promete, em nome de nobre causa, não comer chocolate. Subir de joelhos intermináveis escadarias. Cortar – veja só – os cabelos. Eu não. Eu prometo deixá-los crescer um quarto de metro. Cada um com a sua provação.

De criança, minha avó penteava meus cabelos para eu ir à aula. Contrariada, subia no bidê para facilitar o trabalho dela. Que tinha mão pesada, puxava com força (e algum mau humor) minhas extensas e quase sempre embaraçadas madeixas. Não havia esses condicionadores bons de agora. Nem os ruins a gente tinha, era xampu e olhe lá. Eis que surge, para nossa salvação, o Neutrox. Creme amarelo, inovador e relativamente barato que dissolvia nós como que por encanto. Um dia, hipnotizada pelo seu aroma adocicado, não resisti. Comi.

No caso da minha promessa, a nobre causa não foi motivo de doença, nem de milagre solicitado, tampouco de graça alcançada. “Mãe, deixa o cabelo crescer um pouquinho só?” – foi o (reiterado) pedido da caçula. Lasquei-me. Como negar? Desde então, tenho recorrido às faixas, lenços, tiaras e adereços que me façam enfrentar a (longa) temporada com algum ânimo.

Exibi imensa cabeleira até os vinte e cinco. Cultivada quase por acaso, em um misto de esquecimento de cortar com ideal de beleza. Acreditava que era assim que tinham que ser os cabelos de uma mulher, feito verdade irrefutável (não é). Fui dessas de aterrorizar o cabeleireiro, caso o infeliz cruzasse a fronteira do “só as pontinhas”. Como se minha vida não fosse funcionar de outra forma. Os cabelos eram longos, mas as ideias eram curtas.

Todos os dias me olho no espelho ao acordar, na esperança de que alguma mágica tenha se dado durante a madrugada e meus fios tenham adquirido o DNA do bambu. Cogito negociar com a Nina, quebrar a promessa. Trocá-la por um brinquedo novo, quem sabe? Mas aí lembro de seus desenhos, quando era pequenininha. Neles, sempre fui representada com arquetípico cabelão. Desisto da negociação, respiro fundo e sigo em frente. Tanta coisa que ela me pede e eu, por incompetência ou falta de vontade, deixo de atendê-la. Ser mãe é carregar uma eterna e cabeluda culpa sobre os ombros.

Ano que vem faço cinquenta e um, a idade da minha mãe quando morreu. Dona Angelina perdeu todos os cabelos na quimioterapia. Pensei em uma homenagem póstuma, raspando os meus. “Vê? Também estou carequinha da silva”, direi-lhe em pensamento. Estarei três décadas atrasada, é verdade. Mas ela há de entender. Mães são atemporais. Além disso, comprida mesmo é minha saudade. Dá até para fazer trança.

PS: a promessa foi quebrada, trocada por três Kinder Ovo.

O sapato cinza

salto alto

Desde sempre, Nina é doida por um certo par de sapatos meus. O cinza, de salto alto, largas tiras de camurça. Coisa de mulher, não de criança. Ela, de pequena, sonhava com o dia em que iria usá-los. Prometi que os guardaria, seriam dela quando crescesse. E, como os uso pouco, estariam conservados para a nova dona. Uma espécie de herança, de mulher para mulher.

Enquanto esperava o tempo fazer seu trabalho, ela brincou de desfilar com eles pela casa, tal aquelas cenas dos comerciais e anúncios de revista. Pezinhos número vinte e sete perdidos na imensidão do trinta e cinco, arrastando o sapatão para lá e para cá. Fazia pose, mirava no espelho sua silhueta torta, necessária ao equilíbrio anti-natural.

Embora não me recorde com precisão, devo ter brincado com os sapatos da minha mãe. Fingindo a mulher que nem brotara, em clássico exercício de feminilidade. Mas diverti-me muito, disso me lembro bem, com suas jóias e bijuterias. Dona Angelina, bastião do desapego, não ligava se íamos para o quintal com seu anel de rubi. Aliás, também não se importava de promovermos chás das bonecas com suas delicadas xícaras de porcelana. E minha vontade de ser mulher grande ia além: um dia, inventei de sair de casa usando Modess. Eu devia ter oito anos. Nos anos 70, não tinha esses absorventes fininhos, eficazes e ultradiscretos de hoje. O volume extra na calça não me pareceu muito confortável, voltei para casa e joguei fora. Sem contar as bolas de meia no sutiã surrupiado da irmã mais velha, inventando os peitos que ainda demorariam para aparecer. Eu não via a hora de, enfim, ser grande. Entendo a Nina.

– Você está guardando os sapatos pra mim, né mãe? – ela checava, de tempos em tempos. Sua alegria morava no meu sim.

Não por muito tempo, no entanto.

Grandona, Nina, aos dez, já calça dois números a mais que eu. Cedo, ainda, para o almejado sapato cinza. Partiu meu coração sua decepção, quando se deu conta. Por um tempo, ela continuou brincando com eles. Os dedinhos, espremidos, denunciavam o não-cabimento. Aos poucos, desistiu. Uma experiência importante a compor sua fundamental coleção de frustrações, rumo à maturidade.

Hoje, ela se contenta em elogiar quando eu os coloco – mesmo sabendo que eles jamais a acompanharão em seus passeios. São seus sapatos, sem nunca terem sido. Ela questiona por que não saio com eles todos os dias, afinal, tão bonitos. Logo eu, filha! Que, apesar de ter ido para a maternidade tê-la – e seu irmão – com plataformas altíssimas, para desespero da Dra. Clara, hoje fujo de todo salto que ultrapasse a medida de quatro dedos da mão.

Envelhecer é, entre outras sabedorias, não considerar mais um suprassumo usar Modess (ou qualquer de suas variantes), nem sutiã (ah, a liberdade que os peitos pequenos conferem), tampouco saltos que desafiam a gravidade e o bom senso.

Num futuro próximo, Nina terá seus próprios saltos. Seus próprios absorventes e sutiãs. Sua própria mulherice, enfim. E as lembranças das brincadeiras com o velho sapato cinza também ficarão pequenas. Mas continuarão a servir no coração – dela e meu.

O disco

vinil

A vizinha da casa 2 veio mostrar, toda feliz. Comprara o LP do Ruy Maurity, que tinha o hit Nem Ouro, Nem Prata. Nem de um, nem de outro; eram de chumbo os anos 70. Mas a gente não sabia disso.

Subimos correndo a escada de sua casa, pegada à nossa. Ela aumentou o volume no máximo que a vitrolinha ordinária permitia. O chiado da agulha. Em seguida, a batida:

Eu vi chover, eu vi relampear

Mas mesmo assim o céu estava azul

Sabíamos a letra de cor. A felicidade era feita de vinil, meu bem.

Eu tinha nove anos; ela, uns treze. Ficamos amigas assim que se mudaram, ela e a mãe, para a vila. Rosana, seu nome.

Ouvimos a faixa à exaustão, nem quisemos saber do resto. E sua mãe chegou. Costumeiramente simpática e sorridente, naquele dia ela escalou, visivelmente cansada, o lance de escadas. Cumprimentou-me. Rosana abaixou o volume, beijou-a. Achei que era hora de voltar para minha casa, ainda tinha lição para fazer.

Mal terminara de descer os degraus, a música parou. Ouvi tapas e gritos. A Rosana estava apanhando. Pelo tom da briga, entendi. Quem mandara comprar disco? Onde já se viu gastar, sem autorização, o ouro suado, a prata rara?

Desacelerei o passo, enrolando para chegar ao meu portão, a menos de cinco metros dali. O ouvido em pé, o coração apenado. Quis voltar lá, defender minha amiga. Mais gritos, mais tapas. Melhor não. Fechei rápido meu portão, subi as escadas e sumi quintal adentro.

Ontem a música, tão esquecida quanto minhas vizinhas, tocou na rádio. A lembrança surgiu num átimo, e ficou girando na minha cabeça feito disco riscado. Por onde elas andariam?

Nunca apanhei. Quer dizer, já tomei (ao menos) um grande tapa. E já tive que devolver uma coisa que comprara sem permissão. Nunca levei surra, no entanto. Nem quando desenhei com canetinha na parede da sala. Ou quando tomei todos os Yakults de uma vez e jurei que não tinha sido eu. As infrações da minha infância estavam sujeitas a um código penal bem mais camarada.

Não me recordo dos dias que se seguiram. Se fui procurar a Rosana para saber se estava tudo bem. Se sua mãe ficou brava por muito tempo. Se tornamos a ouvir o disco, pivô da sova. Tempos depois, elas se mudaram dali. A vida na casa 1, a nossa, era assistir vizinhos chegando, vizinhos partindo. E a gente ficando. Isso dá música.

Só sei que naquele dia choveu e relampeou feio na casa 2. Mas mesmo assim o céu na nossa pequena vila estava azul. Fui fazer minha lição. Que a Rosana havia, por torto método, aprendido a dela.

Que cor?

esmalte

Nunca antes na história deste país houve tanta cor de esmalte.

Na manicure moderninha os vidrinhos ficam expostos em prateleiras embutidas na parede. Organizados por cor, formam uma hipnotizante escala Pantone e causam-me palpitações. A felicidade tem secagem ultra-rápida, meu bem.

Mamãe quase não fazia as unhas. Além da grana curta para ir ao salão e da absoluta falta de tempo, o trabalho na venda não colaborava. Moer meio quilo de café, fatiar cem gramas de mortadela, pesar um quarto de feijão, lavar dúzias de copos do bar. Mãos que não paravam nem por um minuto. Pra quê enfeitá-las, se não durariam até os fregueses do dia seguinte?

Quando dava, dona Angelina gostava de usar um tal Zazá, espécie de lilás. Às vezes, ia de Misturinha, de tom vago, indefinido. Tudo clarinho, sempre. Nunca a vi com Rebu, o sanguinolento. Lembro da pequena vitrine sobre o balcão na farmácia do Archimedes, achava lindo aqueles vidrinhos todos enfileirados. Mas criança não pintava as unhas, tirante as brincadeiras.

Faço as minhas toda semana, no salão. Um exagero, de acordo com o marido. Incompetência para a automanicure, na minha avaliação. De vez em quando, levo meus próprios esmaltes, compulsivamente colecionados a cada ida à farmácia ou ao supermercado. Assim compenso, eu sei, os flertes proibidos da infância. Guardo-os em uma caixa, e me divirto escolhendo o tom da vez.

A gente deveria poder guardar as mães em vidrinhos, também.

Enquanto lixa minhas unhas, a manicure quer saber: “Que cor você vai passar?”. Como desta vez não trouxe nenhum do meu acervo particular, avalio o círculo cromático disponível e ensaio pedir um que se chama Café, de marrom fechado e profundo. Para relembrar as vezes em que minha mãe chegava em casa à noite, depois do trabalho. Ela me abraçava e eu sentia o cheiro das suas mãos, impregnadas de pó. E cansaço.

Mudo de ideia e, ajeitando minha mão direita sobre a toalhinha branca, anuncio: “Cor de saudade”.

Cicatriz

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Não tenho muitas cicatrizes. Minha coleção é pequena: uma no dedo da mão, outra próxima à boca e as duas cesáreas, fundidas numa só – por conta da habilidade da Dra. Clara. Costumava admirar pessoas que exibem várias, todas com histórias de bravura ou fatalidade. Imbecilidade, às vezes. Todo corpo é um livro ilustrado.

A do dedo. Na venda dos meus pais tinha uma máquina de fatiar frios. Pirralha, considerei-me apta a manejá-la. Afinal, estava muito a fim de um sanduíche de presunto. Daquelas antigas, a gente girava a manivela e a roda-lâmina-gigante, afiadíssima, ia fatiando tudo pela frente. E fatiou, inclusive meu dedo. Sangue jorrando e leve desespero, corri pedir socorro para minha mãe, que pesava um quilo de arroz para a freguesa. Voa para a farmácia, põe sulfa, dá ponto falso. A venda não existe mais, não gosto mais de presunto e minha mãe agora atende a freguesia celestial. A cicatriz, quarenta anos depois, permanece. No médio direito, e é com ele que eu vou digitar o ponto final deste parágrafo.

A da boca. Eu passeava com minha cachorra pelo bairro, quando avistei um gatinho na calçada. Gatos são fofinhos, certo? Certo, mas não quando se veem a um metro de distância de um cão, ainda que manso e na guia. Fui mexer com o bichano, de unhas tão afiadas quanto a lâmina que fatiava os frios. Ganhei um pequeno talho acima dos lábios. Voa para a farmácia, põe sulfa, dá ponto falso. A vida, parece, é feita de replays.

Se a cicatriz do dedo foi adquirida na bravura, e a da boca, na imbecilidade, a da cesárea foi por amor. Ontem, antes de entrar no banho, fiquei olhando a minha. Um risquinho. E pensar que dele saíram, em tempos diferentes, duas pessoas; uma que estava na sala jogando Fifa e a outra na cozinha, fazendo brigadeiro de leite Ninho. Antigamente, a marca da cirurgia ia de ponta a ponta na barriga da mulher. Dra. Clara me tranquilizava, “Nem vai aparecer, com biquíni”. Levei tempo para me dar conta da bobagem contida nisso. Eu não queria escondê-la. Não seria normal exibi-la com o mesmo orgulho que mostro às pessoas a foto da cria, não mais na carteira, mas no celular? As cicatrizes da cesárea precisam sair do armário.

Cicatriz, bonita ou não, alegre ou não, é o registro de uma história. Um tipo de documento, único, que só a gente tem. Feito RG.

De comidas e ausências

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“presença”, 2014 – Simone Huck

Tinha que ser nhoque de batata, naquele domingo. Igual ao que minha mãe fazia. Não haveria, porém, a menor graça em comprar pronto. Ir ao mercado, pegar pacotinho na prateleira refrigerada, código de barras, data de validade, informação nutricional, CPF na nota, obrigada, eu que agradeço, bom dia, pra você também, próximo. Nada disso.

Não cheguei a aprender a receita com dona Angelina, então tive que me virar com a internet. A internet também é uma mãe.

Tablet na bancada, ingredientes alinhados, linha de montagem planejada. Cadê a vasilha? Ih, não tenho. Quer dizer, tenho. Mas quando vou fazer alguma coisa maior, esparramo tudo. É vasilha boa, mas às vezes é pequena, apertada.

Na rua de baixo tem um mercadinho. Vendinha de bairro. Uma alternativa à complicação dos supermercados: não preciso descer até o G2, não pego tíquete de estacionamento e, portanto, não preciso validá-lo no caixa; não ando oito corredores para alcançar o que quero. Está certo que na vendinha só tem um tipo de manteiga, dois de xampu e três de macarrão. Mas tudo na vida tem um preço. E o do mercadinho costuma ser mais em conta.

Calcei os sapatos, fui e voltei com uma bacia verde de plástico. Grandona, espaçosa. A felicidade custa três reais e noventa, meu bem.

Chamei a Nina, ela queria ajudar a preparar a massa. Seguimos o passo a passo da receita, fantasiei secretamente que era minha mãe ensinando. E que ela estava encarapitada no armário, invisível, feito os anjos dos filmes, rindo do meu cabelo enfarinhado e admirando a neta que não conheceu.

Enquanto misturava os ingredientes reparei que, além de bacia, preciso de uma vida maior, também. A minha é boa, mas às vezes é pequena, apertada. Quando penso em fazer alguma coisa maior, esparramo tudo. Acabo reproduzindo apenas as velhas receitas de viver que nela cabem, ao mesmo tempo em que vou inventando desculpas para não arrumar logo uma vasilha-vida maior.

Saquei o macete da massa – dona Angelina que soprou, lá do topo do armário –, que é não amassar demais, nem usar força. Não se sova massa de nhoque; não compreendo como isso não é ensinado no Fundamental. Caso contrário, sempre se precisará de mais e mais farinha, e a gororoba será incomível. O principal ingrediente de um bom nhoque, aprendi, não é batata. É delicadeza.

Fizemos as “cobrinhas” com a massa, como eu chamava quando era criança. Fomos cortando com a faca, igual minha mãe fazia, e enfarinhando os nhoques para não grudarem. Nina e eu comemos um montão, crus mesmo. Do mesmo jeito que eu comia quando tinha a idade dela. Senti-me numa reprise de um domingo qualquer da década de 70 na velha casa da Mooca, só que com outros personagens. Se a vida se repete, que seja na base do nhoque.

Ficou igualzinho ao da dona Angelina. Tão bom, que desconfio que ela veio acertar o ponto da massa, bem naquela hora que eu atendi o interfone e a Nina foi colocar um elástico nos longos cabelos castanhos.

Nhoque pronto, ajeitamos a mesa, as cadeiras e chamamos todos. Pena que ela não veio para almoçar com a gente. Ou veio.

Verde-água

sutiã

Noite de Natal. Foram todos dormir, menos eu. Fiquei na cama, admirando meu presente. Um sutiã de “menina moça”, como se dizia. Verde-água, a cor. Minha mãe achou que estava na hora e que eu ficaria feliz. Feliz eu fiquei, mas não era hora. Demorei a usá-lo. Não havia necessidade. E, ainda que houvesse, tinha a vergonha.

A adolescência é uma fase verde-água. Não é exatamente verde, mas também não é azul. Um meio termo confuso, que não deixa de ser bonito.

Fecho os olhos e quase posso vê-lo, aqui em minhas mãos. Miniatura dos sutiãs da minha mãe, tão maiores. Quando escolheu o meu modelo na loja, Dona Angelina não imaginava os dramas que viveria com os próprios peitos.

Na escola, eu observava as meninas de treze, mais velhas e iniciadas nas curvas e nos sutiãs. Fora da curva, eu só tinha retas. Pensava, “Quando eu tiver treze, então”. Os treze chegaram, as curvas não. Otimista, concluía: “É com quinze”. E assim os anos se passaram, tangenciando minha frustração. Aos poucos, eles se instalaram. Eu que não estava madura, antes. Estava verde. Verde-água?

Primeira boneca Suzy, primeiro par de botas, primeiro relógio. Tem presentes que ficam eternizados na lembrança. Embora não me recorde com precisão quando ganhei cada um. A gente deveria ter um memorial de datas importantes, válido para outras coisas, também. A primeira vez que comi nhoque, por exemplo. Ou o dia em que, criança, ainda, ouvi o disco do Renaissance e achei a voz da Annie Haslam a coisa mais linda deste mundo. Quando foi que um gato ronronou no meu colo pela primeira vez? E a primeira mordida de cachorro? O primeiro (blargh!) beijo. Queria as datas exatas, dia, mês e ano. Para quê, exatamente, não sei.

Depois que minha mãe operou, passou a usar um sutiã com bojo recheado de minúsculas sementinhas, para disfarçar a ausência de uma das mamas. Ela mesma o confeccionara, até que ficou bom. Anos depois, ela morreu. Se é verdade que o primeiro sutiã a gente não esquece, o último também não.

Que terá sido feito do meu, o verde-água? Um dia, ficou pequeno. Ou foi para o lixo ou habitar o armário  de outra garota, também estreante na adolescência. Num mundo redondo e circular, o tempo todo há algo começando.

Dia desses, olhei minha gaveta. Está na hora de renovar meus sutiãs. Ou aposentá-los de vez. Notei também que a Nina logo, logo vai usar. Quem sabe ela não ganha um bem bacana? Verde-água, para perpetuar a tradição que acabei de inventar. Próximo Natal, talvez.

Tempo rei

ampulheta

Foi mais de uma vez: na volta do cursinho pré-vestibular, no ônibus que me levava até a Praça da Sé, costumava tocar “Tempo Rei”. Aquela, do Gil.

Às vezes, eu não tomava esse ônibus, e sim o metrô na estação Vergueiro, próxima ao cursinho. Um ia sob o chão, o outro, sobre. Dependia, portanto, do meu estado de espírito no dia. No metrô não tinha musiquinha ambiente, no ônibus tinha. E quase sempre tocava “Tempo Rei” durante o trajeto. Achava interessante a coincidência.

Foi bem mais de uma vez. Não fosse, eu não lembraria disso hoje, trinta anos depois. É que tocou “Tempo Rei” na rádio, enquanto eu fazia panquecas para o almoço.

Eu estava sempre cansada, por ter me levantado antes das seis e absorvido mais conteúdo escolar do que poderia dar conta. Carregando as apostilas abarrotadas de informações que, acreditava, me fariam entrar na USP, eu escolhia um assento perto da janela e sonhava com o almoço me esperando em casa. Quando minha mãe estava bem, às vezes tinha panquecas.

No ônibus, entre um bocejo e outro, eu acompanhava o Gil.

“Ensinai-me, ó Pai, o que eu ainda não sei”, eu pedia, em especial, para aquela parte dos logaritmos e exponenciais que costumava cair no vestibular. Nunca gostei dos números, nem eles de mim.

“Não se iludam, não me iludo”. A USP não era para qualquer um. E eu era, para todos os efeitos, qualquer uma. Não entrei. Só quarenta e um pontos na primeira fase da Fuvest. O tempo mostrou-me que isso, na verdade, não tinha tanta importância assim.

No percurso até a Praça da Sé, nada de Pães de Açúcar ou Corcovados. No ponto final, porém, uma respeitável – e um pouco esverdeada – Catedral da Sé. São Paulo nasceu ali. O meu marco zero foi na maternidade da Beneficência Portuguesa, no Paraíso. Perto do cursinho, aliás. O tempo é também rei do espaço, transformando as velhas formas do viver: levou-me para estudar, depois de grande, tão perto de onde nasci.

Da Sé eu ainda tomava outra condução até em casa. Um ônibus elétrico, que passava pela Mooca. Nesse, não tinha som ambiente. Ficávamos somente eu e meu pensamento, mesmo fundamento singular. E, claro, as apostilas pesando no colo. Tanta química. Para quê, ó Pai? Quase sempre, os cabos do ônibus escapavam dos fios elétricos suspensos no ar. O motorista parava onde fosse. Quem viesse atrás, paciência. O cobrador descia sem pressa, ajeitava os cabos, voltava ao seu posto, o motorista tocava em frente. Quando chovia eu ficava com pena do cobrador.

“Tudo permanecerá do jeito que tem sido” parece ser a máxima dessas três décadas: o cursinho ainda funciona no mesmo endereço. A estação Vergueiro do metrô, idem. Ainda há a linha de ônibus que tocava Gilberto Gil (se mantém a música ambiente, não sei). Praça da Sé e Catedral, claro, incólumes. Fucei o street view do Google e pasmei: o elétrico que me deixava a dois quarteirões de casa resiste no mesmo ponto e a linha sequer mudou o número.

Na minha vida, no entanto, não foi bem assim. Nesses trinta anos, que é tempo pra chuchu, pouca coisa permaneceu. Ninguém mais mora na nossa velha casa, exceto os fantasmas. Eu saí de São Paulo. Não vivo mais do meu diploma de bacharel em comunicação social. Não ando mais de ônibus, nem de metrô. Não tenho mais cabelos até a cintura, nem ilusões acerca do universo: “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”. Não sei onde estão meus amigos do cursinho. Minha mãe não faz mais panquecas. E minhas ideias, no geral, são como os cabos do velho ônibus elétrico: às vezes, saem do lugar. Quando isso acontece, lá vou eu, sob sol ou chuva, ajeitá-las novamente. Ao menos, tentar.

Se o tempo é rei, a valentia é rainha.

Piolho

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A aula mal havia começado e a diretora entrou na sala, anunciando: a professora iria olhar a cabeça de todo mundo. Piolho. A turma se remexeu nas carteiras, o burburinho começou. Congelei, a cabeça começou a coçar. E se eu estivesse com piolho? Seria denunciada, ali, na frente de trinta crianças?

A professora chamou um por um à sua mesa. Os minutos se transformando em horas. O sofrimento da espera era maior do que qualquer véspera de prova de matemática. Em pé, ela vistoriava as cabeças com ajuda de dois lápis, separando as melenas. E o nojo de colocar as mãos naquelas cabecinhas, sabe-se lá como eram cuidadas em casa?

Chamou a Angélica. Menina estudiosa, obediente, sempre tirava notas boas. Não tinha perfil de piolhenta. Naquele dia ela estava de banho recém-tomado, os cabelos ainda úmidos, cheirando a xampu. A professora, baseada no asseio evidente, nem prosseguiu com a inspeção e a liberou.

Minha vez. O coração pulsava forte no peito e reverberava na garganta, seca por completo; eu deveria estar vermelha como um tomate. Não era estudiosa feito a Angélica. A professora cutucou-me o couro cabeludo por completo. Mandou-me sentar. “Próximo!” – chamou. Salva, enfim.

Alguns anos depois, reclamei que a cabeça estava coçando. Mostrei à minha mãe: bingo.

Com os meninos a solução era simples: raspavam o cabelo e pronto. Mas eu tinha cabelos até a cintura, e eles eram inegociáveis. Livrar-me dos piolhos foi tarefa excruciante. Passei o dia sentada em uma cadeira no quintal, toalha nos ombros, os cabelos lambrecados de veneno fedido. Foi minha avó que, armada de pente-fino e paciência, deu início à catação, só concluída ao entardecer. A piolhada, zonza, caía sobre a toalha. Problema mesmo eram as lêndeas. Resistentes até a uma hecatombe. Era preciso puxá-las uma a uma dos fios, com as pontas dos dedos. A posterior dor de cabeça era inevitável. E eu fedi a veneno por um bom tempo.

Meus filhos pegaram piolho, uma vez. Como minha avó, bisavó deles, armei-me de pente-fino, paciência, amor e uma TV, e dispus-me à faxina capilar. Nada como três décadas de avanços tecnológicos: bastou usar neles um xampu, nem tão fedido. As lêndeas, no entanto, permanecem indestrutíveis e demandaram o método artesanal. Mas em vez da cadeira-castigo no quintal, eles assistiram desenho durante a operação. Tudo evolui.

A cada lêndea aniquilada eu lembrei dos meus piolhos do passado, e me senti primitivamente humana. Então a vida é isso. Somos os mesmos, desde sempre. Podemos ficar modernos, inventar a internet e carros que dirigem sozinhos. Cuidar uns dos outros – em ordem descendente – ainda é o ato mais ancestral de todos, justamente o que nos garante no planeta. Toda espécie bem sucedida passa pelo pente-fino do bom zelo. E não importa para onde o mundo caminhe. Sempre haverá uma mãe catando piolho nos seus filhos.

Se a minha mãe tivesse Facebook

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Se a minha mãe tivesse Facebook quando eu era criança, não sei se ela seria do tipo que tudo publica acerca de seus rebentos. As fofices, as traquinagens, as frases engraçadinhas, as caretas, as dores, as delícias. Minha mãe era do tipo reservada. Mas quem resiste?

Considerando que a internet estivesse a todo vapor nos anos 70, imaginei a timeline da dona Angelina.

Em uma tarde de 1971, entre uma receita de cuscuz e uma mensagem do Chico Xavier, ela postaria que, para conseguir me fazer almoçar naquele dia, fora me seguindo da cozinha até o portão da vila onde morávamos. Eu, quatro anos, não queria comer. E, com a estratégia, eu ia passeando, ela ia me distraindo e eu papava tudo. Minutos depois choveriam os comentários das amigas, marcando a polaridade das opiniões: “Que absurdo!”, “Que gracinha!”. Ela me proibiria de zanzar durante as refeições ou não, conforme o que lesse?

Noutro dia, faria um post-desabafo contando que, em um momento de descuido seu, eu, aos cinco, assumira o controle da velha Lanofix e simplesmente arruinara a encomenda de tricô que ela preparava, e lhe garantiria alguns trocados no final do mês. Nos comentários, a torcida para que ela conseguisse recuperar o tempo perdido, tudo ia dar certo, calma. O apoio lhe daria ânimo para recomeçar do zero?

Ela também postaria, a título de diversão, que eu, aos sete e na intenção de imitá-la, coloquei um absorvente – o velho Modess, que nem de longe lembra os ultrafinos de hoje – e saí na rua, feliz da vida, desfilando o duvidoso volume na calça. Finalizaria o post com kkkkk. Emojis boquiabertos ilustrariam o feedback?

Só não sei se publicaria, num dezembro de vacas magras, que meu presente de Papai Noel fora um xampu Johnson’s (bem mais caro e raro que o Colorama – lanolina ou ovo – de todo dia). Mas era do grandão. Afinal, era Natal.

Ademais, ela rechearia sua página com fotografias de flores e das suas bordações, vídeos de valsas, truques para limpar manchas de molho de tomate, indignações a respeito do Led Zeppelin (“Mas isso é música?”).

Só sei que se a minha mãe tivesse Facebook, eu a seguiria por toda vida.

Saudade é a linha do tempo que não volta mais.

Inquebrável

osso

Tem criança que sonha em ser super herói. Tem a que quer ir à Disney. A que deseja ter um macaco de estimação. Eu não queria nada disso. Queria quebrar o braço.

Quimera infantil, coisa besta de almejar. Achava lindo quebrar alguma parte do corpo, andar por aí de gesso, usar agulha de tricô para driblar a coceira, os amigos assinando naquela coisa que ia encardindo com o tempo.

Quis o destino, no entanto, que eu nunca quebrasse nada. Nem braço, nem perna, nem pé. Dedinho, que fosse. Nada. Fui uma criança inquebrável.

Inconformada com a minha resistência óssea, tratei de dar um jeito. “Você é do tamanho dos seus sonhos”, cunhariam os livros de autoajuda, décadas depois.

Assim que a aula terminou, fui sozinha até o Depósito São Pedro, loja de material de construção pertinho de casa, na Mooca. Pousando meus trocados sobre o balcão, anunciei: “Preciso de gesso”.

Voltei para casa com um quilo do material e refugiei-me no quintal. Só meus avós estavam em casa, cuidando de seus afazeres, e não desconfiaram da arte. Procedi com a mistura de pó e água. Escolhi o braço: esquerdo. Caprichei na modelagem, limpa daqui, ajeita dali. Em quinze minutos o sonho estava realizado: eu tinha um senhor gesso, que ia da mão ao cotovelo.

Quando me perguntassem o que havia acontecido, eu teria que inventar uma história dramática, que caíra da bicicleta, que rolara as escadas, que fora atropelada. Com a significativa vantagem (só eu saberia) de não ter sentido dor, nem de ter havido pânico, chororô, corre-corre ao pronto-socorro.

Improvisei a tipoia com uma atadura encontrada no armário do banheiro, ensaiei alguns gemidos e fiquei esperando o resto da família chegar. Já imaginava o dia seguinte, na escola, sucesso total. O braço esquerdo não fora escolhido à toa; assim eu conseguiria fazer as lições.

Foi quando o portão se abriu. Era minha mãe. Plantei-me na porta e encenei ligeiro drama. Ela, de longe e no susto, levou as mãos à cabeça, Meu Deus! À medida que subia as escadas, querendo saber que diabos eu aprontara, eu me enrolava na narrativa, e seu susto logo se desfez.

Em menos de um minuto eu fora pilhada na farsa. Mãe é mãe, claro. Mas meu trabalho na arte do gesso era, digamos, amador. Rimos. E precisei tirar aquela porcaria antes do jantar.

Hoje lembrei do Depósito São Pedro e da minha mãe. Os dois, há tempos, encerraram as atividades por aqui.

Eu sigo inquebrável. Assim como minhas memórias. Meus sonhos, hoje, são outros. E, pensando bem: eu já quis, sim, ter um macaco.

Para o Zé.

Sobre a carta para a Maria

Mês passado eu arrumava umas coisas aqui em casa – livros, papéis, fotografias antigas – e encontrei uma carta da minha mãe para a Maria, parente nossa. No cabeçalho: “São Paulo, 17 de dezembro de 1980”.

Ontem foi 17 de dezembro de 2015.

Não sei se ela chegou a enviá-la. Pode ser que sim, e a que encontrei aqui, escrita em três páginas de papel almaço pautado, seja o rascunho, já que tem uma pequena rasura. Pode ser que tenha até recebido resposta. Pode ser também que ela, por algum motivo, não a tenha enviado. Desistiu, esqueceu, escreveu outra. E essa acabou ficando guardada. Inexplicavelmente intacta, resistindo ao tempo, às mudanças e às traças.

Ainda se usa papel almaço?

Quem ainda escreve cartas de três páginas?

E quem ainda escreve cartas, ainda as passa a limpo?

Sei que não se deve ler a correspondência dos outros. Mas, a esta altura e neste caso, há de ser um crime prescrito, e perdoado. Eu devorei a carta.

Dona Angelina fez só o primário, mas dominava um português acima da média para a pouca formação. Ela gostava de ler. A leitura geralmente salva da falta de escola.

A carta é longa. Ela vai contando como estão as coisas em casa, chora as pitangas, desabafa. Mas dedica um parágrafo para cada filho – meus irmãos e eu – a fim de atualizá-la das boas notícias. Está lá que passei de ano e fui para a oitava série. Eu tinha treze. Hoje, tenho quarenta e oito. Apenas quatro a mais que ela, quando escreveu a carta. E a diferença entre a vida dela e a minha é abissal. A começar pelas cartas: eu não as escrevo mais; confio minha correspondência – afetiva, social, profissional – aos comunicadores instantâneos. Como pode, entre uma geração e outra, caber tanta mudança?

Ela segue a narrativa carinhosa, manda lembranças para todos, um por um, deseja feliz Natal. Não me recordo se elas se viram nos sete breves anos que minha mãe teria pela frente.

Mas a carta não é minha, pertence à Maria. Não fazia mais sentido mantê-la. Então ontem, trinta e cinco anos depois de minha mãe tê-la escrito (e a enviado, ou não, talvez nunca saiba), eu a coloquei nos Correios. Fiz questão de aguardar a data exata; assim, o círculo do tempo se completará. Chegará nos próximos dias, enfim, à destinatária, como chegaria (chegou?) em 1980. Resolvi colocar uma cartinha minha junto, para que a Maria entenda a história toda. Aproveitei e a atualizei – como fez minha mãe naquele dia – das notícias de cá; há muito também não nos vemos.

Maria vai receber uma carta (inédita ou não) dentro da outra. Da pessoa que saiu de dentro da Angelina. O mundo é cheio disso, se a gente reparar bem. Tudo contém e está contido.

No final das contas, a vida é uma espécie de carta de nós para nós mesmos. A autocarta que está, a todo momento, sendo escrita e entregue. Nem sempre lida direito. Raramente respondida a contento.

As mangas

Foto: Simon D

Quando minha mãe era internada, o que acontecia com alguma frequência, eu a visitava à tarde. Sempre levava uma coisinha para ela comer. Ela gostava de manga, quase nunca serviam no hospital. E eu sabia por que. Manga é uma delícia, mas dá trabalho descascar e cortar. Podia imaginar as reuniões semanais do pessoal da cozinha com a nutricionista, discutindo o cardápio dos pacientes: “Manga, não”.

Eu preparava a manga em cubinhos cortados à perfeição, não sem reclamar um pouco. Ajeitava-os num pote de plástico, pegava ônibus e metrô até o hospital. Cumpria minha missão filial, muitas vezes, cansada pelas aulas da manhã. Ela comia com a melhor boca do mundo, e eu ficava com remorso.

Papar uma banana, por exemplo, é simples. Já a manga envolve processo sofisticado, requer habilidade, tempo, fé, determinação. Envolve objetos, como faca e prato. Travar luta inglória em busca do melhor aproveitamento da fruta, posto que a polpa ao redor do caroço é ingerenciável. Lavar as mãos, pois a meleca é certa. E só então desfrutá-la. Comer manga no pé, se lambuzando, é delírio romântico. Vale para quem está em férias no sítio e tem estoque extra de tempo e fio dental. Banana não; é pá-pum.

Quando meus filhos pedem manga para o lanchinho, a preguiça me invade. Por que não escolhem os morangos, as uvas, essas frutas que nasceram prontas para a degustação? Banana, por que não? Respiro e, não sem reclamar um tanto, cumpro minha missão maternal. Preparo-a em cubinhos, cortados à perfeição. Quando os vejo, com a melhor boca do mundo, fico com remorso.

Há um caule invisível (porém encorpado) ligando culpa e amor.

No ano em que minha mãe morreu passou a novela “O direito de amar”. Ela gostava de assistir. Ainda bem que tinha TV no quarto do hospital. A música de abertura era “Iluminados”, do Ivan Lins. A letra diz assim: “O amor tem feito coisas, Que até mesmo Deus duvida, Já curou desenganados…”

O amor não curou a minha mãe. Mas ela comeu as mangas que pôde. Só não deu tempo de ela ver o final da novela.

Façam manga cortadinha para suas mães.

O parto da Maria-Fedida

Bem que vi, dia desses, uma porção de ovinhos grudados na parede de fora. Pareciam sagu. Sem saber de que eram, deixei-os por ali. Dei palpite: “é de aranha”. Com tanta planta no condomínio, o padrão de vida delas aqui é bom.

Memorizei o local, para dar uma espiadinha de vez em quando. Chegava bem perto, e lá estavam eles. Foram mudando de cor, numa animada paleta biológica. Primeiro, ligeiramente perolados. Depois, cinzentos. Então ficaram transparentes e pude ver os bebês, preto-alaranjados, em formação. Mamãe-inseto nem precisa de ultrassom.

Esqueci-me e descontinuei a observação. Quando lembrei, os ovinhos já haviam eclodido, estavam secos e transparentes. Ao redor, oito dos recém-nascidos. De preto-alaranjados, eles tornaram-se cinza-claro. Não levo jeito para entomóloga, então continuei chamando tudo de aranhinha.

***

Hoje cheguei do supermercado e vi uma Maria-Fedida na parede, perto da porta. Sempre tem uma no pedaço. É o terror da criançada, nunca compreendi o escarcéu. Tem o fedozinho, é verdade, mas ela não fede em tempo integral. Se a deixam quieta em seus afazeres de artrópode, ela não empesteia. Gente só fica catinguenta se transpirar demais, se não tomar banho. Maria-Fedida só cheira mal se ameaçada ou atacada. Tudo na vida tem causa e efeito.

Dizem que Maria-Fedida é praga, que arruína plantação, que isso, que aquilo. Mas praga depende do ponto de vista, e isso nenhum antropocentrista diz.

Para as focas, homens são pragas. Elas só não sabem, coitadas, como acabar com os homens. Soubessem, fariam tudo para espantar os que vão todo ano caçá-las.

O antibiótico é a praga, no referencial de uma bactéria. O veneno que aniquila sua população. Soubessem usar a internet, as bactérias fariam blogs e tutoriais com dicas sobre “como acabar com as pessoas”.

Na história contada do mundo, mais importante que o fato, é o ponto de vista.

Então vi a Maria-Fedida perto da porta. Estava quietinha; pousei as compras no chão e a encarei. Seu corpo lembra um pentágono. Se fosse mulher, a Maria-Fedida seria essas que têm o ombro mais largo que o quadril. Quase todas as minhas tias eram assim.

De repente, ela bota um ovo! Um não, dois. Dois? Não, três. Espera, quatro. Cinco. Seis.

Pacientemente, a Maria-Fedida pariu seus filhos. Então era ela (ou alguma colega) que andava fazendo minhas paredes de maternidade, esse tempo todo. Permaneci imóvel e em silêncio, guardando distância, de modo a não atrapalhá-la. Em meus dois partos, ninguém me encheu o saco, nem ficou me cutucando. Achei respeitoso fazer isso por ela.

Corri por as compras na cozinha e voltei. Pude ainda acompanhar o décimo-quarto e último ovinho. Trabalho feito, ela se mandou. Nada como o parto natural.

Fiquei olhando os quatorze embriões no vão da alvenaria, sozinhos no mundo. Eles agora só têm um ao outro e, já já, nem isso. Seguirão suas vidas de Mariazinhas-Fedidas e será cada um por si, o Deus-Inseto por todos.

E eu, que nunca assistira ao parto de uma Maria-Fedida, lembrei dos dois que vivi. E se não fôssemos a supremacia intelectual do planeta, e outra espécie superior se pusesse a me observar enquanto eu dava à luz? E se rissem de mim? E se resolvessem acabar comigo num piparote? Tive, naquela hora, compaixão por sua vulnerabilidade e certa inveja de sua biologia tão simples e sem firula.

Ela, que também é Maria. Que também é mãe.

A Copa do meu mundo

Arte: Juliana Alia
Arte: Juliana Alia

Fecho os olhos: tenho três anos, recém-completos. Minha mãe estourando pipoca na panela. Do meu ponto de vista, o fogão é mais alto que eu. Ela desliga o fogo, transfere a pipoca para uma vasilha, pulveriza o sal, encosta a porta que dá para o quintal e me chama, “Vamos?”. Para a sala, nos juntar aos outros. A partida vai começar. Ou já começou. Ou está no meio. No fim. Não importa.

Copa de 70, México.

Não sei se a pipoca antológica foi no dia do primeiro jogo, quatro gols em cima da Tchecoslováquia. Ou se foi quando fizemos um a zero contra a Inglaterra. Ou no dia dos três a dois na Romênia. Pode ser que tenha sido quando o Peru perdeu da gente por quatro a dois, ou quando vencemos o Uruguai por três a um. Quem sabe, foi no dia da épica final: quatro a um na mais-que-bela Itália, e a Jules Rimet era nossa.

Só sei que é na cozinha que moram as melhores lembranças.

Hoje o Brasil enfrenta o México. Não tem Pelé, nem Jairzinho, nem Gerson, nem Tostão, nem Rivelino. Tem outros. E tem pipoca, também. Pipoca é quando o milho faz gol.

Eu tinha uma Susi Mexicana. Susi é a irmã brasileira da Barbie, nascida no final dos anos sessenta, e já falecida. Ela vinha com uma roupa típica e tinha o pescoço mais longo que das outras Susis. Cresci achando que todas as mexicanas eram pescoçudas. Nunca fui ao México. Mas li que havia pipoca nas pirâmides astecas, há quatro mil anos.

Esta é a décima segunda copa da minha vida. Há sete copas sou órfã da pipoca materna. E o mundo é tão redondo que hoje, n’alguma cozinha deste país, haverá uma menina de três anos aguardando sua mãe terminar a pipoca, não mais de panela, mas de microondas. Ela vai transferi-la para uma vasilha, pulverizar o sal, encostar a porta da cozinha que dá para o quintal e chamá-la, “Vamos?”. Ela irá.

Tem sempre uma partida de futebol começando.

Sete dias

arte: juliana moraes
arte: juliana moraes

Ontem fui à missa da mãe de minha amiga. Já são sete dias, na contagem terrena, desde que ela partiu. Somos semanais. E precisamos das missas para pontuar as chegadas, as partidas e os durantes da vida. O que é uma missa, se não uma conversa, coletiva e no viva-voz, com Deus?

Antes de ontem, conversamos longamente, ela e eu. Ela falou das mudanças que a vida quer que ela dê conta, dos aprendizados com pai e mãe, esses sujeitos compostos, determinados e nada ocultos da nossa história. Queixou-se do inferno astral – faz anos semana que vem. A morte é um tipo de aniversário.

Cheguei atrasada, a missa já havia começado. Sentei-me atrás, em silêncio. Escaneei o salão, à procura da minha amiga. Logo avistei seu cabelão anelado, no primeiro banco, à esquerda. Durante a celebração, foram suas costas que vi. Não soube de seus olhos, se secos ou molhados. De costas, ninguém é alegre ou triste.

(É da fachada que todos cuidam mais: gravata, colar, estampas, enfeites. Adereços, assim como emoções, estão invariavelmente na parte da frente. Vivemos todos em uma imensa igreja, porém. E também somos demoradamente vistos por trás…)

Quando eu era nova, nas missas, queria ser como as pessoas que sabiam todos os ritos, faziam os movimentos na hora certa, conheciam as rezas, cantavam as músicas sem precisar olhar no papelzinho. Eu, semianalfabeta católica,  nunca sabia o que fazer: em que hora deveria me levantar ou erguer as mãos ou fazer o sinal da cruz; desconhecia todos os refrões e não entendia por que não podia mastigar a hóstia, mas esperar que aquela massa insípida e redonda se dissolvesse por completo em minha boca. Preocupada em acompanhar a coreografia e não errar, não me atinha à fala do padre. ‘Colava’ de quem estivesse ao meu lado. Mesmo assim, estava sempre perdida, deslocada, atrasada. Ontem, soube: ainda estou.

Sempre quis saber se a pessoa que se foi assiste sua própria missa. Encarapitada n’alguma imagem de santo, zanzando pela nave da igreja ou flutuando feito nuvem ao lado de quem ficou. Pensei no dia, lá na frente, em que os amigos de meus filhos comparecerão à minha missa de sétimo dia, como fiz ontem. Que saberão, os amigos, de mim? Eu pouco sei da mãe da minha amiga. Eles não saberão nada. Não saberão, inclusive, como é gostoso encarapitar-se n’alguma imagem de santo, zanzar pela nave da igreja e flutuar feito nuvem ao lado de quem ficou.

Para Monica

Pé de gente

foto-montagem / arquivo pessoal

Sessão de RPG. Estou deitada, meus pés suspensos. Atados por uma espécie de cinto, ligado à uma roldana que os mantêm no ar. Sozinha na sala, encaro-os por dez minutos, como parte do exercício que promete reestruturar globalmente minha postura. Por dez minutos, não são as unhas cor de vinho ou a gérbera tatuada em preto e branco no pé esquerdo que escaneio. O que procuro, neles, são os pés dos meus filhos. Que arquivos genéticos, dos meus, transmiti aos deles?

Beijei, de manhãzinha e à exaustão, dois pares de pés. Os dele, caídos fora do edredon amarfanhado, ao lado da tartaruga azul de pelúcia. Os dela, gentilmente alinhados com o gato negro de verdade. Aproveitei e medi, conferi, cheirei os minipés que ajudei a construir, célula por célula. Namorei-lhes a geografia já tão decorada. Varri-lhes as solas, descobri por onde andaram e imaginei por onde ainda andarão. Levei nisso tudo bem menos que dez minutos; o passo do tempo no quarto deles é outro. Agi com cautela e silêncio, para que não acordassem. É a melhor hora (mas não única) do dia para a adoração. O raro momento em que seus pés estão quietos. A inquietude inviabiliza o fetiche maternal.

O fisioterapeuta reaparece, quer saber se está tudo bem. Não, não está. Não há um só detalhe nos pés dos meus filhos que tenham puxado aos meus. Nem a unha do mindinho, nem o formato do dedão, nada. É tudo diferente, sabe? – lamento em pensamento. Não, ele não sabe. Ajeita qualquer coisa na roldana e sai novamente, precisa ver o paciente da outra sala.

Beijo mais os pés de meus filhos que seus rostos, será? Os pés que já habitaram meu ventre – cada par a seu tempo – , muitas vezes passeando sob minhas costelas, me fazendo rir em plena reunião de diretoria. Cujos retratos ilustram suas carteiras de saúde, carinhosamente mantidas desde seus nascimentos: horário em que vieram ao mundo, tipo sanguíneo, primeiras observações médicas, “RN a termo”, notas do teste de Apgar, evolução de pesos x alturas, vacinas que tomaram. A racionalidade de um filho, enfim. No documento, fundamental mesmo é o pezinho carimbado na contracapa, a primeira pegada, o marco zero de suas biografias em progresso. Reparo no desenho que forma a planta de seus pés. Há uma espécie de árvore (genealógica?) desenhada ali, posso ver suas ramificações. São legítimos pés de gente, a me dizer que a história não para por aqui. E se não carregam de mim os traços externos, hão de levar dentro de si, por onde caminharem, algo de mim. Sobretudo, meus beijos exagerados.

Casal

Apanho o xampu, cabelos curtos precisam d’um pouco só. A primeira ensaboada é “pra tirar o grosso” – quem falava assim? Modo de dizer, em cabelo lavado todo santo dia sujeira nenhuma tasca. Repito a operação para melhores resultados. O rótulo que diz.

Volto o frasco ao seu lugar de costume, no canto, mais à mão. Reparo que o do condicionador, ao lado, com capacidade para os mesmos duzentos e cinquenta mililitros, está quase cheio. O do xampu, quase vazio. Não, não é papo sobre otimismo e pessimismo. É papo de amor, bicho.

Xampu e condicionador são, essencialmente, um casal. Apesar de vendidos separadamente, formam uma unidade, têm ingredientes ativos semelhantes. São complementares. Foram feitos – assim espera o fabricante – para habitar o mesmo lar, box, banheira, pia, frasqueira.

Eu gosto de comprar o casal. Eles não brigam, deixam o mesmo perfume nos meus cabelos. E eu sigo acreditando nos melhores resultados. Mas eles nunca findam juntos. O xampu morre antes. O condicionador sempre fica viúvo.

Minha mãe se foi antes do meu pai. E ela não estava, digamos, nem pela metade. Será que eu a usei demais, mais que a meu pai? Soubesse, eu a teria a usado menos, para que durasse mais. Meu pai continua lá. Quase vazio, mas lá.

Pai e mãe, apesar de nascidos e crescidos separadamente, aos olhos dos filhos, formam uma unidade, têm ingredientes ativos semelhantes. São complementares. Foram feitos – assim esperam os filhos – para habitar o mesmo lar, para sempre. O que quase nunca acontece, por separação ou morte. Separação é quando o amor não faz mais espuma. Viuvez é quando o banho acaba.

Meu pai nunca quis se casar de novo. Permanecer viúvo, mais que de amor, é um ato de coragem. A saudade, às vezes, arde nos olhos.

Coloquei um xampu novo ao lado do velho condicionador; salvei-o da solidão. Porém, tal filha mimada, estranhei o casal logo de cara. Não são nada parecidos – apesar dos benditos ingredientes ativos semelhantes. Vamos ver como é que os dois, juntos, se saem. Porque não tem nada pior que rebeldia. Nem de filho, nem de cabelo.

O tempero da minha mãe

Arte: Mariana Leme
Arte: Mariana Leme

Junte cebola, alho, cheiro verde, óleo e sal. Ponha tudo no liquidificador e bata bem. Despeje a mistura em vidros vazios, tampe-os e leve-os à geladeira. Use para refogar qualquer coisa. Em cinco ingredientes, eis a receita das minhas lembranças. Rendimento: uma infância inteira.

Dona Angelina preparava o próprio tempero. Para economizar tempo e dinheiro – talvez mais dinheiro que tempo. Lembro do óleo aquecendo na panela, afoito, esperando pelo tempero, que vinha em generosa colherada. Quando eles se encontravam, era uma farra, chiiiiiii. A casa inteira ficava sabendo do abraço dos dois. Logo em seguida, chegavam os grãos de arroz, lavados e escorridos. Noutra panela, outra farra, agora com centenas de feijões recém-cozidos na pressão. Era sempre festa no fogão da minha mãe. Na cozinha, sua oração. E o tempero, artesanal, era sua pegada. O rastro saboroso pontuando o alimento que nos fez crescer, feito planta.

Bem que tento. Mas é impossível reproduzir o tempero dela. Por mais que eu siga o modo de fazer (afinal, cebola é cebola, alho é alho), falta um ingrediente etéreo, invisível, secreto. Falta ela.

Liquidifiquei minhas recordações no turbilhão impiedoso do tempo. Misturei tudo, Natal com Páscoa, aniversário com Dia das Crianças. Mas o aroma do tempero dela está bem guardado no nariz da minha memória. De vez em quando, ele surge d’algum vento brincalhão. Inspiro o quanto posso, para tentar retê-lo e guardá-lo num vidro bem tampado, à prova de despedidas. Se eu fosse descrever a cor desse cheiro, seria verde.

Será que meus filhos terão alguma reminiscência da maneira como tempero nossa comida? A gente nunca sabe o momento, exato ou inexato, em que vai entrar para o rol de lembranças de alguém. Qualquer ação ou atitude podem virar protagonistas; preciso me lembrar disso, para caprichar mais nas coisas.

Será que, n’algum momento da vida, eles tentarão recuperar algum sabor de suas infâncias? Experimentarão, quando grandes, algo que não tenha sido feito por mim, fecharão os olhos por alguns segundos e se pegarão dizendo “Parece a torta de legumes da mamãe” ou “É igual ao creme de abóbora que ela fazia”?

No fundo, a gente quer é ser lembrada. E o alimento é a memória afetiva mais forte que existe. É o primeiro presente que ganhamos, ao nascer. Onde fica a boca do mundo?

Tantas coisas faço igual à minha mãe, e nem sei que faço. É a herança genética e silenciosa, a perpetuar a nossa espécie e algum tipo de amor. Talvez eu dobre roupas como ela, talvez eu lave pratos como ela, talvez eu abotoe um vestido como ela, talvez eu tenha um jeito de mexer nos cabelos como ela. Talvez até meu tempero guarde em seu DNA a centelha materna. Não podemos mais medir nossas semelhanças em tempo real. É uma constatação, não um lamento.

Há quatro vidros repletos de tempero na geladeira, fiz no comecinho do mês. Ficou bom. Mas não é igual ao dela. É idêntico a mim. Sou eu, deixando a minha pegada no caminho da minha gente.

Perdidos

O menino com camiseta de Homem Aranha olha ao redor e não reconhece os rostos que passam apressados. Dá meia-volta e confirma: está perdido. Nem seus superpoderes podem lhe acudir naquele momento. Trata de fazer, então, a única coisa para a qual está verdadeiramente preparado: abrir o berreiro.

Eu não era criança de me perder na rua, no supermercado, na praia. Nunca deixei minha mãe maluca, procurando desesperadamente por mim na multidão. Também nunca fui esquecida dentro de carro ou na escola depois da aula. É experiência não vivida, faltante em meu portfólio infantil.

A moça gorda e cheia de sacolas para e conversa com o garoto. Tenta acalmá-lo e, com a mão livre, faz-lhe um carinho nos cabelos. O clone de Spider Man continua a chorar. Pessoas se juntam à sua volta, fazem-lhe a guarda, querem pegá-lo no colo. Mais ou menos como no segundo filme da série, numa emblemática inversão de papéis entre protetor e protegido, quando Peter Parker conta com a ajuda dos passageiros do metrô para salvá-lo do inimigo.

(À gente grande não é facultado perder-se. Gente crescida é obrigada a saber voltar para casa. Perdeu o direito fundamental de não saber onde está, não pode ser anunciada em alto-falante. Não está autorizada a recorrer ao segurança do shopping e pedir ajuda. Quem virá lhe buscar? Ao adulto perdido não cabe compaixão; ao contrário, culpa-se. Ninguém se comove com o quarentão sem rumo, que não sabe o que quer ser mesmo já tendo crescido. Quem afaga cabeça de marmanjo que não tem ideia do que fazer da vida? Quem dá colo aos perdidos no tempo e no espaço?)

A Dona Aranha não vem pelas paredes, mas surge no final do corredor, com a aranha-caçula nos braços, ralhando em público com o mais velho. Que que o Marcus Vinícius tinha que ter parado para ver a vitrine com o Fusca feito de Lego? Ela continuou andando, achando que ele a seguia. Mas não, foi coisa de minuto, “Ele ainda me mata do coração”. Não enquanto ela ainda conseguir ativar sua teia materna, invisível e poderosa.

Mais uma identidade secreta revelada. Se não está fácil para super-herói, imagine para nós.

Crônica de minuto #48

Quando fizemos o primeiro ultrassom do Luca, a médica disse que ele nasceria, provavelmente, entre os dias 24 e 29 de dezembro. Como mãe, minha primeira ordem foi: “Não nasça nesses dias, meu filho”. Falei-lhe sobre a forte concorrência com a festa de aniversário do Menino Jesus, a enorme possibilidade de todos os seus amigos estarem viajando nessa época etc. Ele, por garantia, obedeceu. E levou tão a sério o que eu dissera, que foi preciso uma cesárea no Dia de Reis. O garoto não queria saber de vir ao mundo.

Quando fizemos o primeiro ultrassom da Nina, a médica disse que a data provável para o parto seria 16 de outubro. Por coincidência, dia do aniversário do pai – que abriu um sorrisão, inaugurando a torcida para que a previsão se concretizasse. Nem foi preciso marcar com a obstetra; a caçula chegou, espontaneamente, na data desejada. Será que os dois combinaram?

Hoje, Luca finge não me ouvir quando lhe peço para tomar banho e arrumar seu quarto. Nina se recusa a comer a salada e recolher os brinquedos.

Lembrei-me de uma passagem d’O Pequeno Príncipe. Disse o rei, que gostava de dar ordens razoáveis e cumpríveis: “Se eu ordenasse que um general se transformasse em gaivota, e o general não me obedecesse, a culpa não seria do general, seria minha”.

O rei está certo. Mas ele não disse nada sobre banhos, saladas e arrumações de quarto.

A mães e pais não cabe tanta razoabilidade assim. Nosso reinado é outro.

Memórias de uma boleira

Arte: Marie W.
Arte: Marie W.

Eu fazia bolo para vender na escola. Não lembro como comecei, nem por que parei.

Voltava da aula, tocava meus afazeres de estudante de segundo grau e me punha a preparar o bolo do dia seguinte. Com ingredientes de sobra – nada como uma vendinha na família – , eu buscava receitas no caderno da minha mãe e, vez em quando, inovava. Bolo de maracujá, bolo de café. O preferido da freguesia, no entanto, era o previsível e correto cenoura com chocolate. Aguardava esfriar, desenformava, partia em porções individuais, embalava. Aprimorei o negócio, passei a usar forminhas de papel. Fui precursora dos cupcakes e não sabia.

Manhã raiada, cadernos, livros, régua T (o curso era Edificações) e uma grande sacola tomavam o ônibus comigo. Ora rumo à Praça do Correio, ora à Praça da Sé. De lá, o metrô até a Estação da Luz. Descia em frente ao Batalhão de Polícia de Choque, a icônica Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), que fica junto ao Regimento da Cavalaria 9 de Julho. Mais seiscentos metros a pé na rua Jorge Miranda, em meio aos cavalos em treinamento e seus cocôs deixados pelo asfalto, até meu destino, o Liceu de Artes e Ofícios.

O sinal do lanche tocava e eu assumia meu posto no fundo da sala. Abria o tupperware e vendia cada pedaço por um cruzeiro e cinquenta centavos. Não fazia planilha, posto que não havia despesa com farinha, nem ovos ou açúcar. Nem com o gás que alimentava o velho forno da minha mãe. Ou seja, lucro de cem por cento; uma utopia para qualquer empreendedor. Chegava a vender quarenta pedaços num dia. Considerando que houve época de bolo de segunda a sexta, em uma semana o faturamento líquido chegava a trezentos cruzeiros. Não tenho ideia de quanto seria em dinheiro de hoje. Certamente, nada mau para uma adolescente de dezesseis anos.

***

Sábado fiz bolo para as crianças. Um pandeló tão simples e eles lamberam os beiços. (Embora meu veredicto tenha sido implacável: “Ih, embatumou”.) Passei o final de semana com uma secreta vergonha, um engasgado arrependimento. Conto nos dedos de uma mão as vezes que fiz bolo ou algum outro doce para meus filhos. Rendo-me, invariavelmente, aos prontos da padaria. O que ganho em tempo, perco em sorriso. A conta não fecha.

Outrora boleira semiprofissional, meu destino, eu sei, é ser boleira afetiva. Conheço o preço de cada clara batida em neve e cada elogio; não viso mais lucro. O único prejuízo foi privá-los de quitute de mãe. Embatumado ou não, vale pelo resto da vida – deles e minha.

Agora, faço bolo de graça e acho graça. Estabeleço um cartaz imaginário e visito minha própria cozinha.

Um outro ensaio sobre a cegueira

Arte: Ade McOran-Campbell
Arte: Ade McOran-Campbell

Ela se aproxima, pelo canto, da mesa onde estão os autores. Quer saber do livro que está sendo lançado naquela tarde, abre a torneira de perguntas. Um deles, o ilustrador, responde ao seu questionário enquanto cria um desenho-autógrafo para alguém no outro canto da mesa. Ela é desenvolta, articulada, interessada, faminta. Sem acanhamentos, acha engraçado o tema do livro. Dezesseis anos, talvez? Conta que também escreve e já tem um livro pronto, quer dicas para publicá-lo. Fala pelos cotovelos. Ajeita os cabelos. Encara o nada enquanto ouve as respostas. Tateia tudo que há na grande mesa. Ela é cega. Ou quase.

Só estamos acostumados aos cegos silenciosos.

Também tenho minha fome e vou até o café da livraria, “Tem bolo de quê?”. Escolho o de fubá, maçã e canela, mais um espresso. Em poucos instantes, ela aparece. Atravessa o salão – com a mesma tranquilidade com que, há pouco, sabatinara os autores – e chama pela mãe. A mãe, de uma das mesas, emite qualquer sinal que a garota compreende. Seu sistema de posição global é afiado. Caminha até ela; a mãe não se levanta para guiá-la. É seu jeito de conjugar o verbo proteger. Ela senta-se. A mãe aproxima seu rosto do dela, segura-o entre as mãos e, num carinho além-materno, a beija. Tudo, então, se explica: a desinibição, a perguntação, a apropriação do ambiente, o livro pronto.

Eu, cegada pelos livros ao redor, para explicar o que vejo, só faço pensar em música. Deve ser porque para ouvir não é preciso olhos de ver. Nem de ler.

Primeiro vem o Sting, que não cantou isso pensando em mães, mas cabe:

“if you love somebody, set them free”

Depois a Marina Lima, que também não cantou isso pensando em filhos, mas cabe:

“guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la; em cofre não se guarda nada; em cofre, perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la. Isto é: iluminá-la ou ser por ela iluminado”

Do que será o livro que escreveu?

Mãe e filha se levantam, pagam a conta. “Dos cegos do castelo”, erguido em torres de papel, elas se despedem. E vão.

Das coisas que não faço

Arte: Leszek Pietrzak

Dentre as coisas que minha mãe fazia para mim, no tempo em que eu era criança pequena e também quando virei criança crescida, há várias que não perpetuo com meus filhos, como seria natural. É como quebrar a corrente, furar o comboio afetivo, interromper a matrioska. Às vezes, me cobro. Outras, nem tanto. É meu jeito de combinar passado e presente.

Não faço bolos para meus filhos. Em casa sempre havia um: nêga-maluca, pão-de-ló, bolo com recheio, bolo sem recheio, bolo para o chá, bolo genérico, bolo de qualquer coisa. Tinha o tal do bolo-coelho, famoso na vizinhança e entre os familiares. Feito sob encomenda, demorava um tempão para ficar pronto. Lembro do seu caderno de receitas com o esquema para confeccioná-lo, passo a passo, e uma ilustração feita à mão do orelhudo. Receitas também são uma espécie de desenho. Hoje, vitimada pelo tempo arisco e seduzida pela conveniência do bolo pronto, recorro à padaria e escolho um, embalado em isopor fácil, sem assadeira para lavar depois. Não me lembro mais do ronco da batedeira. Aliás, não tenho batedeira. Raspar restinho de massa na tigela é apenas uma doce, cristalizada e antiga lembrança. Nem sei mais o ponto da clara em neve. Não fiz nenhum dos bolos de aniversário dos meus filhos. Ao contrário de mamãe, que assinava todas as produções culinárias, festivas e não-festivas. O bolo pronto, vá lá,  é bom. Mas é bolo sem história, sem certidão de nascimento, nem RG. Não tem signo. Dia desses, o mais mais velho comentou, com expressiva animação, o bolo que comera na casa da vizinha. Tinha gosto de mãe.

Não faço roupas para meus filhos. Mamãe costurava, tricotava e crochetava para nós. O guarda-roupa dos meus vem unicamente das lojas. Quando a caçula soube que eu andava tendo aulas de corte e costura, encomendou uma saia igualzinha à que eu acabara de fazer para mim. “Até aqui, mãe”, disse ela, marcando com a mãozinha a altura do joelho. Ainda não fiz. Devo-lhe isso, filha. E sequer elaborei uma boa lenga-lenga para justificar a demora. É porque não tem, mesmo.

Não nado com meus filhos. Não que eu tenha tantas lembranças maternas dessas situações. Nem sei se ela gostava. Mas entra para a lista, também. Sou avessa a experiências líquidas, embora saiba nadar. Minha atitude diante das águas é limitada à contemplação, à reverência. Não careço de maiores interações, enfim. Recuso sistematicamente o convite dos pequenos para o tchibum. Ao lado de deixar crescer meus cabelos, esse é o maior desejo deles. Um dia, quem sabe. O tchibum, claro.

Das coisas que faço para meus filhos, independentes do legado parental – como desenhar com eles, passar longas horas nas livrarias, promover sessões de cócegas, cortar-lhes as unhas enquanto eles assistem TV, preparar-lhes banana amassada em forma de coração – , qual delas eles imortalizarão junto aos meus netos e qual eles quebrarão a corrente?

O futuro do pretérito, no quesito tradição, nunca será perfeito.

PS: passei a fazer bolo para meus filhos. Muitos.

Crônica de minuto #44

Nina, cinco anos, surgiu na porta. Afoita, chamou:

– Vem todo mundo ver!

Fomos, “todo mundo”, ver o que havia na rua.

No céu, um bando de pássaros fazia festa no ar. Vinte, trinta? Juntos em delicado balé aéreo, numa versão reduzida daquele fenômeno dos estorninhos na tal da “murmuration”, quando dezenas de milhares deles usam a imensidão azul para uma performance única, espontânea, breve e espetacular. Dessas de quedar bobo o mais apático dos sujeitos.

Naquele dia, não importava se eram milhares ou vinte pássaros. Meu embasbacamento foi igual.

Quando é filho, mãe aumenta tudo.

Na marra

Arte: Gustavo Peres

Nasci à fórceps.

Cresci ouvindo a história. Eu não queria – ou não conseguia – vir ao mundo. Estava em posição complicada, ninguém notara. Não tinha isso de três ultrassons durante a gestação. E não colaborei quando chegou a hora. (Queria ficar mais tempo com minha mãe. Por certo, eu já sabia que seria breve.) Veio o fórceps para ajudar. Era o que os médicos tinham à mão. Se o que vale é a intenção, devo agradecê-los. Apesar de não ter feito uma boa viagem naquele sete de maio, cheguei ao meu destino: o lado de fora. No entanto, não quis saber de respirar ou chorar, o que pôs a equipe em alerta. É a primeira e única vez que uma mãe gosta do choro do filho. Fui arroxeando, levaram-me voando para outra sala. Dona Angelina chorava, crente que sua caçula não vingara. Mas eu vim, taurina e teimosa. Longos minutos depois, voltei ao seu colo. Tudo estava bem. Era só cuidar dos meus arranhões e hematomas que, contam, não eram poucos.

Minha irmã, então com cinco anos, ficou razoavelmente desapontada quando fomos apresentadas. Primeiro, porque eu era pequena demais para brincar com ela. Segundo: por conta da tintura de iodo passada em meu recém-nascido corpinho, fiquei amarela. Dias depois, quando vieram buscar mamãe e eu na maternidade, ela respirou aliviada. Eu ainda não podia brincar, mas já tinha cor de gente.

Todo mundo enfrenta seu fórceps particular, ao menos uma vez na vida. Ele vem para nos tirar do sossego, expulsar do paraíso. É o impulso vital – ainda que resistamos a ele bravamente. Por um lado, o instrumento bruto e feroz que nos arranca à força, sem dó ou compaixão, do aconchego e do enganoso nada que chamamos de conforto. Por outro, o que nos acorda, move e garante que a missão suprema seja cumprida. Ficar é bom. Ir também.

Há quem, com idade suficiente, não saia da casa dos pais de jeito nenhum. Quem troque um emprego ruim apenas quando a empresa fecha as portas. Quem vire a página só na marra. Quem viva de um passado doce, azedando o presente. Preferem o útero conhecido, ainda que estreito, ao imprevisível parto em direção ao amplo e não-sabido.

Há os que adiem, indefinidamente, seus projetos e desejos, deixando para parir as ideias depois, depois, depois. Esses encaram diariamente o Grande Fórceps a berrar: “Nasce, porra!”.

Passei a infância exibindo aos amigos, orgulhosa, a pequena veia diferente no supercílio que, de acordo com a minha imaginação (ou relato de alguém), era a marca do fórceps. Ela sumiu; a sombra da lenda, não. Demoro-me nos lugares, nasci e vivi na mesma casa por décadas. Embora tenha súbitas urgências por movimentos e novidades, geralmente não sou afeita a mudanças e também adio, quase de modo crônico, empreendimentos pessoais fundamentais e eventos banais, como encerrar a conta num banco. Contei a história do meu nascimento ao marido. Ele sorriu. E disse que isso explica muita coisa. Rimos.

A Mulher-Elástica e o lençol com elástico

Abro a embalagem dos lençóis novos. Preciso registrar o momento: será a primeira e última vez que verei o lençol de baixo, com elástico, dobrado à perfeição. Daqui para frente, ele deixará de ser uma comportada roupa de cama para se tornar um ser rebelde. Como se houvesse passado por uma mutação, um extreme makeover do seu DNA têxtil, ele adquirirá vida própria e jamais se deixará dobrar novamente do jeito que saiu da fábrica.

Indomável, o lençol com elástico já tem artigos, vídeos e tutoriais desenvolvidos só para ele, na promessa de ensinar a população a lidar com o pano selvagem. Em breve, será tese de mestrado de alguma desperate housewife. Os vídeos, com ares de ficção científica, trazem instruções que só dão certo nas mãos de quem os elabora. Fazer origami é mais fácil. Resultado: ele acaba, sob os piores impropérios, indo para o armário de qualquer jeito, amarfanhado, dobrado como dá. Capaz de fazer tanto volume quanto um edredon. É a redenção das arrumadeiras e, ao mesmo tempo, a melhor tradução do “tudo tem seu preço”.

Lembro da minha mãe arrumando as camas em casa. Um dia, cansada de ver os lençóis de baixo saírem do lugar, deu um pequeno nó nas suas pontas. A embrionária técnica fazia certo volume no colchão, mas garantia uma boa noite de sono sem o indesejado deslocamento do lençol. Outra dona de casa atarantada, habilidosa em conciliar as diversas atividades do lar, mas inconformada com o desaforo dos seus lençóis, teve a mesma ideia e a aperfeiçoou. O que me leva a crer que o lençol com elástico foi inventado, na verdade, pela Mulher-Elástica.

Mulheres são multitarefas por natureza e guardam em si o arquétipo dessa heroína. O vigor da elasticidade feminina parece ter seu ápice na gestação, quando o corpo se expande para acolher o novo hóspede do planeta, o útero alcança o coração e vai além dele. Para depois, retornar ao normal. (Alguns, nem tanto.)

O mundo vive pondo à prova uma Mulher-Elástica. Esticam sua paciência, querem ver até onde ela aguenta. Pensam que ela tem infinitas propriedades elásticas. Talvez não.

O que me faz uma legítima Elastigirl é poder assumir a forma que eu quiser: de mãe zelosa (às vezes, rabugenta), de esposa fora do padrão, de costureira aprendiz, de vizinha camarada. Ou de bruxa má.

Demonstro meu superpoder de várias maneiras. No carro, ao dar o lenço de papel para a caçula no banco de trás, que espirrou e está aterrorizada diante da própria meleca. No shopping, quando o filho quer que eu veja uma vitrine que ficou para trás. Em casa, flexibilizando as ideias para compreender as razões da faxineira não ter vindo no dia combinado. Estendendo o dia, só para terminar o trabalho no prazo.

Sinto, porém, que ando meio gasta; já não consigo voltar tão facilmente à minha forma original. Minhas velhas crenças, de tão distendidas, estão quase todas deformadas. Mas numa coisa o lençol com elástico e eu somos parecidos: também sou difícil de dobrar.

Da costura e do corte (ou Crônica de minuto #2, revista e ampliada)

Arte: In Pastel

Juntou que fiz aniversário e, no mesmo dia, comecei um curso de corte e costura. Era parte dos desejos antigos e explicáveis: minha mãe costurava. Cresci em meio às linhas, agulhas, tesouras, fitas métricas.

Quando eu era pequena, sempre ganhava cortes de tecido de presente, geralmente das tias. Que viravam, pelas mãos da minha mãe, vestidos e blusas.

Inventei de perpetuar a tradição e, aos dezesseis, confeccionei para mim um macacão de popeline lilás, sob suas pacientes instruções. Foi a única peça que costuramos juntas – insuficiente para que eu absorvesse seu saber, o bastante para despertar a fome de pano.

Já sem ela, na faculdade, arriscava e abastecia meu guarda-roupa através do maquinário herdado. O corte e a costura tomaram ares de adivinhação, tentativa, erro, sorte. Funcionava. Faltava-me, porém, a técnica materna.

Ninguém mais me dá cortes de tecido. Acho que é porque nem tenho mais tantas tias. Ou então, porque minha mãe não pode mais fazer minhas roupas. As coisas todas têm suas razões.

Vasculhei os armários em busca de retalhos para a primeira aula. Encontrei uma panaiada tão antiga quanto o desejo de costurar direito. Cortes e retalhos do passado, gentilmente poupados pelas traças.

Foram todos comigo para a aula. Dentre eles, um, velhíssimo, intacto em sua abstrata estampa de cores, ainda tão cheias de vida. Presente de quem, afinal? Para mim ou para minha irmã, que também costumava ganhar os seus? Como surgira no acervo têxtil da família, e como resistira a tantas mudanças de endereço? Eu bem que já tentara, várias vezes, fazer algo dele. Sua personalidade, no entanto, sempre trouxera dúvidas sobre o que poderia vir a ser – blusa? Saia? Écharpe? Talvez nem ele soubesse direito o que queria ser. Cogitei, há algum tempo, usá-lo para outro fim – pensando na hipótese dele, de fato, não ter nascido para vestir ninguém. Era tecido arrogante, eu duvidava que fosse se dar bem com outros panos num mesmo traje. Como um animal de estimação ciumento, que não autoriza seu dono a ter mais ninguém. Deu nisso: ele sempre retornou ao fundo do armário, que é para onde vão as coisas da categoria “depois-se-vê”.

Professora bateu os olhos nele e vi ali certa surpresa. “É seda javanesa, não se faz mais dessas!”. Explicado estava, ele não era um tecido qualquer e sabia disso. E não era ele, era “ela”. Naquela hora, no turbilhão sereno das lembranças, vi as tias falando “javanesa”. Jamais havia associado: javanesa é gentílico de Java. Java fica na Indonésia. A gente vive falando coisas sem prestar atenção às origens, aos significados. Por que a camiseta é regata? E a gola, olímpica? A calça, capri? Só sei que a ancestral seda, num processo tardio, em breve sairá de seu casulo reverso. (Antes mesmo de eu tentar ler “O homem que sabia javanês”, aquele, do Lima Barreto.)

Corte é rompimento, morte. Costura, união. Corte e costura, de tão antagônicos, são complementares. Um não vive sem o outro, eles se precisam para que o feitio da vida se dê.

Por isso vou estudá-los. Para, além de ser autora da minha própria moda, aprender a viver com os dois. E também para mostrar que não perdi o fio da trama, tampouco abri mão dos sonhos já alinhavados. Será meu presente de Dia das Mães a longo prazo. Entregue à Dona Angelina com beijo e abraço apertado, embrulhado em papel-saudade.

Crônica de minuto para ficar triste num instante

Arte: João Grando

A mãe do João Hélio disse que, naquele dia, gostaria de ter tido superpoderes para salvá-lo.

O pai do Mitchill disse que gostaria de voltar no tempo para mudar o desfecho da história, ou avançar nele, até um dia em que tudo houvesse, enfim, passado.

Outras mães e outros pais, vivedores da experiência de sepultar um filho, também já desejaram ter superpoderes, mas não disseram nada. Superquerer não é superpoder.

Super-heróis, pense nisso, são inspirados em pai e mãe. A coisa da proteção, do cuidado. Uma vez que a estes foi concedido o superpoder de trazer uma pessoa ao mundo, igualmente deveria lhes ser concedido mais um, para mantê-la por aqui. Imitar Ícaro, domar Cronos – não importa qual. Desde que pudessem, através dele, garantir a existência daquele que lhes é confiado.

Aos pais e mães tristes, calados ou manifestos, se não recebem o poder providencial, cabe apenas a capacidade de superação. Que, de certa forma, é um jeito de ser super.

O rei, a imigrante e a falta de saudade

 

Vovó Carmela e vovô Antônio (centro) e a filharada. E a data, que só reparei depois.

Elvis não morreu, ao contrário da Vovó Carmela. Ela morreu no mesmo ano em que ele, já que é assim, não o fez. Sei muitíssimo mais dele que dela. Estranho?

Faz trinta e quatro anos e dois dias que ela partiu. Ele, trinta e quatro anos e cento e oito dias. Dele, se fala – e muito. E dela?

Ele é famoso. Ela não. O Google tem setenta e sete milhões e quinhentos mil resultados para o nome do rei do rock. Cento e sessenta para o dela. E nenhum é, efetivamente, sobre ela. Deveria existir a “Deuspedia”. Cada ser humano com seu verbete, atualizado por Ele e seu staff de anjos.

Vovó Carmela é minha bisavó, mãe da minha avó. Sou, por ora, a penúltima bonequinha da matrioska; a última é Nina, minha caçula. Ninguém a chamava de bisavó, nem de bisa. Já considerei seu nome pavoroso, sentia pena de uma prima que fora batizada em sua homenagem. Hoje, não mais. É nome tão bonito.

Na casa da vovó Carmela seus filhos, netos e bisnetos se reuniam em compridas tardes de sábado. O invariável cardápio: chá-mate dulcíssimo e pelando de quente, o pão com manteiga. O chá era servido nas xícaras de bolinhas, de porcelana tão fininha quanto a pele da matriarca. Quem ganhava sua fatia de pão podia ia brincar lá fora. Quantos passarinhos alimentei no quintal com minhas migalhas chovidas? E quem ficou com as xícaras? Não é só a infância que é cheia de questões.

Eu não conversava com a vovó Carmela nessas visitas. Velhos têm mania de falar com as crianças através dos seus pais, mesmo que elas estejam presentes, como se não fossem capazes de responder sobre suas vidas. Eu estava na cozinha, mas era à minha mãe que ela dirigia as perguntas: “Ela vai bem na escola?”. “Ela quer mais pão?”. Eu também não perguntava nada sobre ela, nem a ela, nem a ninguém. Só queria saber do Elvis. Eu, que derivei dela, não dele, ia bem na escola. E, sim, sempre queria mais pão.

Dela, sei tão pouco. Só que tinha imensos cabelos cinza-claro, permanentemente enrolados num coque e presos num pente-fivela. Que usava vestidões compridos e arrastava os chinelos. É todo meu conhecimento. Sequer de sua voz me lembro. Já do Elvis… Minha irmã me ajuda, por e-mail:

“Carmela Mameli nasceu em 16/05/1889, filha de Diogo Mamelli (o pai tem 2 L) e Elena Pucci. Nunca consegui saber a cidade, só sei que é na Sardenha. Casou-se em 30/10/1908 em Jacutinga e morreu em 30/11/1977 em São Paulo. Não lembro do quê exatamente ela morreu, lembro que ela tinha uma hérnia enorme na barriga, de longa data… Lembro também que depois que ela quebrou a perna não saiu mais da cama e morreu logo depois”.

Ela, que tinha alguma coisa com o dia trinta (a foto que ilustra esta história foi tirada em 30 de novembro de 1958, conforme anotação feita na própria). Ela, que não sei se gostava do Elvis. Ela, que não está always on my mind. Será que ela loved me tender? É assim que junto tudo: as letras das canções do rei do rock, a imigrante de onde me originei e a minha confessa falta de saudade.

Quando eu ficar bem velhinha, devo cuidar das minhas roupas, chinelos e penteados. É deles que, provavelmente, meus bisnetos se lembrarão. Mais, muito mais, que da minha voz. Que, aliás, nunca aprendeu a cantar nada direito.

Desenhações

"Casamento de sóis", Nina, 2011

Filhos em ação: dezenas de folhas de sulfite e milhares de canetinhas espalhadas pelo chão da sala. Está certo, não são milhares. Duas dúzias, no máximo. Há um arco-íris sobre o tapete, qualquer hora descobrirão que é voador. Ensaio mandar recolher tudo – as pontas porosas são cruéis com a mobília. Leio a paciência tatuada em meu antebraço. Eles precisam de ar.

Vejo seus desenhos com olhos de mãe, ávida por sinais que garantam que eles são crianças alegres. Procuro sorrisos nos traços humanos, paz nos cenários caseiros, harmonia nas paisagens. Além do evidente, nunca sei direito o quê identificar; sigo considerando tudo bonito. Sei que ela é romântica e sempre me desenha de cabelos compridos. Ele passou da fase dos trens, ampliou seu repertório e faz plantas arquitetônicas com cortes transversais. Sei também que não gostaria de descobrir nos retratos algum resultado da minha habitual impaciência materna. Quando uma tatuagem alcança a pele do coração?

Na idade deles, meus desenhos eram feitos com canetinhas Sylvapen, unânime objeto de desejo da criançada. O luxo era o estojo com doze. Na maioria das vezes, porém, eu tinha que me contentar com o de seis. Agora as crianças ganham estojos com vinte, trinta, cem canetinhas. Não há cor impossível.

Hoje, especialmente hoje, eu precisava da minha mãe. Para saber dos olhos dela quando via meus desenhos. Se também buscava neles evidências de que tudo estava bem com sua caçula. Não lembro se ela guardava algum consigo, como eu faço com os dos netos que ela não conheceu. E também nunca mais fiz desenhos para ela. Ela não pediu mais.

Quando pequena, grávida de imagens, eu dava à luz macieiras carregadas. Montanhas simétricas com o sol por detrás do vale formado. Algumas esquisitices. Mulheres de perfil, mania perpetuada nos cadernos até depois da adolescência. Quando desenhava pessoas, logo alguém perguntava “Quem é?”. Coisa mais aborrecida. Não era gente de verdade, era gente inventada. Por via das dúvidas, não faço essa pergunta aos meus filhos. Faço outras. É minha maior contribuição à imaginação deles.

A parede da sala de jantar é o lugar das exposições de arte temporárias. Nela estão algumas de suas obras, grudadas com durex. Amanhã vai ter mais uma. Se eu ainda souber desenhar maçãs.

"Hora do banho", Luca, 2011

A enceradeira

Toda casa que se prezasse tinha enceradeira. A dona do lar precisava do trambolhento aparato – fosse presente de casamento ou adquirida em suaves prestações – para dar lustro ao piso e mostrar às visitas o quão zelosa era. Minha mãe caiu nesse conto. Todas as mulheres de sua geração, aliás. Não sei se a armação foi dos fabricantes de cera ou dos maridos que pretendiam manter as esposas ocupadas. E pensar que o advento da engenhoca foi a redenção; antes o brilho era conquistado no muque.

Eram duas, em casa. Uma, do tempo da minha avó. Outra, da época da minha mãe. A primeira era pesada, incômoda, antiquada (enceradeira e vovó). A segunda era mais leve, agradável, moderna (enceradeira e mamãe). A primeira tinha dupla função: de tão grande, cabia uma criança montada nela. Dia de faxina era sinônimo de farra, dia de andar de enceradeira. Mas só um pouquinho; dependia do humor de quem guiava a geringonça. Um verdadeiro bólido. Ou tanque de guerra. Uma arma, talvez.

Conta a lenda que as visitas exclamavam: em casa, se via dois gatos no chão. Um, propriamente dito, e outro, reflexo do primeiro. Obra do Synteko, da enceradeira e do esmero de Dona Angelina. Eu, iniciante no mundo do espelho de Alice, achava aquilo bem curioso. Até eu existia em dobro, portanto.

Minhas visitas, hoje, também dizem o mesmo. A diferença é que elas realmente veem muitos gatos. Todos de verdade. Nesse quesito, a única tradição na família que teve continuidade. Melhor assim.

A enceradeira é o símbolo cabal de que o compasso do tempo já foi outro. Ah, havia mais dele na vida de qualquer ser – homem ou mulher. A era dos assoalhos impecáveis, panelas areadas, roupas quaradas e engomadas. Onde isso, hoje? Preenchemos o tempo livre proporcionado pelas traquitanas elétricas e eletrônicas com outras necessidades. Inventamos outras areações, quarações e engomações para ocupar o tempo. Queremos mostrar o quê para quem? Urge descobrir de quem é a armação agora.

Queria mesmo era passear de enceradeira de novo.

Crônica de minuto #34

Luca, sete anos, no banco de trás:

– Mãe, como se faz bebê?

Silmara, quarenta e quatro, no volante:

– É assim: na barriga da mulher tem um ovinh…

– Olha, mãe! Um Camaro do outro lado da rua!

[Ele é d-o-i-d-o com esse carro]

– Uau! Bonito, hein, filho? O motor deve ser 6.2. Puxa vida!

Resolvido.

Crônica de minuto #33

– Mãe, põe um rock?

Fui ver se tinha algum CD no porta-luvas. Tinha. Ao primeiro acorde de “Miss you”, dos Stones, Nina, sentadinha no banco de trás, bateu palmas e se remexeu até onde o cinto de segurança deixou. Pelo retrovisor, fotografei-a na minha Rolleyfex particular, aquela embutida na cabeça.

Quando a gente se despede na porta da escola, fico sempre com uma certeza: I will miss you.

Carta para Maria

Grafite: "Madonna", SAO/Flickr.com

Cara Maria

Não se espante com a inédita missiva; por aqui, tudo segue em razoável ordem. De fato, é com seu filho que converso mais, em longas lamúrias com frente e verso, ou pelos recados ventados, só para dar um alô. Ele sempre diz que está por dentro das coisas que conto, mas tenho cá minhas dúvidas. A onisciência não dá garantia.

As crianças vão bem. Você, que é mãe, sabe o trabalho que filho dá. Não sei se os meus terão a fome serena de mudar o mundo, como teve o seu. Se eles conseguirem transformar o mundo deles, já estará bom. No fundo, todo filho é meio salvador. Não há fruto que não seja bendito.

Desde que você virou santa, Maria, toda mulher precisa inventar a própria santice, ainda que às avessas. É seu principal legado, nossa maior herança. E a despeito da minha impaciência e egoísmo, há momentos em que consigo ser Maria, por conta da milenar fagulha genética. Às vezes, lhe sou grata por isso. Às vezes, não.

Não sei muito sobre a Santíssima Trindade, mas será que não esqueceram de incluir você nela? Ou era uma espécie de Clube do Bolinha, onde mulher não entrava? Aí não seria trindade, o que poderia mudar a história da humanidade inteira, para o bem ou para o mal. Melhor deixar assim. Fiquemos com a nossa tríade paralela: mãe, filha e o espírito santo no meio, amalgamando tudo.

Falando nisso, você sabia (de verdade) quem embalava nos braços? Trocava-lhe as fraldas e dava-lhe de comer, como qualquer mãe? Afinal de contas, Maria, o que tinha no seu leite?

A sua tarefa foi a mais impossível, difícil e insana. Você poderia tê-la declinado, passado a batata quente adiante, ter dito ‘não’, enfim. Mas você, Maria, não foi com as outras. Assistiu, sem direito à raiva, nem esporro, o filho perecer. Não é para qualquer uma. Era parte do combinado perdê-lo tão cedo, ou você só ficou sabendo em cima da hora qual era seu papel no teatro da humanidade? Não lhe deu vontade de mandar tudo às favas e ir lá, arrancá-lo da cruz e dizer “Ok, a brincadeira acabou”? Seu choro na escuridão, quem é que ouviu? Quem acudiu você quando o bicho pegou? Seu coração, por fim, recebeu um pouco da cura que ele espalhou pelos quatro cantos? E hoje, tanto tempo passado, me diz, como mulher, não santa: você emprestaria seu ventre de novo?

Nós, que não sabemos a hora da nossa morte, vivemos orando para que você esteja atenta ao relógio do mundo. Saber que você é por nós, agora e depois, representa um alento e tanto. Mas esta noite, Maria, vamos fazer diferente. Hoje, quem roga por você sou eu. Dorme tranquila.

Boa noite,

Crônica de minuto #29

Cortava as unhas do pé do Luca. Num pé, fui do dedão pro dedinho. Noutro, do dedinho pro dedão. Não foi intencional, mas o suficiente para ele observar: “Mãe, no esquerdo você cortou em ordem decrescente e, no direito, em ordem crescente”. Adoro mentes analíticas de sete anos.

A bolsa da Dona Jacy

Ilustração: Andrea Joseph/Flickr.com

Em (quase) qualquer lar do planeta é assim: a gente procura uma lembrança e se depara com outra. Quem nunca foi atrás do álbum de casamento e encontrou uma fotografia do pré-primário? Ou tentou localizar o telefone da madrinha numa agenda antiga e deu de cara com o do ex-namorado? Somos todos colecionadores de saudades.

Dia desses, uma das minhas cunhadas buscava nos armários uma mala para usar no final de semana. Achou. E acabou fazendo uma viagem inteira dentro dela. Só que ao passado. Entre quinquilharias, como uma régua com o logotipo do Banco do Brasil, medalhas e um missal, as preciosidades: quatro bolsas da Dona Jacy que, em rima triste, não conheci. Dona Jacy, mãe da cunhada, é também mãe do meu marido, mulher do meu sogro, avó dos meus filhos. Minha sogra. Uma das bolsas é vermelha, está com o fecho quebrado. Outra é branca. A preta ainda guarda um band-aid e o delicado par de luvas de cetim negro, registrando o último dia que ela a usou. E mais uma, de madeira. Um perfeito bauzinho, não fosse a alça lhe denunciando a função. Todas dentro do objeto inicial da busca – a mala – , enterradas no velho quartinho do quintal, endereço certo para o que ninguém quer mais. Naquele instante, desenterrava-se o que não merecia estar sepultado. Ainda havia vida pulsando naquelas bolsas.

É raro uma mulher emprestar sua bolsa à outra. É objeto pessoal, igual escova de dente. Nunca se sabe se a outra vai cuidar bem dela, se vai colocá-la no assoalho do carro porque as compras ocuparam o banco inteiro, ou se vai esbarrá-la, acidentalmente, numa parede com tinta fresca. E se a bolsa vai e não volta no prazo combinado, véspera da festa onde se pretende usá-la? Melhor evitar a saia-justa, o fim da amizade, o holocausto. Bolsa não se compartilha, e ponto. Mas não dizem que toda regra tem sua exceção?

Há dezenove anos as pobrezinhas das bolsas de Dona Jacy não davam um passeio. Esta semana, porém, encerraram o jejum. Ganharam novas donas. Vão todas morar em outros armários de mulher. Estão (bem) emprestadas, conforme reza a exceção. Repartidas entre as cunhadas e eu, a nora. Fiquei com a de madeira. Para combinar com meu elemento terra. Marido disse que se lembra da mãe com ela. Na hora, juro que vi uma lágrima ali.

Devo prestar atenção quando for usá-la. Não é bolsa de se levar o universo. Apenas batom, espelho e RG, para provar que sou digna de portá-la. Nela, não cabe a saudade do meu sogro e seus cinco filhos. Mas cabe a certeza de que tudo vive e revive, o tempo todo.

O melhor de tudo é que não tenho que devolvê-la. Dona Jacy não a usa mais. E nas festas aonde ela vai agora ninguém precisa de bolsa. A única condição, que eu mesma inventei, é eu passá-la a outra mulher da família, no tempo certo, perpetuando a tradição que acaba de ser criada. A pequena bolsa de madeira será, pela ordem natural, da minha filha, sua neta caçula. Que saberá a hora de emprestá-la novamente. Um dia, nas voltas que o mundo dá, ela acabará voltando para as mãos da dona.

Papel de parede

Arquivo (muito) pessoal

Coloquei uma fotografia da minha mãe como papel de parede na tela do computador. Por que é que nunca fiz isso antes? Dona Angelina em branco-e-preto, regador nas mãos, novembro de 1958. Grávida de meu irmão mais velho, seu primeiro filho que nasceria dali dois meses. Meu reino para saber o que lhe disseram, na hora do clique, que a fez rir daquele jeito.

Hoje de manhã ralhei com as crianças, mania de querer ficar de pijama o dia inteiro. Para fugir de mim, se esconderam, os dois, entre a estante e a parede. Voltei para o computador e peguei a avó deles rindo. Para mim ou de mim. Ou da estripulia deles. Acabei rindo junto. Que que tem ficar de pijama o dia inteiro?

De pequena, eu achava a coisa mais fina do mundo casa com papel de parede. Para mim, hoje, ter tanta gente bonita vivendo comigo em casa é que é fina coisa. Tem sempre uma novidade. Minha filha aprendeu outro dia, na escola, aquela música:

Era uma casa muito engraçada

Não tinha teto, não tinha nada

Ninguém podia entrar nela, não

Porque na casa não tinha chão

Ninguém podia dormir na rede

Porque na casa não tinha parede

Se não tem parede, também há de não ter papel de parede. Descomplicaram a casa. E complicaram o velho álbum de fotografias. Cada vez que as professoras das crianças pedem foto, para uma atividade qualquer, lá vou eu correndo imprimir. Depois não tenho onde guardar. Não temos mais álbuns. Só os antigos, já com lotação completa. E pensar que há tantas fotos de minha mãe no computador, graças ao scanner. Dela e de tanta gente. As memórias agora são digitais. Todas as pessoas podem virar papel de parede, enfim. Coisa fina?

Tivesse eu feito isso antes, minha mãe também riria se visse a exposição de arte que as crianças organizaram há uns meses. Fizeram vários desenhos em papel sulfite e grudaram com durex na parede da sala. Achamos bonito e deixamos lá por vários dias. Agora, vira e mexe uma exposição se instala no mesmo lugar. Renovamos o estoque de fita adesiva. Nossa sala entrou para o roteiro cultural da família.

A filha da vizinha me perguntou outro dia, “Onde está sua mãe?”. Respondi que ela havia morrido. Crianças ficam consternadíssimas quando sabem de alguém que não tem mãe. Eu deveria ter dito que ela estava aqui em casa, na tela do computador.

Às vezes, penso que deve ser um bom negócio partir e poder continuar vivendo aqui e ali. Em fotografia, filme, carta, coração, retrato na parede. Gente que se foi cabe em qualquer lugar. Está liberta das amarras do espaço terreno, embora separadas de nós. Paredes grossas, essas do lado de lá.

Pensando bem, eu não daria meu reino para saber o motivo da risada na hora daquele clique. Porque eu já sei: foi um anjo (que não saiu na foto) soprando em seu ouvido: “Você ainda vai se divertir muito com seus netos”.

Matrioska

Foto: Zeta/Flickr.com, efeitos: Gimp

A bebê dorme em seu carrinho. Enche de amor o coração da mãe que a embala. Enche de amor-perfeito a avó que as contempla. Enche o mundo de graça. E enche d’água meus olhos. Como podem três quilos e cinquenta centímetros ocupar tanto espaço? Na minha tarde de sexta-feira há três mulheres. Saídas uma de dentro da outra. Estou diante de uma matrioska viva. Passaria horas montando-a e desmontando-a. Brincando de nascer e desnascer. Mas quem gosta dessa brincadeira é Deus. A gente só brinca junto; as coordenadas são sempre dele.

No breve tempo de nanar, a bebê se desliga deste orbe, enquanto se liga ao de onde veio, aquele que deixou há pouco tempo. O dos anjos e jardins sem fim, gosto de imaginar desse jeito. Desconecta-se daqui e se reconecta lá. Mata as saudades dos amigos, ainda não sabe que os reencontrará aqui – é surpresa. Joga bola, canta uma canção, afaga um pássaro. E daqui trinta minutos pega um avião de volta, faminta de mãe.

No futuro, as fotografias dos álbuns de família mostrarão o quanto terão sido parecidas essas três mulheres. Pois cada uma tem em si um pouco da outra. O detalhe no sorriso, o jeito de ficar brava, a paixão por alguma arte. E também coisas que as outras se esqueceram de trazer nesta vida, ou não o fizeram de propósito, só para ver se a outra lembrava. Mulheres.

Cada uma delas cumpre um ciclo. E nem sabem por que o cumprem. Só sabem que é assim. Lá se vão, as três mulheres. A primeira ainda não sabe andar. A segunda, sim. A terceira está desaprendendo. Cabe à do meio ajudar as que estão nas pontas do tempo presente. Ela sabe que, breve, o terceiro lugar será seu. E arrepia-se só de pensar: a que cochila no carrinho, um dia, tratará de continuar a história, aumentando a matrioska.

É boa a roda da vida, como não? Vida de meia volta, volta e meia que se dá. Estamos todos cirandando.

De peito aberto

 

Ilustração: Marc Palm/Flickr.com

Ontem foi dia de mamografia. Exame de rotina, Doutora Clara diz que, com meu histórico, não se pode bobear. Obedeço. Além do mais, minha mãe dizia que mulher precisa se cuidar. Plantou essa semente em mim, trato de cultivá-la. Duas vezes por ano, sou virada pelo avesso, comprimida, vasculhada. Fuçam tudo lá dentro, medem, comparam. Posso não conhecer na íntegra o meu ‘eu interior’, mas os médicos, sim. Ave, inventor do Raio-X. Antes de sair de casa, não rezei. Se, por acaso, houver algo nos meus peitos, já está lá, mesmo. Depois a gente vê. Essa é uma prece que deve ser diária. Mais de agradecimento que de pedido, bom lembrar.

Minha mãe teve um nódulo no seio, e soube dele o tempo todo. Não contou para ninguém e não fez exame algum, numa espécie de ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’. Nem precisou. Quando procurou o Doutor Fuad, era tarde. (E eu fiz minha mamografia ontem à tarde. ‘Tarde’ é mesmo uma palavra cheia de nuances.) Aquele nódulo deu um nó nas nossas cabeças. Pouco tempo depois, apareceu um na minha garganta. Aprendi a conviver com ele. Só dói de vez em quando, quando engulo uma saudade meio grande.

Na sala de espera da clínica as grávidas se abanam, enquanto tentam dar conta dos cinco copos d’água que alguns exames exigem. Um ou outro marido acompanha, entretido com os jornais que ficam sobre a mesinha. Eu, que já encerrei a produção de filhos, prefiro as revistas, para me atualizar sobre quem casou e quem descasou. Assim a cabeça não inventa coisas. Quando me chamam, já sei. Devo me despir naquela salinha, avental aberto na frente, só um minuto, a médica já vem. Eu poderia trabalhar ali, conheço o script inteiro. Na hora do exame, procuro não fazer nenhuma gracinha típica da situação. A enfermeira conhece todas de cor e salteado. Qualquer tentativa de animar o ambiente será um martírio para ela, cuja rotina consiste em encaixar no aparelho de dois metros e meio de altura e ares de big brother as mamas da mulherada – cada uma com dimensões e sensibilidades distintas –, pedir para que tenham paciência, só mais um pouquinho, pronto. São cerca de trinta exames por dia, a enfermeira contou. Quantos daqueles resultados vão dar nó nas cabeças das suas donas?

Depois de operada, minha mãe inventou um jeito de disfarçar a ausência compulsória de uma das mamas. Um sutiã com bojo recheado de sementes, não me lembro de quê. Calibrava a quantidade em frente ao espelho, o peso e o formato ficavam parecidos com os de um peito de verdade. Bem mais em conta que os sutiãs de silicone industrializados. Hoje sei que ela carregava em si mais que as sementes estéreis do sutiã, fadadas a nunca brotar. Forte como uma árvore, minha mãe tombaria anos depois, vencida mais pela exaustão que pelo câncer. Colhi as sementes que sobraram e as guardei. Por isso, visito sempre a clínica.

Costumo receber boas notícias nesses exames. Depois de amanhã, Doutora Clara há de ficar feliz. Minha mãe, de certa forma, também. E eu, de uma vez por todas, saberei: suas sementes vingaram, sim.

Crônica de minuto #2

Quando eu era pequena, sempre ganhava cortes de tecido de presente, geralmente das tias. Que viravam, pelas mãos da minha mãe, vestidos e blusas. Ninguém mais me dá cortes de tecido. Acho que é porque nem tenho mais tantas tias. Ou então, porque minha mãe não está mais aqui para fazer minhas roupas. As coisas todas têm suas razões.

Os finados e o amor

Ilustração: Ciro Esposito/Flickr.com

Foi no dia de Finados que meus pais se conheceram. Ele gosta de começar a história assim: “No dia dos mortos, dois vivos se encontraram”. Ela morreu no dia dos Namorados. Ainda não compreendi direito a relação que existe entre o amor e a morte. Só sei que no calendário um vem antes do outro.

Nunca visitei o lugar onde as cinzas de minha mãe foram lançadas. Combinamos: ela é quem me visita. Em sonho, roupa, fotografia, receita de panqueca. De tempos em tempos, tomamos um chá da tarde juntas. Mas falta algo nesses encontros. A xícara dela está sempre vazia.

Quando meu irmão mais velho entrou na faculdade, ela descobriu que estava doente. Escondeu a doença dos três filhos. Ao fazer isso, escolheu o caminho mais longo para salvar sua vida e, ao mesmo tempo, o mais curto para o fim dela. Só nos contou e procurou o médico cinco anos mais tarde, depois da festa de formatura. Teve tantos medos antes disso. De ser obrigada a parar de trabalhar, de o meu irmão não poder continuar os estudos, num dominó de receios sem sentido (não para ela). Passados cinco anos daquela festa, a família se reuniu novamente. Desta vez, sem nada para comemorar.

Até hoje meu pai faz poesias para minha mãe. Na sua academia particular de letras, ela é a sua imortal. Sempre que ele vê os netos, lamenta ela não ter conhecido nenhum. Um pesar logo substituído pelas novidades do dia, as eleições, o calor, o livro que ele está lendo. É bom assim. Distração é o melhor remédio para a saudade.

Ontem encontrei o gorro dela, de lã cor de vinho, guardado no meu armário. Ainda tem a borboletinha verde costurada nele, ideia dela para aproveitar o enfeite que caíra de um grampo de cabelo. Na verdade, o gorro era meu e acabou ficando para ela, que o usava para se aquecer nos dias gelados, já sem cabelos por causa da quimioterapia. Agora ela não precisa mais dele, eu sim. Como é que se põe gorro no coração? Às vezes, o meu sente tanto frio.

Aqui no quintal de casa as sementes de ipê brotaram, a amoreira da rua de cima está carregada. Meu filho aprendeu a escrever, vive me mandando bilhetinhos escrito “eutiadoro”, assim, com ‘i’ e tudo junto. O machucado do meu dedo (quem manda brincar com tesoura?) já nem dói mais. Acertei fazer moqueca e a filha da minha amiga nasceu. No dia dos mortos, é bom falar de amor.

Salto alto: adeus ou até logo?

Ilustração: r8r/Flickr.com

Não digo que foi tardio tê-los conhecido – pra valer – perto dos trinta. Antes tarde que nunca. Embora razoavelmente tentada (culpa da biologia), costumava passar incólume ao irresistível charme dos saltos altos na vitrine, sempre me rendendo aos baixos. Decretara que não combinariam com meu guarda-roupa e que seria difícil caminhar com naturalidade. Afinal, via tanta dona desengonçada. Testemunhava as amigas com pezinhos em bolhas depois de um dia de trabalho ou da balada – micos exclusivamente femininos. Porém, sempre soubera dos poderes dos saltos altos. O que eles fazem por uma mulher não está no gibi. Dez centímetros mais alta e panturrilha turbinada, instantaneamente? Em três vezes sem juros no cartão? Nada mau.

Após longo flerte, sucumbi. Como uma viciada, comecei com pequenas doses e em pouco tempo já estava dependente. No início, combinei comigo um limite de altura: quatro dedos. Logo, eles tomavam os cinco de uma mão e mais alguns da outra. Passei a ter dificuldade para escolher um par para um simples passeio pelo parque. Foram várias temporadas sem um único tênis no cardápio. Chinelos, só na praia. Arranquei interjeições de aflição por onde passei, em pleno nono mês de gravidez do meu primeiro filho, a bordo das minhas plataformas. No dia marcado para a cesárea, não tive dúvida (ou opção): apresentei-me na maternidade com um dos que tinham muito mais que quatro dedos. Tudo indicava que minha transição da Era do Salto Baixo para a do Salto Alto estava concluída.

Nada como um filho para ajudar a gente rever os conceitos. Além de alterar, de leve ou totalmente, o rumo da carreira, estabelecer novas prioridades e ser o novo personagem das nossas orações, um rebento é capaz de transformar profundamente a indumentária de uma mulher. Os primeiros meses inauguram a fase da funcionalidade: toda peça que complicar a amamentação vai para o fundo do armário, e lá aguardará o sinal verde para retornar – o que inclui todos os tomara-que-caia e a coleção de frentes-únicas. São as férias do sutiã meia-taça, dos modelos com bojo. Em seguida, vem a fase da resignação: golas e ombros sempre cheirando a leite azedo por conta do inevitável regurgito, calças eternamente marcadas pela papinha de mamão. Chegar à festa com a cria no colo e carimbo de solado número 17 na blusa nova passa a ser normal. Depois, entra-se na fase da adaptação. Os filhos crescem e os vestidos também, tornando-se mais adequados para quem passará boa parte do dia curvada para frente, na missão de guiá-los nos primeiros passos.

No processo, por que os sapatos ficariam imunes? Do alto de um salto, atividades banais exigem habilidades e competências mais complexas. Tomar o filho nos braços na hora da birra ou depois de um tombo. Trazer, no muque, o cadeirão que estava do outro lado da praça de alimentação. Tirá-lo dormindo do carro, quando ele adquire quilos extras, e carregá-lo andar acima até o quarto. Brincar de pega-pega em pleno corredor do shopping. De salto, não dá. Anos de treino de nada valem nessas horas. Qualquer elegância vai para o brejo. Inveja danada das mães que dão conta de conciliar salto alto e filho pequeno.

Por essas e outras fiz, nos últimos anos, uma volta às origens, espécie de regressão. Aos poucos, fui me separando dos saltos. (Do agulha, definitivamente, eu me divorciei. Agulhas foram feitas para costurar e dar injeção. No pé, só na sessão de acupuntura.) Minha sapateira assistiu, lentamente, ao retorno das sapatilhas, rasteirinhas, tênis e chinelos. Logo eu, que dessa água não bebia há tempos. Guardei, no entanto, os altos. Tenho esperanças que o jejum não seja um adeus, somente um até logo. Olho para eles todos os dias e repito, num mantra: “Amanhã, sem falta”. Amanhã.

O tapa

Foto: Mathew Wilson
Foto: Mathew Wilson

O primeiro – e único – tapa que levei da minha mãe é tão antigo e vivo quanto a falta que ela me faz.

Ela fazia tricô para fora, como se dizia. Ou era o contrário. Porque vinha de fora para dentro de casa o dinheiro que ela recebia em troca dos casaquinhos de bebê, sapatinhos e mantas tricotados à máquina. E para dentro dela, também, os elogios que recebia, ficava tudo tão bonito. Nenhum trabalho é para fora, acabo de descobrir.

Um dia, eu quis ajudá-la. Adiantaria aquela encomenda. Um macacãozinho, talvez? Aproveitei uma saída sua do quarto, que fazia as vezes de ateliê. Postei-me de joelhos em sua cadeira, alta para mim, e arregacei as mangas. Parecia não haver segredo. No entanto, antigamente as máquinas de tricô não eram como as de hoje. Na Lanofix verde da minha mãe, uma única carreira exigia várias manobras, num processo lento e delicado (mais rápido, porém, que o tricô feito à mão). Passa o carro para a direita, ajeita aqui e ali, tira o pente com os pontos, encaixa o pente de volta, passa o carro para a esquerda. (‘Carro’, para quem nunca tricotou numa máquina, é aquela peça que vai de um lado para o outro, tecendo a malha.) Determinada em minha intenção, me pus a trabalhar. Não dei bola para nenhuma das etapas. Tudo que fiz foi levar o carro para lá e para cá. Não estava ficando muito bonito. Mas minha mãe sempre dizia que, no começo, não dá para ver direito como a peça vai ficar. Continuei. Carro para cá, carro para lá, que coisa mais fácil tricotar! Eu também poderia começar a ganhar meu próprio dinheiro, por que não? O carro para lá e para cá. Poderíamos compartilhar a máquina, mamãe e eu, enquanto eu não comprasse a minha própria. Será que vendem para meninas de cinco anos? O carro para cá e para lá. A malha continuava meio esquisita, mas ela tinha falado, no começo é assim. E o carro para lá e para cá. Ela voltou ao quarto, um grito. Eu não entendi nada, mas ela sim: a encomenda tinha ido para o brejo.

Foi um só, e bem dado. Não lembro onde pegou. Corri para o banheiro, me tranquei. Ela veio atrás. Pediu para eu abrir a porta, não abri. Ficamos assim: eu chorando do lado de dentro, ela chorando do lado de fora. Fosse ópera, seria acompanhada de uma tristonha sinfonia. Fosse cinema, usariam aquelas câmeras suspensas e mostrariam a cena lá de cima: finas porta e paredes a separar mãe e filha. O meu choro, dos olhos para fora, não era de dor, e sim de incompreensão. Tapas doem mais pelo que representam do que pelo que são. O dela, banhado em remorso, vinha de fora para dentro de seus olhos. Tal o verdadeiro sentido do tricô fabricado para as vizinhas e a parentela. Aquele, de que falei antes.

A mão viu no tapa a solução para o que ela, mãe, não soube expressar na hora. A mão viu a noite passada em claro, consertando o estrago. A mão viu a freguesa cobrando a encomenda. A mão viu o que os olhos não viram. A mãe, cega, obedeceu à mão. E elas, mãe e mão, eram tão doces.

Não tenho a quem perguntar como a história terminou, então rio sozinha. Não sei onde está a velha Lanofix, perdeu-se nas mudanças. Encontrei-a por acaso no meio das lembranças, encaixotadas em meu porão particular.

A rolinha (segunda – e última – parte)

Ilustração: Charis Tsevis/Flickr.com

No dia de São João, comecei a cuidar de um filhote de rolinha que caíra do ninho. Foi minha promessa à sua mãe, que sequer conheci. Embora eu soubesse que não haveria garantias, fiz de conta que não sabia. Fiz de conta que era eu também uma rolinha, para ver se entendia o que seus pequenos olhos me diziam. Fiz de conta que alimento e calor lhe bastariam. Fiz de conta que era normal levá-lo à casa dos outros para não atrasar o horário das suas refeições. Fazer de conta ajuda um bocado quando não há outra saída.

No dia de São Pedro, Beetle, assim batizado pelas crianças, não comeu direito. Recusou a água fresca. Seu bico já não procurava abrigo entre meus dedos. Não lhe importava ficar nesta ou naquela posição, numa já doente resiliência. Tanto fez o sol da tarde, tomado através da janela do quarto. Nada foi capaz de lhe aquecer. Às sete da noite cobri sua gaiola, apreensiva: Beetle dormiu sem jantar. Travou o bico como se dissesse “Não, obrigado”. “Então amanhã tiramos o atraso”, anunciei. Mas se houve algum atraso, foi o meu. Às onze, fui lhe dar boa-noite. Pé ante pé, para não acordá-lo. E vi que havia perdido seu último instante.

Num instante de igual tamanho, lembrei dos meus bichos que já morreram, tantos quanto pude. Dois cães, um hamster, algumas tartarugas, dezenas de gatos. A maioria, sepultada com pompa e circunstância em caixas de sapato sob as terras da vila onde morávamos. Outros tantos, sumidos. Eram bichos livres, desaparecer fazia parte. Olhei-me no espelho do banheiro e vi como estou velha. Como Beetle era novo. Como ele era pequeno perto de mim. E grande, para as formigas que já começavam a passear nele. Lembrei das aulas no colégio técnico, com o escalímetro que ajudava a entender a proporção de tudo. Deus também tem um desses.

Uma pena Beetle não ter conhecido a nossa jabuticabeira. Só o fez de vista, o que não é a mesma coisa. Ele conheceu gatos mansos, porém. O que não é para qualquer passarinho. Sinto não ter ouvido sua voz. No final, fizemos exatamente como havíamos combinado, ele e eu: um dia de cada vez. Foram cinco, no total. E quem é que sabe o quanto isso é pouco, ou o quanto isso é muito? A vida é inexata, embora regida por tanta exatidão. Quanto à promessa feita, mamãe-rolinha há de me perdoar. Mães se entendem.

Quando as crianças acordaram, dei assim a notícia: “Beetle se foi. Ele aprendeu a voar.” E fomos juntos procurar uma boa caixa de sapatos.

A rolinha (primeira parte)

Studio Tau, acrílico sobre canvas/Flickr.com

Fiz uma promessa, semana passada. Prometi a uma mãe que eu cuidaria de seu filho. Prometi, mesmo que ela não tenha ficado sabendo. Prometi, ainda que eu não fosse capaz. Prometi, porque era a única coisa a fazer naquele momento. A mãe desta história é um pássaro. Uma rolinha. O filho, um bebê-rolinha. Caído de um ninho que eu não pude localizar, perdido numa calçada inóspita. Ele fugia, trêmulo, dos sapatos apressados. Escondia-se por trás dos sacos de lixo. Apanhei-o e o levei para minha casa. Ao anoitecer, a mãe-rolinha contaria um a menos. Não havia como avisá-la que ele estava comigo. Não conheço nenhum pombo-correio.

Passarinhos são pequenos demais para mãos de gente. Lembrei do King Kong com a mocinha entre os dedos. Ele não desejava lhe fazer mal, ao contrário, mas como explicar? Imaginei o pavor do bebê-rolinha diante de mim, já que guardo, inclusive, semelhanças com um gorila. Como explicar-lhe minhas intenções? Deixei as explicações de lado, ele devia estar com fome. Fome é a primeira preocupação de uma mulher quando vê um filhote – de qualquer espécie – sozinho. Nossa missão primária é nutrir. Preparei-lhe um lanche, dei-lhe um pouco de água. E arrumei-lhe um cantinho aquecido, à prova de gatos – em casa são três. Filhotes de passarinho são esquisitos. Sem muitas penas e desajeitados, em nada lembram as belas aves que se tornam, hábeis em seus voos espetaculares. Parecido com gente ao nascer. A mamãe-passarinho também deve achar lindos seus recém-nascidos. Mulher é tudo igual.

Hora do jantar. Tenho medo de alimentá-lo demais. De menos. Medo de que passe frio. Calor. Que morra durante a noite. Mas do que precisa, de fato, o bebê-rolinha? Não tenho asas para abrigá-lo. Tenho braços. Eles funcionam com meus filhos; com passarinhos, não. Como poderei ensiná-lo a voar quando for hora, se eu só voo em sonho? Sou assombrada pelas minhas próprias dúvidas. A gente não consegue compreender direito o que não se parece conosco. Tentei pensar como pássaro. Parei quando cheguei na parte da minhoca.

Meus filhos querem saber se ele vai sobreviver. Explico que será difícil para ele ficar longe da mãe, apesar do nosso cuidado e carinho, a questão das espécies. Exemplifico: o que aconteceria se eles, quando bebês, fossem adotados por elefantes? Eles dão risada e engatam outro assunto. Crianças lidam melhor com o futuro que não sabem.

Não posso ser Gaia, a mãe universal, mesmo que dela eu tenha vindo. Ela, sim, conhece profundamente as necessidades de todos os filhos nascidos de suas invisíveis entranhas, e sabe como ninguém cuidar deles. Mas eu fiz uma promessa, que inclui tentar. Sem garantias. Um dia de cada vez, bebê-rolinha. Um de cada vez.

Sobre fazer gente

As Renatas, uma que é de Salvi e outra que é Rossi, são donas do blog “Olhos para o mundo. Elas me convidaram para escrever um post sobre a minha experiência com a maternidade. Escrevi. E elas postaram . Agora eu posto aqui.

Ilustração: Ahlam Baha/Flickr.com

Quando eu estiver diante de Deus para prestar contas, e ele perguntar o que fiz durante a vida, para ver se mereço tomar chá com rosquinhas em sua companhia na varanda do céu, aos sábados, direi: um bocado de coisa. Fiz amigos, irmãos, faculdade, festa. Tricô (crochê não), planos, piada e poesia. Fiz amor, não fiz guerra. Fiz de conta e fiz por merecer. Fiz que não vi, fiz por fazer, fiz sem fazer. Fiz chorar. Fiz tempestade em copo d’água. Fiz bolo para vender no colégio e vestido na máquina de costura da minha mãe. Fiz aniversário quase uma centena de vezes. Fiz de tudo para ser feliz. Mas se ele quiser saber do que mais me orgulhei de ter feito, responderei: gente.

Tenho um filho que não fui eu que fiz, já veio pronto: meu enteado. Meu primeiro filho foi, portanto, o segundo. Feito quando quase acreditei que não daria mais tempo. Deu. Hoje sei que havia tempo de sobra. A gente nunca entende direito o tempo do tempo. Depois, fiz minha filha. Não há nada mais poderoso que uma mulher com outra dentro. Costumo dizer que tenho, então, três filhos. Dois que saíram da barriga e um que entrou no coração. O que, no final, dá no mesmo. Tatuei seus nomes no verso do meu corpo. Publiquei o amor.

Brinco que quando se tem filhos a vida vira de ponta-cabeça. De cabeça para baixo a gente enxerga as coisas de outro jeito, é só fazer um teste na sala de casa. Com filhos, nos despedimos do sono tranquilo, do umbigo próprio, da vida no singular. Dizemos ‘até logo’ para a carreira. Por outro lado, damos boas-vindas aos novos personagens dos sonhos, às diferentes formas de trabalho, à vida no plural.

Fazer filhos é um processo artesanal. E é também como pintar os olhos: um sai sempre diferente do outro. Uma falhinha aqui, um defeitinho ali. É justamente esse o charme. Quando se decide fazê-los, não se sabe como eles virão. A vida não tira pedido. É tudo surpresa. Não há acasos, porém. Filhos são exatamente como precisamos que eles sejam, e vice-versa. Disso não se deve duvidar, muito menos reclamar. É bom repassar essa lição de vez em quando.

Gosto de ver meus filhos dormindo com o pai. Assim posso decorá-los com calma. Gosto de vê-los tomando banho. Gosto, sobretudo, de vê-los desenhar. Nessa hora eles recriam o que já esqueci. Gosto quando contam histórias sem sentido e fazem associações malucas. Gosto quando aprendem coisas novas; no fundo, estão é me lembrando que não tenho feito isso. Gosto quando cantam fora do tom, inventam notas e vão montando a trilha sonora das suas vidas. Gosto de reconhecê-los pelo cheiro e pelo gosto. Gostaria de carregá-los pelo cangote, como fazem as gatas. E gosto de ver o que não via antes deles.

Ao final da prestação de contas, caso Deus pergunte se os filhos me abriram novos olhos para o mundo, vou dizer que não. Meus olhos são os mesmos de antes. Tudo que fiz foi mudar a direção do olhar.

O reencontro

Ilustração: Daniel Jacobino/Flickr.com

Tive um reencontro especial, dia desses. Foi na casa do meu pai.

Ela, que por instantes esqueci o nome. Calculei sua idade: perto dos trinta e cinco. Quando a vi, o burburinho da conversa na sala, com palpites sobre as eleições, foi ficando longe, bem longe. Enquanto a abraçava, era o barulho das portas na minha velha casa, os sons do rádio na cozinha me acordando todas as manhãs com o programa do Zé Bettio, a conversa dos meus avós no quintal, as nossas brincadeiras, Anete e eu, que tomavam conta do espaço. Fiquei aliviada ao recordar seu nome. É feio não se lembrar como a filha foi batizada. Ainda que ela seja uma boneca.

Ele, cujo nome veio fácil: Manequinho. Embora fossem irmãos, não sei qual dos dois nasceu primeiro. O que faz de mim uma mãe, para dizer o mínimo, relapsa. Mas o que se há de fazer? Ninguém faz certidão de nascimento para um boneco.

Anete não fazia nada. Era um bebê que só abria e fechava os olhinhos quando a deitavam. Está com a roupinha tricotada pela minha mãe: um conjunto de blusa e calça rosa e branco, com três florzinhas verdes bordadas no ombro, boina branca e sapatinhos cor de rosa. Ainda abre e fecha os olhos, ligeiramente carcomidos pelo tempo. Me olha com a mesma doçura de antigamente. Pergunto a ela se estou muito diferente, adianto que ela não mudou nada. Ela diz ter estranhado meus cabelos tão curtos. Quer saber de todos em casa, entristece-se quando conto que mamãe se foi, há tempos. Deduzira, no entanto, que algo tivesse acontecido. Dali, de dentro do armário, ela só ouve a voz do avô. Mamãe era sua referência de avó, já que a paterna nunca existiu.

Manequinho, dizia a caixa colorida de papelão, fazia xixi quando tomava mamadeira. Vinha até com peniquinho. Veste o único macacão que ganhou na vida, verde-água, também feito por Dona Angelina. Apesar dos anos sem vê-lo, sinto-me bastante à vontade para conferir o que povoou a minha fantasia quando eu era pequena: seu pipi. Está lá, intacto. Assim que o pego no colo, ele pede para que eu o mude de lugar no armário; já lera todos os livros guardados ali. Seus cabelos loiros continuam repartidos de lado, do mesmo jeito daquela época. Homens não gostam muito de mudar o penteado, mesmo. Os dois são de Touro ou Capricórnio. Eu só ganhava boneca – e boneco – no aniversário ou no Natal.

Quando a gente sai da casa dos pais, costuma deixar nela uma coisa ou outra, que é um jeito de nunca esquecer as origens, garantir o pertencimento, perpetuar o umbigo e tudo o que ele ligava. Embora, como os animais fazem com suas crias, eu não faça ideia de aonde tenham ido parar os outros ‘irmãos’ de Anete e Manequinho. Todos, assim como eles, saídos do ventre da minha imaginação. Também não é necessário explicar aos dois o motivo da minha ausência naqueles anos todos. Bonecos, como animais, sabem que nada é para sempre, não costumam ter autopiedade. Eles vão tocando suas vidas, como deve de ser. Gente é que se preocupa com isto e mais aquilo.

Prometi ir vê-los de vez em quando. Um dia, quero que brinquem com meus filhos de carne e osso, seus ‘meio-irmãos’. Por ora, é melhor que continuem morando com o avô, meu pai, protegidos pelo armário. Filho de verdade não é fácil; o Luca desmonta tudo o que vê, e a Nina é da pá virada.

Prometeu e os meninos acorrentados

"Prometheus Bound 1610-11", Peter Paul Rubens, óleo sobre tela

Não foi uma. Nem duas. Nem três vezes que li nos jornais: mães acorrentam seus filhos adolescentes em casa. Maus tratos? Nada disso. Sem saber onde e como buscar ajuda, elas agem assim, primeiro, para proteger sua cria: seus meninos, usuários de crack, estão ameaçados. Se saírem às ruas, talvez não voltem. Segundo, para se proteger: no ápice da crise, eles fazem qualquer coisa para conseguir o que seus corpos pedem. Vale tudo: vender a TV, o aparelho de som, matar o pai, a mãe e quem mais atrapalhar seus planos. Já que é assim, a única saída são as correntes.

Certa vez, no Olimpo, um titã chamado Prometeu enfureceu Zeus, o deus dos deuses. Só porque ele havia tirado dos céus o fogo, dando-o aos homens, garantindo-lhes a supremacia sobre os demais seres. Aliás, foi ele também quem lhes ensinou as coisas sobre a civilização, a liberdade, as artes, a cultura. Mas o episódio do fogo tirou Zeus do sério. Como castigo, ordenou que Prometeu fosse acorrentado a um penhasco. Ali, dia após dia, um enorme abutre lhe devorava o fígado, que se renovava, e lá ia o abutre de novo. Ao fim, salvou-lhe Hércules que, inconformado com a injustiça, com sua força abateu a ave e libertou o titã.

Ao contrário de Prometeu, que tolerou e resistiu ao sofrimento imposto, em nome da liberdade e do conhecimento que o fogo proporcionara à humanidade, os acorrentados do crack não sabem o que é uma coisa, nem outra. Sua liberdade é de mentirinha, sem valor, trocada na esquina. Quanto ao conhecimento, esse lhes faltou logo de cara, no ‘sim’ do primeiro negócio feito, na mesma esquina. Isso porque aqui também existe o Olimpo com seus deuses, preocupados em manter o fogo sob controle e só para si.

Mas os meninos têm o crack, impiedoso abutre de pedra, a lhes bicar não só o fígado, mas todos os órgãos. A eles, restam as mães desesperadas que, tal como Hércules, tentam resolver a parada como dá.

Comer, escrever, amar

Ilustração: Gustavo Peres/Flickr.com

Antes de sair, deixou um bilhete sobre o fogão:

Tem frango no forno. Falta temperar a salada. O arroz é de ontem. O beijo é de hoje.

Apanhou a bolsa, os livros. Desceu as escadas correndo, tinha só quinze minutos. No caminho, lembrou-se. Faltou escrever que tinha uvas fresquinhas. Pensou em ligar e deixar um recado na secretária eletrônica de casa. Desistiu. A Clarisse já anunciara um milhão de vezes: precisava parar com isso. Essa mania de se preocupar se todos à volta estão nutridos, gordos, corados. O marido encontraria as uvas ao abrir a geladeira, Clarisse teria dito. E se não as encontrasse? Se não as encontrasse é porque ele não estava com vontade de comer uvas, respondeu mentalmente pela terapeuta. Estava indo bem nas sessões. Guardou o celular na bolsa. Orgulhosa.

O orgulho foi se dissolvendo aos poucos, deixando em seu lugar a dúvida. Impossível separar feminino e alimento, concluiu. Quem é que amamenta? A divindade que toma conta da agricultura é uma deusa, e não um deus. Ceres para os romanos, Deméter para os gregos, é mulher. Não é homem. Ela simboliza o materno, o nutritivo. A palavra cereal vem daí. Pegou o celular, Mas ele é tão distraído… Então é problema dele – pareceu ter ouvido a Clarisse, já brava, dizer. Guardou o aparelho novamente na bolsa. E sua mão ficou lá dentro, como que anexada a ele.

Todos os dias, ela escrevia bilhetes para o marido. Instruções para a cozinha em geral. Onde estava isso, como se preparava aquilo, quantos minutos no microondas. Não se encontravam à noite. Ela saía para a aula enquanto ele ainda não havia chegado do escritório. E no dia seguinte, ao raiar do sol, a checagem: Jantou direitinho ontem? Ela não estava, genuinamente, preocupada se o outro limpara o prato, se achara o bife à milanesa no tupperware. Perguntar era um movimento automático, um instinto ancestral de amor e proteção à espécie, quase incontrolável. Um mistério, contudo decifrável; tinha a Clarisse, que estava ajudando as coisas a ficarem mais claras.

Intervalo da primeira aula, o celular toca. É o marido. Com brutal naturalidade, ele dispara o míssil: O Bob está sem comida. Onde fica a ração?

Ela pede um minuto aos colegas, afasta-se da roda, respira fundo. Sente-se esmagada pela fome excruciante que o cachorro poderia ter sentido naqueles intermináveis instantes. Declara-se incapaz de cuidar de outro ser vivo. Clarisse, desta vez, não vem ao seu socorro. Ela, então, chora. E desliga.

A blusa da minha mãe

Arquivo pessoal

De vez em quando é bom passar um tempo com quem já partiu. No Dia dos Pais eu vesti o colete que fora do meu avô. Na semana seguinte, enquanto eu procurava no meu armário o que usar, bati os olhos em uma roupa. E senti saudades da minha mãe. Meu avô sempre dizia que não era certo filho ir primeiro que pai. Um dia ele viveu aquilo que não concordava.

Dona Angelina fazia umas panquecas que eu nunca vi igual. A coisa mais simples do planeta: uma em cima da outra, muito molho de tomate. Só. Sem recheios nem firulas. Uma torre de panquecas. Construída aos poucos, no calor da velha frigideira cheia de furinhos em relevo que eu jamais soube onde foi parar.

Sempre tive dificuldade para pensar na minha mãe como uma jovem dos anos sessenta, onde quase tudo parecia estar em ebulição – música, comportamento, política. Dona Angelina era dona de casa exemplar. Dois filhos, mais eu chegando no finalzinho da década. Mamãe não fervia. (Ou fervia. E eu preferi acreditar no contrário.)

Por aqueles anos, ela foi madrinha de um casamento. Eu nem era nascida. Ela, que nunca teve dinheiro sobrando, foi esperta: investiu em algo que usaria depois. Comprou um conjunto, espécie de tailleur, na Prelude (chique, na época). Vermelho, num suave xadrez com preto e azul marinho. Ela só não imaginava que a aquisição fosse render tanto.

Quarenta e cinco anos (estimados) depois daquele casamento, apanho do cabide o que guardei daquele conjunto: a blusa com o casaqueto. A etiqueta ainda está lá, amarelada e puída. Mas o poodle, marca da confecção, continua empertigado em seus pompons. Digo bom dia ao totó, visto a blusa e vamos, mamãe e eu.

Ela me dá o braço e vai contando, com certa pena, que a saia do conjunto, de tão usada, não sobreviveu. Disse estar espantada como a peça combina comigo, ela pensava que éramos mulheres bem diferentes. Mamãe, às vezes, acha que eu deveria ferver menos.

Pergunto como vai a vida do lado de lá. Ela olha para o céu, em seguida para o chão. Desvia da fila indiana de formigas e me conta (de novo) a história de um tio que desdenhou dela ao vê-la, muito criança, em frente a um formigueiro, caprichando no plural: “Quantas formiguinhas!”. Só para se divertir, ele mandou que ela colocasse a mão ali. Ela obedeceu. E as formigas não tiveram dó.

Rimos mais uma vez e nos despedimos com um beijo, como sempre. Antes de ir ela me lembrou: aquela blusa não deve secar ao sol.

Álbum de família, ainda sem mim. As crianças: meus irmãos. Exceto o garoto da esquerda, que eu não sei quem é.