A sesta do meu avô

gato na poltrona
arte: Angie Rozelaar

Todo dia ele fazia tudo sempre igual: almoçava, escovava os dentes, se ajeitava na poltrona da sala e tirava um cochilo. Sentado, sempre. Por meia hora, meu avô se desconectava deste mundo – em um tempo onde desconectar-se tinha outra acepção – e fazia seus minipasseios astrais. Fizesse chuva ou sol, a sesta era sagrada. A vida inteira, até Deus convocá-lo.

Mas sentado, vô? Que jeito de fazer sesta. Por que não se deitava na cama de uma vez, fechava as cortinas, afofava o travesseiro? Oras, porque o sono na horizontal é reservado à noite, depois de um dia cheio de afazeres. Ele nunca disse isso, mas eu sabia. Em sua filosofia, cochilar deitado seria outra coisa, completamente distinta. Cheiraria a vadiagem, palavra não encontrada no léxico do Seu Paschoal.

Semana passada, resolvi imitá-lo. Se o hábito o fez completar noventa e sete primaveras inteirão, e alguns anos antes de partir ele subia no telhado para fazer reparos com a desenvoltura de um garoto, por certo essa é a receita da longevidade. Após o almoço, levei os meninos à aula de inglês, voltei, escovei os dentes. Sentei-me na poltrona da sala, seguindo à risca o modo de fazer. Fechei os olhos. Pronto.

Meu avô tinha um despertador interno que não o deixava passar de trinta minutos. Eu não vim equipada com tão útil dispositivo. Levantei-me, apanhei o celular na mesa de jantar, configurei o alarme para o mesmo tempo. Voltei à posição inicial. “Pensando bem, é pouco. Dez minutos só para pegar no sono”. Ajustei para quarenta. Agora vai. A cabeça pendeu um pouco para a frente, segurei. Como relaxar assim? Reclinei a poltrona um tantinho só, descaracterizando levemente o ritual original. Lembrei-me que ele cruzava os braços, talvez isso proporcionasse alguma firmeza extra. Poltrona um tiquinho reclinada, braços cruzados, despertador ajustado, cerrei os olhos, vamos lá. Já havia perdido tempo. Paciência.

Morfeu enfim acenou-me, com uma piscadela safada. Mal retribuí o flerte, o celular tocou. Não era o alarme. Consultório da dentista, para confirmar horário. Meu avô, que só viu telefone em casa aos setenta e cinco anos, nunca fora interrompido em sua soneca por conta de uma ligação. Até porque, não ouviria. A surdez pode ser uma bênção.

Postura retomada, poltrona um tantinho reclinada, braços cruzados, pestanas grudadas. Àquela altura, me restavam parcos vinte minutos. Bufei feito Vô Paschoal quando o Palestra tomava gol. Mexi de novo na porcaria do alarme e espalhei-me no sofá, feito geleia no pão. Dormi divinamente até a hora de ir buscar os meninos no inglês, sepultando de vez a esperança de viver até os noventa e sete.

 

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