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Os pesinhos

Quando visito meu pai, ele conta as mesmas coisas. Às vezes, na mesma ordem. Que come bem, que a comida é temperadinha, que não tem muito sal, nem muita gordura. Que ele pode, mas prefere não repetir o prato, embora outro dia tenha repetido, era macarronada. Que toma os remédios direitinho. Que ao se deitar ele ora por todos, um por um, e dorme a noite inteira, uma beleza. Que estão entregando o jornal, sim. Que não, não tem falado com o tio Jair, que eles precisam voltar a Três Pontas, na festa do Irmão Padre Victor, quantas horas daqui até lá, mesmo? Que a vida, se melhorar, estraga. Que tem feito ginástica e caminhada, mas não muito rápido, que se um dedinho enrosca no chão, babau. E que os pesinhos que eu dei são muito bons.

Meu pai nunca foi fitness. Depois de enviuvar, se aposentou e resolveu treinar seu coração partido, encontrando na ginástica e na andança o caminho da paz. Para incentivá-lo, dei a ele, trinta anos atrás, dois pesinhos para musculação. Pequenos, dois quilos cada, de ferro azulado. Nunca pensei que fossem fazer tanto sucesso. Desde então, os pesinhos o acompanham desde que deixou nossa velha casa da vila. Livrou-se do sofá grande, da geladeira e do fogão, mas os pesinhos jamais saíram de sua mobília. É deles que Seu Tonico, oitenta e nove anos, fala sempre que nos encontramos. Se os usa, de fato, é mero detalhe desimportante. E, como fosse a primeira vez, ele faz questão de encenar como os usa. Decorei a sequência: pesinhos nas mãos, primeiro exercita os braços, um, dois, depois flexiona as pernas, um, dois, eleva os pés, um, dois. Em sua biografia, feitos como ir e voltar a pé do Alto da Mooca à Praça da Sé, depois dos setenta. Vai dizer que não é mérito (também) dos pesinhos? O melhor presente que já lhe dei. Mais que os livros do Cony, os pijamas da Hering, os CDs do Pavarotti.

Onde ele mora há, logo na entrada, pequena rampa. Coisa de vinte metros. Ele diz que, como exercício matinal, a sobe e desce todo dia. Cada vez que vamos ao seu médico, ele narra a façanha e aumenta a extensão da rampa. Da última vez, cravou: cinquenta metros, doutor! Parei de corrigi-lo. Aprendi a exercer a filhandade com relativa leveza.

Como falei, nem sempre foi assim. Meu pai tinha uma senhora barriga, como se diz. E não era barrigão molengo, não. Bem formada, sólida feito rocha. Parecia eterna. Com as caminhanças, sumiu. (Alento meu; tenho tempo para virar fitness.)

Em sua oitava, quase nona, década de vida, meu pai amiudou-se. Está magrinho, virou peso pena. Se os quatro quilos dos pesinhos são sua dose diária de ânimo, as pernas já não respondem bem, as ideias lhe fogem, os nomes das pessoas e das coisas brincam de esconde-esconde, as memórias se apagam (exceto aquela da infância, quando a vaca Beleza pisou em seu pé, deixando seu dedão para sempre assim meio estranho, essa ele não esquece e não deixa a gente esquecer). Leve feito um passarinho, penso que a qualquer hora, sem aviso, nem pesar, ele irá embora.

Por isso, deixo registrado, para efeito de inventário, a quem interessar possa: o dia em que meu pai voar, os pesinhos são meus.

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[atualização: inventário realizado, meu pai alçou voo em 30 de janeiro de 2022. os pesinhos estão comigo.]

Gorda

comida

Quando minha avó soube que tinha diabetes, Doutor Fuad foi logo avisando: ela teria que mudar a alimentação. Algumas coisas ficariam de fora do seu cardápio, para sempre.

E ela passou a comer a mesma comida todos os dias. Arroz sem tempero com carne cozida idem, pão sem glúten – ela falava “glúti” – com Becel, laranja de sobremesa. Não sei se levou a sério demais as orientações, se entendeu tudo errado, ou os dois juntos. Com raríssimas exceções, e sempre seguindo o mesmo modo-sem-graça de fazer, de segunda a segunda, incluindo feriados, lá estava a mesma gororoba no prato da dona Josephina.

Cresci achando que diabéticos só podiam comer aquilo. Que droga de vida, pensava. Ficava penalizada ao ver minha avó recusar um biscoitinho, um quitute diferente, ainda que sem açúcar. “Não posso”, sentenciava.

Então a Rô, minha melhor amiga, aos quinze anos, teve diabetes. E agora, o que seria dela?, lamentei. Só poderia comer arroz, carne cozida, pão sem glúten com Becel e laranja o resto da vida.

Um dia, fui à sua casa e ela estava almoçando. Tomei um susto quando vi seu prato. Que variedade de cores, sabores, texturas, cheiros. Depois, vi que o café da manhã e o jantar também eram assim. Os pais dela estavam doidos, deduzi.

Não estavam.

Fora minha avó, e mais ninguém, que decretara que sua comida, a partir do diagnóstico, seria a mais insossa possível. Falta de criatividade ou equivocada resignação? Sim, há diabetes e diabetes. Mas nunca conheci um diabético que seguisse dieta tão miserável quanto a da minha avó. Não precisava ter sido assim.

Confesso que já fiz, e ainda faço, muita dieta. Só que de ideias. Vou cozinhando verdades únicas, servindo-me de pensamentos estreitos e acabo me satisfazendo com um caldo ralo de vida. Adoeço.

Faço terapia. Psicólogo é uma espécie de nutricionista. Agora ando incluindo mais opções no meu cardápio mental. Tenho comido ideias novas, bem temperadinhas.

Quero ser gorda. Gorda de mundo.

A maldição da barrinha de cereais

Sou capaz de aceitar, quase de bom grado, sugestões para melhorar minha alimentação. Peçam-me tudo: para abolir os lanchinhos noturnos, fingir que não sei o que é Bis, ignorar o segundo pãozinho, ficar satisfeita com cem gramas de nhoque ao sugo. Rosnarei de leve, farei cara feia, mas prometerei condicionar o pensamento (e a boca) em prol da saúde e da alegria diante da velha calça jeans. Proibido, porém: aventar a maldita barrinha de cereais.

Aquela, feita de nada e com gosto de coisa alguma. A pior sacanagem gastronômica já inventada em laboratório. O engodo alimentar do século XX. Mistura de borracha TK-Plast com bala puxa-puxa e lista de ingredientes que vovó jamais reconheceria. Mas com apenas 100 calorias.

Com a nutricionista, elas são o ponto da discórdia, o momento crucial e inegociável da consulta. “Dá pra trocar?”. Santa inocência, Batman! A barrinha É a substituta sintética da proteína, do carboidrato e dos minerais que não posso carregar na bolsa em suas formas originais, para aquelas horas em que bate a fominha.

É uma maldição contemporânea: elas estão em todas as gôndolas, dos supermercados às farmácias. Uma verdadeira invasão de tropas inimigas, falsamente saudáveis, a atingir meu paladar. Que venham, pois! Venço-as com meu exército de pipoquinha de canjica.

Há algum tempo, uma companhia aérea as distribuía (ainda distribui?) aos passageiros durante o voo. Faziam isso porque tinham certeza que ninguém iria pedir para descer.

Pego carona na onda reivindicatória, na fome de quereres, para propor um manifesto: pelo fim das barrinhas, pelo direito à alimentação plena e prazerosa, por um código de ética das barras, pela volta da lancheira!

Cereais, sim; barrinhas, não.

Cartas do coração

Arte: JakobT_98
Arte: JakobT_98

A enfermeira posiciona as ventosas no peito de meu pai, é hora do eletrocardiograma. Pergunto se posso ficar ao lado, na cadeira. Posso. Estar perto talvez não faça diferença alguma, mas publica o cuidado. Declara o afeto.

Ela ajusta os botões, aperta um deles e o papel zás!, assume seu posto. Torna a checar as ventosas, inspeciona os fios. Tranquiliza meu pai e delicadamente ordena, talvez pela quinquagésima vez no dia (muitos pacientes), “Agora, o senhor não se mexe”. Começa. A caneta do aparelho, em riste, vai escrevendo o que seu corpo manda. Eletrocardiograma é o ditado do coração.

Eu gostava de fazer ditados na escola. Escrevia rápido, terminava e buscava com o olhar a professora, aguardando a próxima palavra-desafio: “Quadrado”. Enquanto ditava para a classe, ela aproveitava para fazer outras coisas. Assim, dava tempo de errar, apagar, escrever de novo. Verificava as unhas, conferia o tempo lá fora. “Azaleia”. (Que, naquela época, ninguém ousava não acentuar). Caminhava até a porta, espiava o corredor e retornava. “Famigerado”. Essa era para ver quem escreveria com gê e quem botaria jota.

Meu pai obedece a enfermeira, está quietinho. Parece dormir. Eu também quero dormir, tão tarde. Acordado, naquele pronto-socorro, só mesmo o eletrocardiógrafo. Que segue ligeiro, traçando com determinação militar suas frases que sobem e descem. Como é que não se perde pelo caminho? Devem ser as tais linhas tortas de Deus.

Da cadeira, ouço o ronco – não do meu pai, do aparelho, que fala enquanto escreve. Como os doidinhos do sanatório, escritores dos livros imaginários da vida real. Ou será o contrário? Só sei que o exame vai ficando bonito na codificada caligrafia cardíaca. Fosse lição, meu pai tiraria nota boa.

Eu usei caderno de caligrafia. Sugerido a quem tinha a letra feiosa, nele as crianças aprendiam, na marra, a fazer letra bonita. Pena que nunca inventaram caderno de treinar, além de forma, conteúdo. Assim, as pessoas aprenderiam a escrever também coisas bonitas. A professora pedia para eu fazer a ‘barriga’ do bê bem redondinha, caprichar nas ‘perninhas’ do ême, não esquecer o ‘chapeuzinho’ nas vogais de som fechado. Letra é uma espécie de gente. Alfabeto, a família.

A enfermeira vem fiscalizar, o ditado está acabando. Vamos ver se meu pai passa de ano.

Que tanto a engenhoca rabisca no papel de pauta esquisita? O que o exame nos dirá? Se meu pai está doente, se vai ter de tomar remédio, se enfartou?

Que nada. Era só seu coração escrevendo uma carta de amor para minha mãe.

Just like a rolling stone

Foto: Quapan

Eu não disse? Nunca se deve circular com calcinha esgarçada e sutiã desatualizado. Se, por acaso, se é acometida de mal súbito e o socorro médico se faz necessário, é fatal: sua surrada intimidade será desastrosamente devassada. E nunca, jamais, dará tempo de substituir o traje antes que enfermeiros se divirtam com o péssimo estado da sua roupa de baixo.

Lição aprendida a duras penas: tive inédita cólica renal (das bravas) em pleno shopping center.

Aproveitava a liquidação quando ela deu seus primeiros sinais. Fingi que não era comigo. Estava deveras interessada em um jeans bacana, a poucos minutos de ser meu pela bagatela de trinta e nove reais. Cheguei a tomar o rumo do provador. Que nada. Tinha uma pedra no meio do caminho. Precisamente, entre o rim e a bexiga.

Ora (direis) ouvir estrelas! E eu vos direi, no entanto, que, frente à lancinante dor, não só as ouvi, como as vi. Todinhas.

Não me recordo como cheguei ao ambulatório do estabelecimento. Só me lembro de teimar com o segurança, não carecia de cadeira de rodas. Carecia. Em seguida, na maca, expus meu derrière a uma injeção intramuscular de analgésico. A calcinha? Uma das piores do meu prejudicado acervo.

Em seguida, a caminho do hospital, no rádio do carro o locutor relembra a impermanência: “Em vinte minutos, tudo pode mudar”. De fato, a agenda do meu dia mudara nesse exato e breve espaço de tempo. Os recados estão por toda parte.

No pronto-socorro, fui beneficiada pela meia-luz da sala de exames. Bastava de constrangimentos. Já em casa, ainda zonza, contabilizei os prejuízos. Marido deixou o trabalho mais cedo, para me acudir. A cria, para voltar da escola, foi rateada entre os amigos. Fui flagrada com lingerie mulambenta. Ratifiquei vox populi: “Pior que dor de parto”. Nada se compara, no entanto, à dor de ter perdido o jeans em promoção.

Eu, fã confessa e irrecuperável de Lygia Fagundes Telles, sabia que ainda viveria (mais) um episódio com ela. Só não imaginava que fosse tão literal; ainda bem que é uma pedra só, e não uma ciranda delas. Trouxe comigo seu retrato tirado no ultrassom. Desejo que ela siga seu caminho, de preferência em paz. Just like a rolling stone.

A comédia da vida materna, parte II: a missão

E a pediatra das crianças pediu exames de fezes. Daqueles que não se colhe em laboratório, e sim, no recôndito do lar. Todo ano ela faz isso. Deve se divertir um bocado imaginando as pobres mães (pais não dão conta, morrem de nojo) travando uma luta inglória com frascos esterilizados e pazinhas traiçoeiras, à espera de uma boa amostra de cocô.

Não satisfeita com o trivial, e para meu desespero, ela pediu logo três amostras. Vejamos: dois filhos, total de seis porções a serem colhidas (em dias alternados), armazenadas e entregues no laboratório, no máximo em 12 horas. Lá vou eu, inspecionar o relógio de hora em hora, enquanto verifico, não sem demonstrar alguma ansiedade, a predisposição deles em consumar o ato. Rezo para que não seja antes das sete da noite; se for, o prazo vai para as cucuias e a produção, para o esgoto.

Ela também pediu exames de urina. Embora feitos no laboratório, esses representaram igualmente um ato de bravura – crianças raramente alinham necessidade, desejo e horário, gostam de brincar de acender e apagar a luz no banheiro e sempre querem ver como é o sabonete. O que dirá realizar o outro – de altíssima complexidade – em meio à rotina doméstica e sem diploma de enfermagem ou certificado de contorcionismo. Epopeia é o mínimo. Nos faz questionar o porquê de, um dia, termos desejado perpetuar a espécie.

Quem não tem filhos pequenos não faz ideia, mas uma coleta dessas não é simples. Requer prática, habilidade, destreza e, sobretudo, estômago. Adultos se programam, conseguem estabelecer um razoável planejamento refeição/toilette, agem sozinhos. Já com a gurizada, é preciso estar eternamente alerta, apetrechos ao alcance, pois qualquer hora pode ser hora. E se perdermos essa hora, é como diz Adoniran em seu Trem das Onze: “só amanhã de manhã”.

Mãos à obra: eu organizo o movimento, oriento o Carnaval, ponho-me a postos e não perco a cria de vista. Ao ecoar do chamado, empunho frasco e pazinha, saio voando. Muitos serão os alarmes falsos, até que chegue a Hora H. Ela chega e, nesse momento, faz-se mister evocar uma energia superior, rogando ausência momentânea de olfato e frescura. O mais velho se posiciona no vaso sanitário, eu me concentro. “Espera um pouquinho, filho”. “Senta mais para cá”. “Assim está bom?”. “VAI!”. Nesse instante, a caçula, sugestionada, chama do outro banheiro: “Também estou com vontade!”. Não há alternativa: o pai terá que enfrentar seus limites. Pelo menos, até eu estar liberada para acudi-lo.

É assombrosa a possibilidade de avaliar se uma pessoa está saudável ou não através da análise de seus dejetos. As universidades poderiam formar médicos tarólogos, com poder de visualizar a saúde de seus pacientes através dos arcanos, dispensando, assim, as constrangedoras coletas de substâncias orgânicas e mal-cheirosas.

A delicada operação é concluída. Ainda há, porém, a bizarra finalização: manter as amostras na geladeira. No dia seguinte, todos almoçarão fora. Não há paz quando se sabe que elas – ainda que triplamente acondicionadas – estiveram próximas aos tomates.

As cenas se repetem por mais duas vezes nos dias seguintes, com pequenas variações e, eventualmente, alguns acidentes. Ao todo, três idas ao laboratório. A recepcionista já sorri quando me vê.

“Ser mãe é padecer no paraíso”, disseram. Com direito a passeios pelo purgatório, admita-se. Mas missão dada é missão cumprida. Dias depois, a recompensa: resultados negativos.

A ditadura do fitness

Ilustração: Robin Ator/Glowinthedarkpictures.com

Depois das bruxas e dos fumantes, a humanidade deu agora de caçar, impiedosamente, outra categoria: os que não gostam de se exercitar.

A mensagem é onipresente, do anúncio de remédio para o fígado à embalagem de Sucrilhos: “Tenha uma vida saudável, pratique exercícios físicos”. Sepultada a ditadura militar, é a vez da ditadura do fitness. Tão cruel quanto, nela os seres são separados entre ativos e sedentários, sadios e não-sadios, terráqueos e extraterrestres.

Não se trata de mensagem motivacional, nem de saúde; é comunicação estratégica: os fabricantes querem tirar os seus da reta quando, lá na frente, você infartar de tanto comer porcaria. Terão dito: “Eu avisei”.

Abasteço minha tigela de cereal enquanto leio o rótulo. Instantaneamente, se forma à minha frente a paisagem da última academia de ginástica que frequentei, durante um período bem menor que o contratado. De lá, saí correndo. Fugi. Escafedi-me. (O sonho de toda academia é ser uma sucursal de Salvador, inventando micaretas diárias para levantar o astral da moçada. No meu caso, tempo perdido: micaretas só despertam em mim as últimas três sílabas.) A professora ligou, um mês depois, para saber o que havia acontecido. Quis inventar uma história triste e trágica, mas como todo pensamento carrega em si o poder de se realizar, confessei: “Sabe que que é? Não gosto de ginástica”. Tentei reaver os meses pagos e não utilizados, e ela: “Você fica com um crédito, quando você se animar, volta”. Ela não entendeu. Adiós, muchacha!

Agora sei como se sente uma bruxa, um fumante. Bruxas, ao menos, não precisam se expor nos formulários dos consultórios médicos.

De tempos em tempos, quando resolvo me exercitar três vezes por semana porque dizem que, assim, chegarei supimpa aos cem anos, fazendo Tai-Chi-Chuan na praia e tudo, o meu diabinho da consciência, um gordinho flácido e feliz, se empoleira no meu ombro. E tenta me convencer que todas as outras atividades previstas na agenda do dia – fazer supermercado, levar o gato ao veterinário, pregar botões caídos da camisa, fazer depilação, arrumar o armário de tupperwares, terminar o texto para o editor, meditar pela paz mundial – são mais urgentes e importantes que dar uma volta na Lagoa do Taquaral.

Ele, o diabinho, lembra também que na padaria tem açaí com banana, guaraná e granola, que é quase a melhor coisa do mundo, servido numa tigela deeeste tamanho. Quem pode com uma consciência asssim tão persuasiva?

Não sou esportista, detesto tênis, mal sei andar de bicicleta. Mas amarro meus sapatos com facilidade, passo em pequeninos vãos entre os carros nos estacionamentos e caibo no tamanho 16 da maioria das roupas infanto-juvenis. Portanto, rogo, em prece, ao pai nosso que estais no céu: deixai-me em paz com meu ócio e minha preguiça, contanto que meu HDL, o bom colesterol, esteja alto. Deixai-me cair na tentação da gula e ajudai-me a manter meu IMC em torno de 22,5. Mas livrai-me da esteira e dos aparelhos de musculação. Amém.

Consulta imaginária com o médico que não existe

Ilustração: Michael Young/Flickr.com

Entro na sala que cheira a baunilha. Aboleto-me na cadeira lilás e pergunto, na lata: “O que eu tenho, doutor?”.

Ele me olha por cima dos oclinhos à la John Lennon e diz que, antes, precisa pedir alguns exames. Adianta, porém, o que eu estou atrasada em saber: “Está me parecendo um caso de vida que está ao contrário. Ou do avesso”.

Sempre quis ir a um médico em que eu não precisasse falar nada para que ele soubesse tudo. Que não visse no fígado só um fígado, nem tratasse a dor como final das contas. Que cerzisse meus órgãos descosturados, e eu saísse da consulta com um patchwork feito dos meus cinquenta e cinco retalhos anuais. Nem médico de verdade ele precisaria ser. Há horas que precisamos de gente que não é o que é. Irmão que não é irmão. Professor que não é professor. E assim por diante. Não vale para amigo, nem construtor; confiança e casa são coisas que não podem cair.

Primeiro, o doutor ausculta meu coração. Não me conta, no entanto, o que o músculo involuntário lhe revela. Diz que é segredo. Segredos do coração.

Quer saber quando foi a última vez que me descabelei, bufei pelas ventas, subi nas tamancas, rodei a baiana. “Nesta semana?”, pergunto. Ele me olha novamente por cima dos óculos; preciso entender esse seu sinal.

Diz que precisa examinar minhas raízes, prontamente lhe mostro meus pés. Ele ri. “São os olhos e os ouvidos que eu quero perscrutar”. Preciso aprender ser menos literal.

Conto que meu relógio cronológico está de mal do biológico. “Para isso não há remédio, ele avisa. “Eles não são à prova de tempo. Nem dê corda”. Queria era ter um relógio de corda. Para pular.

Peço uma pomada para as ideias. “Elas coçam à noite, doutor, não me deixam dormir”. Ele sorri um sorriso antigo e apanha qualquer coisa no armário. “Passe isto nelas, uma vez ao dia”. É amostra grátis não-tributada de atitude.

Reclamo da memória. Às vezes, nas minhas pesquisas mentais aparece “page not found”. Ele me recomenda exercícios de repassar, todo dia, como foi o anterior. “E vale mudar alguma coisa, doutor?”. O olhar sobre os óculos, de novo. Gosto desse cara.

Na despedida, o médico de suavidade bege e avental idem não quer cobrar a consulta. Elogia o timbre da minha voz, mas não repara em meu anel de borboleta, quebrado. Receita pílulas brancas para sonhar colorido, e diz que eu só preciso amanhecer.

De peito aberto

 

Ilustração: Marc Palm/Flickr.com

Ontem foi dia de mamografia. Exame de rotina, Doutora Clara diz que, com meu histórico, não se pode bobear. Obedeço. Além do mais, minha mãe dizia que mulher precisa se cuidar. Plantou essa semente em mim, trato de cultivá-la. Duas vezes por ano, sou virada pelo avesso, comprimida, vasculhada. Fuçam tudo lá dentro, medem, comparam. Posso não conhecer na íntegra o meu ‘eu interior’, mas os médicos, sim. Ave, inventor do Raio-X. Antes de sair de casa, não rezei. Se, por acaso, houver algo nos meus peitos, já está lá, mesmo. Depois a gente vê. Essa é uma prece que deve ser diária. Mais de agradecimento que de pedido, bom lembrar.

Minha mãe teve um nódulo no seio, e soube dele o tempo todo. Não contou para ninguém e não fez exame algum, numa espécie de ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’. Nem precisou. Quando procurou o Doutor Fuad, era tarde. (E eu fiz minha mamografia ontem à tarde. ‘Tarde’ é mesmo uma palavra cheia de nuances.) Aquele nódulo deu um nó nas nossas cabeças. Pouco tempo depois, apareceu um na minha garganta. Aprendi a conviver com ele. Só dói de vez em quando, quando engulo uma saudade meio grande.

Na sala de espera da clínica as grávidas se abanam, enquanto tentam dar conta dos cinco copos d’água que alguns exames exigem. Um ou outro marido acompanha, entretido com os jornais que ficam sobre a mesinha. Eu, que já encerrei a produção de filhos, prefiro as revistas, para me atualizar sobre quem casou e quem descasou. Assim a cabeça não inventa coisas. Quando me chamam, já sei. Devo me despir naquela salinha, avental aberto na frente, só um minuto, a médica já vem. Eu poderia trabalhar ali, conheço o script inteiro. Na hora do exame, procuro não fazer nenhuma gracinha típica da situação. A enfermeira conhece todas de cor e salteado. Qualquer tentativa de animar o ambiente será um martírio para ela, cuja rotina consiste em encaixar no aparelho de dois metros e meio de altura e ares de big brother as mamas da mulherada – cada uma com dimensões e sensibilidades distintas –, pedir para que tenham paciência, só mais um pouquinho, pronto. São cerca de trinta exames por dia, a enfermeira contou. Quantos daqueles resultados vão dar nó nas cabeças das suas donas?

Depois de operada, minha mãe inventou um jeito de disfarçar a ausência compulsória de uma das mamas. Um sutiã com bojo recheado de sementes, não me lembro de quê. Calibrava a quantidade em frente ao espelho, o peso e o formato ficavam parecidos com os de um peito de verdade. Bem mais em conta que os sutiãs de silicone industrializados. Hoje sei que ela carregava em si mais que as sementes estéreis do sutiã, fadadas a nunca brotar. Forte como uma árvore, minha mãe tombaria anos depois, vencida mais pela exaustão que pelo câncer. Colhi as sementes que sobraram e as guardei. Por isso, visito sempre a clínica.

Costumo receber boas notícias nesses exames. Depois de amanhã, Doutora Clara há de ficar feliz. Minha mãe, de certa forma, também. E eu, de uma vez por todas, saberei: suas sementes vingaram, sim.

Mamão papaya

Ilustração: Mars

Não posso passar perto de mamão papaya em dia de sacolão. Compro. O ritual de colocá-lo na cestinha, levá-lo para casa e acomodá-lo na fruteira representa o meu desejo de ser uma pessoa mais saudável. De me alimentar melhor, emagrecer, acordar cedo, voltar a caminhar na lagoa, ser mais gentil e paciente, chegar aos cem anos fazendo tai-chi-chuan na beira da praia com o nascer do sol. O mamão papaya é a minha promessa de ano novo, sacramentada toda semana. Sepultada quando, de longe, o avisto apodrecendo na fruteira. Ah, não. Fiz de novo.

Para ajudar no cumprimento da promessa, de tudo já tentei. Transferi a fruteira de lugar, para não perdê-lo de vista. Guardei-o na geladeira, para não perdê-lo prematuramente para os fungos. Arrumei um prato bonito para servi-lo no café-da-manhã. Mas ele sempre retorna intacto ao seu posto. O mamão papaya perde para o pão com requeijão. O Sucrilhos. O bolo de fubá. A granola com sua colega, a banana. Para azedar tudo de vez, aqui o mamão só tem a mim como simpatizante. Se ele não for meu, não será de ninguém. Melhor dizendo: será das minhocas que habitam a composteira recém-instalada no quintal. Sim, tenho novos inquilinos. Ideia do marido, que resolveu dar uma mãozinha para a sustentabilidade do planeta. Ou represália, por conta dos bichos da rua, bem maiores, que vivo trazendo para casa. Torci o nariz: as minhocas ou eu. Elas ficaram. Eu também. São boazinhas, reconheço. Não fazem barulho, não saem de seus aposentos, não arrumam encrenca. Quase invisíveis. E comem quase todos os nossos restos. Devem vibrar quando o papaya, inteirinho, cai lá.

Mamão, na minha família, é como um parente bem-vindo, inteligente. Respeitado, até. Mas que ninguém quer muito papo. Ninguém dá muita bola. Fica de lado, esquecido, apesar de todos reconhecerem seu valor. Segue decompondo-se na solidão enquanto todos vão para os pratos – bananas, laranjas, mexericas, mangas, até o exótico gengibre – , menos ele. O último resistiu cinco dias em completo abandono. Escondido sob os limões, que também não saíram para passear naquela semana. Mais resistentes, estes conseguiram aguardar o dia de fazer companhia ao badejo. O frágil papaya, no entanto, já se encontrava em adiantado estágio de putrefação. Um cadáver vegetal. Duvidei da felicidade das minhocas quando o viram. Meu projeto de vida longa era, mais uma vez e literalmente, enterrado.

Semana que vem, eu sei, farei tudo de novo. O homem se distingue dos demais animais, dentre tantas coisas, pela capacidade de ter esperança. Bicho não sabe o que é isso. Com as minhas renovadas, escolherei um exemplar bem firme, dum alaranjado vivo. Cuidarei para que não esteja, e nem fique, machucado. Eu o colocarei sobre as outras frutas, papayas são sensíveis. Determinada, iniciarei um diário e registrarei: hoje comi mamão. Darei o passo definitivo em direção aos meus cem anos, ao tai-chi-chuan na praia. Daqui sessenta anos serei, então, entrevistada por um repórter curioso, ávido por descobrir o segredo da minha longevidade. Contarei que dia sim, dia não, ao longo da vida, dei casca – só a casca – de papaya para as minhocas comerem. Basicamente isso.

O sapato, a rosa e a estrela

Foto: Travlinman/Flickr.com

Fim das férias escolares. Como se faz após a passagem de um furacão, trato de colocar, aos poucos, a vida em ordem. Começo pela saúde. A física, porque a mental foi para o brejo.

Toco a campainha. Pela porta de vidro, vejo que a recepcionista não está em seu posto. Espero. Um pássaro, uma moto e um bêbado passam na rua. Cada qual com sua melodia. E nada da recepcionista aparecer. Uma moça de cabelos longos, que aguarda lá dentro na sala de espera, me vê. E, talvez com pena de mim, derretendo sob implacáveis trinta e dois graus, abre a porta. Agradeço. Não sem antes pensar: eu não seria capaz da mesma cortesia. E o medo de abrir para uma bandida travestida de paciente? Invejo sua atitude e prometo ser menos neurótica daqui para frente. Ou, simplesmente, mais confiante.

A recepcionista retorna. Pede que eu ponha o dedo indicador na leitora biométrica. Coloco o polegar. Não disse? O brejo. Aboleto-me no sofazinho e avalio a leitura disponível. A coisa mais divertida das salas de espera são as revistas. Folheio um troço qualquer. O mais interessante nelas é a absoluta desimportância de seus títulos, seu descompromisso com qualquer esforço mental. E meu radar capta o quê? Um par de sapatos. Sempre eles. Clássicos, charmosos, num delicado padrão de cores de areia e rosa. Penso em flores no deserto. Déjà vu: eu já vi aqueles sapatos antes. Só não sei quando, nem onde. Enquanto matuto, divido meu olhar entre a revista e a dona deles. Bingo: é a moça que abriu a porta. Mais que isso: a mesma que eu vi dias atrás, na clínica a poucos quarteirões dali, onde fiz os exames que agora trago para a médica ver.

Finjo que leio, mas não tiro os olhos dela. Essa minha vontade de falar com Deus e o mundo. (Quem mais nota isso é Deus.) De contar coisas, fazer perguntas. Na maioria das vezes, me controlo. Noutras, não.

– Você estava naquela clínica aqui perto, outro dia?

O sorriso da moça se abre, tal uma rosa, da cor rosa dos seus sapatos:

– Eu ia perguntar a mesma coisa! Reconheci você pela estrela – disse, apontando para a tatuada em minha perna.

– Já que é assim, também confesso: reconheci você pelos sapatos. São tão bonitos!

Desenho o argumento do curta-metragem: duas mulheres fazem o mesmo exame de rotina, na mesma clínica, no mesmo dia. As duas são pacientes da mesma médica. As duas têm consulta na mesma terça-feira. Uma às cinco, outra às cinco e meia. As duas reconhecem, uma na outra e na mesma hora, um sinal, uma particularidade. Que permanecem guardados na memória de ambas, junto a tudo o mais que habita a vida de cada uma, sem que nenhuma se dê conta disso. A uma cabe a gentileza do dia. À outra, a primeira palavra. Para que um fio invisível se estabeleça entre elas, ligando outros fatos que sequer serão sabidos.

A casualidade e sua vizinha, a coincidência, por morarem tão perto, também vivem se esbarrando. Tem até quem as confunda, são mesmo parecidas. Mas é só prestar atenção. Uma se levanta cedo e está sempre cuidando das rosas do jardim. A outra gosta de ficar acordada até tarde na varanda, descalça, quando o céu é estrelado como esse de hoje.