Quando visito meu pai, ele conta as mesmas coisas. Às vezes, na mesma ordem. Que come bem, que a comida é temperadinha, que não tem muito sal, nem muita gordura. Que ele pode, mas prefere não repetir o prato, embora outro dia tenha repetido, era macarronada. Que toma os remédios direitinho. Que ao se deitar ele ora por todos, um por um, e dorme a noite inteira, uma beleza. Que estão entregando o jornal, sim. Que não, não tem falado com o tio Jair, que eles precisam voltar a Três Pontas, na festa do Irmão Padre Victor, quantas horas daqui até lá, mesmo? Que a vida, se melhorar, estraga. Que tem feito ginástica e caminhada, mas não muito rápido, que se um dedinho enrosca no chão, babau. E que os pesinhos que eu dei são muito bons.
Meu pai nunca foi fitness. Depois de enviuvar, se aposentou e resolveu treinar seu coração partido, encontrando na ginástica e na andança o caminho da paz. Para incentivá-lo, dei a ele, trinta anos atrás, dois pesinhos para musculação. Pequenos, dois quilos cada, de ferro azulado. Nunca pensei que fossem fazer tanto sucesso. Desde então, os pesinhos o acompanham desde que deixou nossa velha casa da vila. Livrou-se do sofá grande, da geladeira e do fogão, mas os pesinhos jamais saíram de sua mobília. É deles que Seu Tonico, oitenta e nove anos, fala sempre que nos encontramos. Se os usa, de fato, é mero detalhe desimportante. E, como fosse a primeira vez, ele faz questão de encenar como os usa. Decorei a sequência: pesinhos nas mãos, primeiro exercita os braços, um, dois, depois flexiona as pernas, um, dois, eleva os pés, um, dois. Em sua biografia, feitos como ir e voltar a pé do Alto da Mooca à Praça da Sé, depois dos setenta. Vai dizer que não é mérito (também) dos pesinhos? O melhor presente que já lhe dei. Mais que os livros do Cony, os pijamas da Hering, os CDs do Pavarotti.
Onde ele mora há, logo na entrada, pequena rampa. Coisa de vinte metros. Ele diz que, como exercício matinal, a sobe e desce todo dia. Cada vez que vamos ao seu médico, ele narra a façanha e aumenta a extensão da rampa. Da última vez, cravou: cinquenta metros, doutor! Parei de corrigi-lo. Aprendi a exercer a filhandade com relativa leveza.
Como falei, nem sempre foi assim. Meu pai tinha uma senhora barriga, como se diz. E não era barrigão molengo, não. Bem formada, sólida feito rocha. Parecia eterna. Com as caminhanças, sumiu. (Alento meu; tenho tempo para virar fitness.)
Em sua oitava, quase nona, década de vida, meu pai amiudou-se. Está magrinho, virou peso pena. Se os quatro quilos dos pesinhos são sua dose diária de ânimo, as pernas já não respondem bem, as ideias lhe fogem, os nomes das pessoas e das coisas brincam de esconde-esconde, as memórias se apagam (exceto aquela da infância, quando a vaca Beleza pisou em seu pé, deixando seu dedão para sempre assim meio estranho, essa ele não esquece e não deixa a gente esquecer). Leve feito um passarinho, penso que a qualquer hora, sem aviso, nem pesar, ele irá embora.
Por isso, deixo registrado, para efeito de inventário, a quem interessar possa: o dia em que meu pai voar, os pesinhos são meus.
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[atualização: inventário realizado, meu pai alçou voo em 30 de janeiro de 2022. os pesinhos estão comigo.]