Amanhã

Ilustração: India Amos/Flickr.com

Contei: são seis livros novos repousados ao lado da cama, mais outro tanto, arrumadinho na estante. Adquiridos, emprestados, ganhos. Todos aguardam, pacientemente e em certa fila anárquica, minha leitura. Que inicia, avança, mas não finda. É a roda-viva do dia-a-dia, fazendo picadinho de mim. A maldição do fiado, enfeitiçando a biblioteca particular: só amanhã.

Quase sempre, vivemos, os livros e eu, algo parecido com a síndrome do mamão. Eternamente renovado na fruteira, sob os votos de papá-lo todos os dias, ele há de garantir longevidade e intestino em ordem. Já registrei em cartório: quero completar cem anos fazendo tai-chi-chuan na praia. E o fruto é protagonista do plano. Fatalmente, porém, eu o flagro apodrecendo. Ao preferir o açucarado e fácil Sucrilhos matinal, me esqueço dele. Assim é com o livro, que vive perdendo a vez para eventuais fast-leituras, lotadas de calorias e poucos nutrientes. Livro, ao menos, não estraga. Também contribui para a vida longa, põe a mente para funcionar, faz bem à pele. E, de quebra, também é cheio de sementes.

Dei para colecionar livros na (vã?) promessa de que esse, ah! Esse eu vou ler. O problema é que arrumo sarna demais para me coçar. A leitura prometida fica para o dia seguinte, mês que vem, nunca. E ‘nunca’, todo mundo sabe, não existe no calendário. Eles, os livros, vêm parar nas minhas mãos por vários motivos. Um é culpa do projeto gráfico, lindo de morrer. Outro, de um assunto que eu pre-ci-so dominar. Mais um, daquele autor que eu não perco nenhuma vogal publicada. Mais outro, porque o amigo achou que eu deveria ler, e me deu de presente. (Quase sempre o amigo está certo.) Como procuro não questionar os mecanismos (ou ordens) do universo, eu os acolho, dou-lhes as boas-vindas, apresento-lhes a estante, confiro suas orelhas, exploro até a página vinte. Ler inteiro, que é bom, necas. Em casa, a proporção entre lidos e não-lidos beira o fracasso: um para dez. Até o criado ao lado da cama, que não é nada mudo, levanta a voz para mim, vez por outra: “O que há com você?”. Não sei de qual doença padeço.

Tê-los, apenas tê-los, vistosos na estante, funciona como alívio, espécie de garantia: a de que só sua presença já fará seu conteúdo ser telepaticamente absorvido. Tornar-se proprietário de um livro dá certa paz, algum conforto, uma quase segurança. Sabe-se lá se ele, mesmo quando não é folheado, não é capaz de emanar suas letras pelo espaço, além capa, além prateleira?

Batizei um lugarzinho em meu computador, no browser, de “Para ler depois”. É lá que guardo o que vou descobrindo de interessante no oceano sem fim da web. São links de artigos, matérias, críticas, resenhas, blogs. E, como nas promessas para livro e mamão, juro retornar em breve. Sempre dou cano. Não sei ler tanta notícia.

Antes de dormir, contei de novo os livros ao lado da cama. Havia cinco. Li? Não. Marido levou um, sem avisar. Só assim. E viva o fiado.

4 comentários em “Amanhã

  1. OK… tenho minha pilha de livros ao lado da cama, na estante, ao pé da cama… e tenho também os que li e aguardam, pacientemente, para serem lidos novamente. Trabalho em uma biblioteca e tenho que me conter para não levá-los para casa. Mas há uma saída talvez: clube de leitura! Um grupo de amigos que se reúnem à cada seis semanas, para lerem e debaterem os livros, regados a vinho ou outra bebida qualquer. Que tal? Também tenho minhas pastas (lendo, para ler, dicas… são tantas!).
    Quanto ao mamão… mais maduro, parta-o ao meio, tire as sementes e devore-o com a colher, raspando-o e deixando o suco fluir em suas mãos! beijos

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  2. Silmara, vc tem filhos, não? Pois é, há épocas de livros com folhas, e há épocas de livros-filhos. Os das folhas, podem esperar; o crescimento dos filhos, não. Os filhos crescerão e os livros estarão aguardando pacientemente a tua leitura. É assim que penso quando troco pilhas de livros por momentos a mais acompanhando o crescimento do meu filho (entre outros tantos afazeres na fila!). Um dia, teremos muito tempo para ler todos os que aguardam, como dizes, anárquicos, na fila!
    Já o mamão… faça uma forcinha, rsrs…
    Lindo texto!
    Abraços

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  3. Olha, vc acabou de me descrever aí. Eu comia livros.. lia tudo… sempre li demais. Ultimamente a fila não anda… tudo parado esperando a vez. A Simone até debocha de mim porque vivo comprando livros e jurando que vou devorá-los “esse eu vou ler”… e chego até a metade, quando muito.
    Adoro comprar livros. Adoro senti-los nas mãos, adoro cheirar, quando folheio rapidinho, aquele ventinho bom que sopra no rosto.
    Eu amo livros. Tenho dúzias deles, mas, por enquanto, o privilégio é do Pessoa, com seu desassossego dormindo com o meu. Esse eu leio um trecho por dia… sagrado… feito Bíblia. É a fase. Por aqui tb esperando o amanhã… que talvez nunca chegue.

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  4. Silmara,
    Tá ótima sua crônica ‘mea-culpa’ sobre os livros e o mamão!
    A gente NUNCA vai dar conta de tanta notícia mesmo, mas, pelo menos, você preenche essa lacuna com crônicas que um dia vão virar LIVROS que vão repousar ao lado de outras camas!

    um beijo, Dinah

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