Desencaixotando

arte: Petter Duvander
arte: Petter Duvander

O pior, pior mesmo, de se mudar não é a fase de procurar o novo lar pela cidade, nem passar uma temporada fazendo dos classificados sua única fonte de leitura, nem ouvir lorota de corretor, nem sondar se os novos vizinhos são gente boa, nem aguentar o azulejo cor de rosa do lavabo. O pior, pior mesmo, é desfazer as caixas.

Elas, a solução perfeita para acomodar o que vai no caminhão, do frágil ao inquebrável. Elas, a redenção para que suas calcinhas e sutiãs não embarquem junto às ferramentas do marido ou aos carrinhos do filho mais novo. Elas, a promessa de que as coisas ficarão tão de jeito que, no máximo em dois dias, praticamente se auto-organizarão em seus destinos.

Enquanto a coisarada é embalada nas caixas mágicas, transportadas da casa velha até o caminhão de mudança e do caminhão até a casa nova, você se compadece dos moços que tiveram de estacionar na rua porque o regulamento do condomínio não deixa entrar caminhão grande e, portanto, têm de carregar o peso por cem metros no muque, sobem e descem escadas quando a tralha não cabe no elevador, suam em bicas, ensopam o uniforme azul marinho. “Aceitam uma água geladinha?”. É o máximo que você pode fazer por eles.

Porém, assim que a última caixa pousa no chão da casa nova, são eles que, secretamente, se compadecem de você. Dali, eles se vão, felizes da vida, tratar de mais duas mudanças, uma na zona norte e outra na zona sul. Embalar, transportar da casa até o caminhão e do caminhão até a casa nova, estacionar na rua por causa do regulamento, cem metros no muque, as escadas, as bicas, o uniforme ensopado. Um deleite, perto dos intermináveis e desesperadores momentos que você vai viver desfazendo as caixas que, repentinamente, deixaram de ser mágicas. Ser carregador de caixas, e não desfazedor delas: que dádiva!

Fazê-las é o céu. Desfazê-las é o inferno. Conviver com elas é alguma coisa entre um e outro. Os gatos, dada a longa espera, até desistem de ganhar seus novos, grandes e espaçosos brinquedos. Gatos, o mundo sabe, adoram caixas de qualquer tipo e tamanho.

Para cada caixa desfeita surgem duas, cheinhas, num processo semelhante ao da abiogênese. Não há lógica à luz da ciência, física quântica ou ocultismo, que explique por que encaixotar leva um dia e desencaixotar, vinte.

Ou mais.

Há nove anos nos mudamos para nossa casa atual. Há nove anos duas caixas de papelão permanecem num canto do meu quarto, embora já tenham habitado o corredor. Integradas à paisagem doméstica, adquiriram até utilidade com o passar do tempo. Desenvolvi afeição por elas. Cogitei revesti-las com algum material decorativo, de modo a ficarem mais jeitosas. Imbuída de coragem, comecei a desfazê-las três vezes, e três vezes desisti. Onde enfiar aquilo tudo? Já nem sei mais o que é “aquilo tudo”, não me lembro do seu conteúdo e não levo jeito para Pandora. Um rótulo puído, escrito à mão com marcador preto, indica que ambas abrigam álbuns de fotografia, que ficaram sem lugar nos armários novos e a preguiça de reconfigurar os espaços venceu. Afinal, para quê tanto papel, se a memória de quatro gerações cabe num pendrive?

O pior, pior mesmo, é explicar as caixas, quando alguém passa por ali e pergunta.

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