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Retrospectiva

Fui preencher o cadastro na internet, tinha que informar a data de nascimento. Dia, 7. Mês, 5. Fácil. Já o ano em que vim ao mundo se situava a, no mínimo, dez rolagens na tela. Quem manda ter mais de meio século?

A cada ano exibido, fiz instantânea e aleatória retrospectiva. Pulei alguns, me ative a outros. Quando dei por mim, havia feito um breve apanhado da minha existência neste plano.

2020 é ano que nem acabou e já tem informação demais. E 2019, por enquanto, leva o mérito de ter sido véspera de um ano muito louco, do tipo “éramos felizes”. Segundo livro publicado em 2016, o primeiro em 2012, o blog em 2009, depois de dois anos em uma gaveta digital. Em 2006 nasceu Nina. Luca, em 2004. Com eles, a certeza de que ter filhos é como pintar os olhos; um sai sempre diferente do outro.

2001, 11 de setembro. Grudada na TV, atendendo ao telefone e dizendo que estava tudo bem. Um ano antes, dei à família, no atacado, as notícias: estou namorando, vou morar com ele, vamos nos casar, nos mudaremos de país. Nos anos anteriores, trabalhei, fiz terapia, tai-chi-chuan e bronzeamento artificial. Comprei bolsas e sapatos compulsivamente, e quase morri de amor pelo menos duas vezes.

Rolei até 1988. Meu primeiro estágio, no Museu do Ipiranga, nome artístico do Museu Paulista. E o primeiro salário torrado praticamente inteiro em uma calça jeans Ellus. 1987: no Dia dos Namorados, Dona Angelina, eterna namorada do meu pai, morreu. Eles, que se conheceram em um Dia de Finados. Eu tinha vinte anos e descobri uma relação especial entre amor e morte.

Em 1986 entrei na faculdade de Comunicação Social. Estranhei; a maioria dos alunos chegavam e iam embora de motorista particular. E usavam botinha de camurça da London Fog. Original! Foi em 1985 que a ficha caiu: o colégio técnico em Edificações não era para mim. Fui, então, fazer cursinho no Objetivo da Vergueiro, decidida a ser publicitária. No ônibus de volta para casa, curiosamente, quase todos os dias tocava “Tempo Rei”.

1984, ano de aventuras perigosas, impensáveis em qualquer época: ir com a irmã e as amigas para Ubatuba, de carona, solicitada na base do dedão em plena Rodovia Dutra. Deus deve ser muito meu chapa. Em 1983, após longa espera, instalaram nosso telefone. Plano de expansão da Telesp. Fui a última da turma a ter um em casa. Talvez, por isso, eu ainda me lembre: 948-3443. Em 1982, pela primeira vez, saí da Mooca, meu bairro-mundo, para estudar em outro canto da cidade. Do professor de português, os primeiros incentivos para escrever. Nunca mais o vi. Até hoje jogo seu nome no Google.

Primeiro namorado em 1980. Íamos de moto passear no Parque do Ibirapuera, ambos sem capacete e sem juízo. Não há dúvida de que Deus é meu chapa, bróder supremo protetor. Tirei meu RG em 1979. A foto 3×4 não é das melhores; estava no finzinho do sarampo. No mesmo dia, minha mãe fez o dela. Seu RG é um número antes do meu. Ela não precisa mais dele, desde que se foi. Eu sigo aguardando minha vez de ir. Meu RG é uma espécie de senha com Deus.

Em 1973 entrei na escola, pré-primário com a Tia Neide. A contragosto, participei de uma peça de teatro. Minha fala começava assim, “Eu era uma sementinha…”. Foi em um gibi do Mickey que consegui, sozinha, ler minha primeira frase. Se hoje, com cinco anos, uma criança não só lê, como escreve, declama e faz vídeos no Tik Tok, em 1972 aquilo era quase uma proeza.

1970, Copa do Mundo. Minha mãe estourando pipoca na panela. Ela desliga o fogo, passa a pipoca para a vasilha, pulveriza o sal, encosta a porta da cozinha e me chama para a sala. Meu pai e meus irmãos já estavam em frente à TV, prontos para a torcida. E, se 1968 foi o ano que não terminou, foi nele que eu comecei a andar e a falar.

Cheguei, enfim, a 1967. Dei enter. E meu cadastro neste mundo é concluído com sucesso.

Mapa

São Paulo, Avenida do Estado. Quase elegante em seu puído terno preto, ele expunha seus produtos no semáforo. Pendurados em seu braço, carregadores para celular. Nas mãos, um mapa colorido da cidade, que ele enrolava e desenrolava feito pergaminho, demonstrando aos fregueses. Era, ao mesmo tempo, vendedor e vitrine.

Mas quem, em tempos de GPS, compra mapa de papel? Quem, que com um clique pode descobrir, em segundos, onde fica a capital da Moldávia, podendo dar zoom e ver tudo em 3D, compraria um mapa de papel, limitado à pobre 2D, que facilmente pode se rasgar, sujar, pegar fogo, ser destroçado pelo cachorro?

Se ainda são feitos, é porque ainda se usam – uma lógica do mercado. Para mim, mistério.

Em casa, tínhamos um guia de ruas da cidade. Grosso, feito em papel bem fininho, mais de trezentas páginas. Para localizar uma rua, primeiro a gente a procurava na lista no começo do guia, com letras desafiadoramente miúdas. Na frente do nome, o número da página onde ela figurava, e uma coordenada alfanumérica, por exemplo, B8. Então, era só ir à página procurar na coluna vertical a letra B e, na horizontal, o número 8. Pronto! Como um tiro do jogo Batalha Naval, lá estava, no quadrante indicado no mapa, o logradouro desejado. Eu brincava de procurar ruas, ainda que não precisasse da informação. Visitava, com especial dedicação, a página onde a minha casa ficava. E via, encantada, o mundo de ruas que havia em torno de mim. Computadores ainda não existiam. Uns heróis, aquele pessoal que trabalhava nas editoras.

Nosso guia, por certo, foi parar no lixo em um dia de arrumação. Mesmo destino das pesadas listas telefônicas, que a Telesp entregava aos assinantes de tempos em tempos, devidamente atualizadas. Tinha a comercial e a residencial. Chegamos a acumular várias edições na estante da sala. Eu até que achava bonito, exibir aquele inventário de gente e negócios tão organizadinho.

No trânsito encalacrado daquela manhã de outono, que no GPS do meu carro aparecia em um desanimador tom de vermelho-raiva, observei as vendas do ambulante engravatado. Apesar da coreografia do abre-e-fecha do mapa, ninguém se interessou. Afinal, para quê mapa, se nesta cidade a população parece estar condenada a um eterno engarrafamento?

Ensaiei abaixar o vidro e perguntar-lhe quantos mapas ele vende em um dia bom – o que significa ruim para o motorista. Procuraria, também, saber o perfil do comprador. Novo? Velho? Homem ou mulher? Talvez, até comprasse um para mostrar aos meus filhos. Mas não deu. O sinal abriu, o ônibus atrás de mim buzinou e eu segui pela Avenida do Estado. Que eu não sei em qual página e coordenada alfanumérica figuraria, em nosso velho guia de papel.

Meu primeiro amor. Ou segundo

ilustração: Lubi
Fragmentos de memória: 1977, São Paulo, Teatro Municipal, Irene Ravache, calça Levi’s, menino loiro.
Pronto. Agora é costurar tudo e montar a colcha que cobre a história do meu primeiro amor. Ou segundo. Tirando, claro, as dezenas de namorados inventados da minha infância e que constaram de uma lista, redigida pela irmã mais velha, que incluía o moço que aplicava injeção na farmácia, o Sérgio Chapelin e o goleiro Leão.
Eu tinha dez anos e era a primeira vez que eu ia ao Teatro Municipal. As cadeiras ainda eram forradas com veludo verde. Não há qualquer chance de eu me lembrar do que assisti. Rei Davi, talvez? De certezas, somente três: primeira, era algo com a Irene Ravache; segunda, eu usava uma adorada calça Levi’s bege, e terceira, havia um menino loiro e lindo do outro lado do foyer, igualmente numa Levi’s bege.
Bati os olhos nele – que devia ter a minha idade e também estava com os pais – e não desgrudei mais. Se ele, de lá, me via, não sei. Desconhecia aquele meu sentimento, embora já suspeitasse do que se tratava. Apaixonar-se é grudar nos olhos uma fotografia da pessoa amada.
Foi assim o espetáculo inteiro. Quando acabou, fiquei triste porque não iria mais vê-lo. Como seria seu nome? Sua voz? Ia bem em matemática? Seria bacana ir à sorveteria com ele depois das aulas, de mãos dadas e com nossas Levi’s.
Não contei a ninguém o que senti. Só guardei a imagem do menino bonito. Tão bem guardada, que ei-la aqui. E o leitor que me desculpe pela decepção. Pois não se trata de uma história de amor típica, com começo, meio e fim distribuídos em uma linha do tempo recheada de acontecimentos e emoções e conversas de amor e beijos escondidos. A história do meu primeiro amor (ou segundo) é só isto mesmo. Vocês podem continuar fazendo o que estavam fazendo. Ou continuar lendo.
Naquela época, dadas a pouca idade e limitações mundanas, seria praticamente impossível tornar a vê-lo. Hoje, bastaria um apelo na internet (se meus pais deixassem, o que duvido). “Alguém sabe quem é este garoto?” encabeçaria, na rede social, o post esperançoso, com uma foto feita pelo celular em precário zoom. Daria o serviço – dia, hora e local – e imediatamente se formaria na tudosfera uma corrente engajada de compartilhamentos, dedicada a encontrar meu pequeno príncipe encantado. Já vi isso nas notícias. O amor é a melhor hashtag que há.
Em meus devaneios, às vezes, me ponho a imaginar por onde andará o garotinho de calça Levi’s bege no foyer do Teatro Municipal. O que se tornou, de quê gosta de falar, se prefere pão francês branquinho ou queimadinho, se ainda é loiro. É devaneio desinteressado, registro – eu que não quero treta com meu marido. Daqueles ingênuos, que brotam no meio de um dia atarefado como um sopro de leveza. É respeito (ou asas) às lembranças que compõem minha biografia.
Depois daquela noite, estive tantas outras vezes no Teatro Municipal. Eventualmente, enfiada numa Levi’s. Nunca mais, no entanto, me apaixonei por ninguém do outro lado do foyer. A vida nunca foi de me pregar – vejam só – peça.

A aula

telefone 3

Gostava de ouvi-lo ensinar como funcionava o telefone. Eu, sentadinha à mesa da cozinha, maravilhada com meu pai explicando coisas sobre voz, eletricidade e cabos. Suas mãos iam simulando, sobre a toalha estendida (a xadrezinha?), o caminho que a chamada percorria para ir de uma ponta à outra. Encantavam-me a tecnologia e meu pai, que sabia tanta coisa (ainda que não soubesse tanto assim). Cheguei a pedir-lhe várias vezes para repetir a “aula”.

Ontem liguei para ele. Seu Tonico não é, mas estava especialmente surdo. Pediu notícias das crianças, dei, não sei se ele ouviu; só soltou um Aaah. Contou-me que havia varrido todas as folhas secas pela manhã. Perguntei-lhe se havia almoçado direitinho. Ele continuou falando da varrição. Lembrei-me da velhinha surda d’A Praça é Nossa, aquele programa de TV. E ri. O script agora é outro.

Enquanto ele discorria sobre a trabalheira que as folhas secas deram, lembrei-me da aula do passado. Meu pai ensinou-me algo que, hoje, tem dificuldade para usar. Na nossa breve conversa, o meio era a mensagem.

Agora, quando o visito, sou eu que explico a ele como funciona uma chamada pela internet. Apanho o celular na bolsa e ligamos para minha irmã, sua filha do meio, que mora longe, muito longe. Ele tem telefone, mas não acerta ligar para ela, tantos números. E não adianta colocar o numerão na memória do aparelho e dizer que é só apertar um botão. A memória que não funciona bem é a dele. Vou demonstrando a mágica da chamada. Mas não tem mais a mesa da cozinha, nem a cozinha. Nem as toalhas. Tem ele, feito criança, maravilhado com a tecnologia e comigo, que sei tanta coisa (ainda que não saiba tanto assim). E, assim que minha irmã atende, ele passa a falar alto, muito alto no aparelho, como se fazia antigamente. Eu que não vou ensiná-lo que não precisa mais.

Engano

telefone 2

Quando o telefone toca de madrugada, boa coisa não é.

Ninguém liga no meio da noite para pedir a receita daquele biscoitinho de nata, convidar para o aniversário da caçula, contar que foi promovido na firma. Tampouco que foi despedido – salvo, neste caso, se a pessoa resolveu afogar as mágoas num cabernet e perdeu a noção da hora.

Telefonema na madruga é notícia ruim. Ou engano. De qualquer forma, é prejuízo.

Semana passada, eram três e vinte quando acordamos com o triiim. E no fixo, para piorar: em casa só há um, e ele fica na sala. Telefone fixo é o fio que nos prende ao passado.

Entre achar os chinelos e descer as escadas, a visão de todos os entes queridos, exceto os que dormem placidamente nos outros quartos, passa pela tela mental. Meu Deus, o que será que aconteceu? Delegacia, hospital e velório lideram a imaginação. Quinze segundos tateando até o aparelho são suficientes para o desenrolar do roteiro completo da tragédia. O “boa noite” dito antes de deitar não valeu.

Chego tarde, no entanto. Desligaram antes que eu atendesse. Engano? Não, era um desengano.

Apanho o celular, tiro do modo avião. Se for importante, tornarão a ligar, concluo. Aliás, devem ter tentado – da delegacia, hospital ou velório – primeiro nele, caiu na caixa postal, recorreram ao fixo. Já tracei toda a história. O 4G entra, aguardo a notificação.

Nenhuma chamada não atendida. Nenhum recado. Verifico o WhatsApp. Messenger. SMS. Voxer. Skype. Gmail. Direct. Nada. O mundo dorme em paz, sonhando. Só eu, às três e vinte e cinco, estou acordada.

Olho no aparelho o número da chamada. Não reconheço. Volto ao celular, pesquiso na agenda. Sem resultado. Reparo no DDD. Ligo de volta? Jogo o número no Google? Três e meia.

Antigamente, quando alguém nos telefonava, não se sabia quem era. Era preciso aguardar o alô do outro lado da linha para poder saudar, “Oi, tia!”. Ter identificador de chamadas no fixo era coisa de gente rica. Um aparelhinho acoplado ao aparelho, disputando espaço na mesinha. Os primeiros celulares também não vinham com a facilidade. Era “call” e só. Só fomos saber quem é que nos chamava no final dos anos 90.

Vinte e cinco para as quatro. Notícia ruim, dizem, chega rápido. Não mora aqui, portanto, o destinatário daquela ligação. Voltei à cama, fechei os olhos, custei a dormir.

A tecnologia evoluiu. A curiosidade, não. E quem liga?

Qual é a música?

radio

Minha cidade tem mais de um milhão de habitantes. É dona de respeitável PIB e do principal polo de tecnologia da América Latina. Está bem na foto quando o assunto é IDH, e algumas das nossas melhores universidades estão aqui. É metrópole pra ninguém botar defeito, meu chapa.

E sabe da maior? A emissora de rádio da prefeitura (que toca cada musicão, de vez em quando) é dessas onde as pessoas ligam para pedir música. Os locutores vivem distribuindo beijos e abraços aos ouvintes, carinhosamente chamados de amigos. O João da loja de pneus, a Maria da lanchonete, o Zeca do supermercado – ninguém fica sem sua música.

Em tempos de You Tube e Spotify, onde qualquer um pode ouvir o que quiser e na hora que quiser, pedir música na rádio é um ato de bravura, a desafiar o império do streaming. Os ouvintes da rádio da prefeitura de Campinas são os heróis da resistência.

Nunca pedi música para rádio nenhuma. Nem dediquei, pelas ondas do rádio, canção a alguém. Tampouco tive uma dedicada a mim, fosse por AM ou FM. Nada feito pela internet, nesse sentido, entra no levantamento. Há um vácuo em minha biografia afetivo-musical.

Nasci e vivi por mais de três décadas em São Paulo. Lembro de, lá pelos anos 80, chegar da escola às seis da tarde e ir correndo ligar o rádio. Queria ouvir As Quinze Mais Pedidas. Houve uma época em que Swingue Menina, do A Cor do Som, ficou em primeiro lugar. Eu ia à loucura na pequena sala da casa da vila da rua Natal. Mas não ajudava a decidir o ranking. A gente não tinha telefone.

Hoje tenho. Aliás, em casa há mais telefones que pessoas, num contrassenso digno de nota (musical?). Bem que eu podia acertar as contas com o passado. Não saberia, no entanto, que música pedir.

Swingue Menina, talvez.

Fantasia de gato

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ilustração: Jeff Haynie

Eu tinha doze anos. Costumava ir com meu pai buscar minha irmã na casa da amiga dela, à noite, depois do colégio.

É verdade que não íamos só meu pai e eu. Led, um frajolão digno de desenho animado, ia junto. Até que ele gostava de passear de carro. Se não gostava, disfarçava bem. Gato é bom na arte do disfarce.

Então íamos eu, meu pai e o gato fantasiado. É, fantasiado. Com tempo livre de sobra, eu inventava adereços para o bichano, especialmente para recepcionar minha irmã. Um dia, ele surgia com enormes óculos recortados em papelão. No outro, em um colete colorido feito com tecido, fitas e o que mais estivesse dando sopa na caixinha de costura da minha mãe. Se as pessoas se fantasiam de gato, eu tinha um gato fantasiado de gente.

Às vezes, confesso que notava alguma resistência dele em topar a brincadeira. Noutras, parecia até gostar. Talvez apenas se resignasse. Gato também é bom nisso. Mas só quando não tem outro jeito. Sabedoria felina.

Minha irmã jura que houve um dia em que ele foi de bailarino. Não me lembro. Só sei que para o Led era carnaval o ano inteiro – ao menos durante o período letivo. Logo ele, que ganhara esse nome em homenagem a uma das maiores bandas de rock de todos os tempos, o Led Zeppelin. (Originalmente, por impulso, escrevi a ‘maior banda’. Mas assim que digitei ‘tempos’, já havia achado uma injustiça com as outras. Corrigido está.)

À tarde, quando voltava das minhas aulas, eu me dedicava a criar as fantasias. Era raro repeti-las. Os amigos da minha irmã, que também ficavam por ali, na casa da amiga, aguardavam ansiosos a chegada do carnavalesco peludo. “Como será que seu gato vem hoje?”.

Minha irmã terminou o colégio, a carona noturna acabou. Acabou também a brincadeira. E o pequeno folião nunca mais vestiu fantasia. Alguns anos depois, ele se foi. Uma pena não termos registrado nem uma das produções. Tirar fotografia, naquela época, era só de vez em quando, nos casamentos, aniversários, viagens. Comprar o filme, bater as fotos, mandar o filme revelar na Fotobom (ficava a dois quarteirões de casa e o dono era um japonês simpático), buscar na outra semana. Como sobrevivemos à espera, quase uma eternidade, para ver como havia ficado uma foto?

O Led fantasiado seria, fácil, fácil, um gato-celebridade do Instagram. Antigamente, rede social era só a família, a parentada, os amigos da rua e da escola. E ele tinha mais de dez seguidores! Nós de casa (menos minha avó, que não gostava de gato) e os amigos da minha irmã. Hoje? Um milhão, estimo. A admiração ficou hiperbólica. Seu avesso também.

Temos, agora, um imenso inventário imagético virtual de tudo. Teremos, no futuro, mais e melhores lembranças do que hoje? Será a nostalgia mais rica quando, daqui vinte anos, nos depararmos com imagens do aqui e agora, das besteirinhas do dia-a-dia que a gente vai clicando a esmo?

Como será a saudade no futuro, com um presente hiper-registrado?

Tenho saudade dos gatos que viveram comigo desde que cheguei a este mundo. Foram tantos, tantos.

Vou construindo mentalmente meu vasto inventário gatístico, e boto na vitrola a melhor trilha para um carnaval: Black Dog, do Zeppelin. Só para provocar o cat que dorme na cadeira ao meu lado. Que não é o Led, mas bem pode ser, por conta das idas e vindas das almas ronronantes neste planeta. Não dizem que os gatos sempre sabem voltar para casa?

Uma letra

letra-c

Precisei trocar meu e-mail.

E silmarafranco@ já tinha dona. A homônima chegara antes de mim. Tentei inverter, francosilmara. Também já tinha. Só as iniciais? Também não deu. Como é gratuito, e cavalo dado não se olha os dentes, não houve muito o que fazer. Não teve ponto, underline ou hífen que resolvesse. A sugestão do programa foi acrescentar números ao nome. Não tenho simpatia por endereço eletrônico alfanumérico, fica parecendo senha. Silmara Franco 49, para combinar com a idade? Silmara Franco 2017, inaugurando o ano novo? Não faria bonito no cartão de visitas. No desespero, dobrei uma letra do meu sobrenome, que passou a ter dois cês.

Ficou ridículo.

Meus antepassados devem estar fazendo panelaço em seus túmulos. Alterei a dinastia, rompi a herança. A Franco diferentona. A metida a besta.

E ainda compliquei a vida: cada vez que vou dar o endereço, preciso avisar, “Com dois cês”. Os que já me conhecem ficam surpresos, “Não sabia que era assim!”. Conto a história. Explicar e-mail, tatuagem e piada é o fim. E tem sempre alguém que pergunta se foi por causa da numerologia.

Por que não? Quem sabe, concluo que um C a mais fará toda diferença. Que era isso que faltava para eu vencer na vida, ser uma pessoa melhor, atrair coisas boas, nunca mais pegar nem gripe. Por outro lado, posso descobrir o motivo para andar distraída, esquecendo as coisas, perdendo compromissos. Será melhor trocar o i por y? Sylmara.

Sei que é bobagem. Endereço de e-mail é como número de telefone hoje: ninguém mais presta atenção ou decora o telefone das pessoas. É só tocar no nome na agenda eletrônica, ou dizê-lo em voz alta que o aparelho faz a chamada sozinho. Ou seja, ninguém, efetivamente, vai reparar nos dois cês; meu nome de remetente/destinatário permanecerá o original de batismo. Sei disso.

Cogitei enviar e-mails para minha(s) xará(s) e barganhar. Pagar para ter um domínio exclusivo. Inventar pseudônimo.

O que uma letrinha não faz com a gente.

Se a minha mãe tivesse Facebook

facebook

Se a minha mãe tivesse Facebook quando eu era criança, não sei se ela seria do tipo que tudo publica acerca de seus rebentos. As fofices, as traquinagens, as frases engraçadinhas, as caretas, as dores, as delícias. Minha mãe era do tipo reservada. Mas quem resiste?

Considerando que a internet estivesse a todo vapor nos anos 70, imaginei a timeline da dona Angelina.

Em uma tarde de 1971, entre uma receita de cuscuz e uma mensagem do Chico Xavier, ela postaria que, para conseguir me fazer almoçar naquele dia, fora me seguindo da cozinha até o portão da vila onde morávamos. Eu, quatro anos, não queria comer. E, com a estratégia, eu ia passeando, ela ia me distraindo e eu papava tudo. Minutos depois choveriam os comentários das amigas, marcando a polaridade das opiniões: “Que absurdo!”, “Que gracinha!”. Ela me proibiria de zanzar durante as refeições ou não, conforme o que lesse?

Noutro dia, faria um post-desabafo contando que, em um momento de descuido seu, eu, aos cinco, assumira o controle da velha Lanofix e simplesmente arruinara a encomenda de tricô que ela preparava, e lhe garantiria alguns trocados no final do mês. Nos comentários, a torcida para que ela conseguisse recuperar o tempo perdido, tudo ia dar certo, calma. O apoio lhe daria ânimo para recomeçar do zero?

Ela também postaria, a título de diversão, que eu, aos sete e na intenção de imitá-la, coloquei um absorvente – o velho Modess, que nem de longe lembra os ultrafinos de hoje – e saí na rua, feliz da vida, desfilando o duvidoso volume na calça. Finalizaria o post com kkkkk. Emojis boquiabertos ilustrariam o feedback?

Só não sei se publicaria, num dezembro de vacas magras, que meu presente de Papai Noel fora um xampu Johnson’s (bem mais caro e raro que o Colorama – lanolina ou ovo – de todo dia). Mas era do grandão. Afinal, era Natal.

Ademais, ela rechearia sua página com fotografias de flores e das suas bordações, vídeos de valsas, truques para limpar manchas de molho de tomate, indignações a respeito do Led Zeppelin (“Mas isso é música?”).

Só sei que se a minha mãe tivesse Facebook, eu a seguiria por toda vida.

Saudade é a linha do tempo que não volta mais.

Você recebeu uma nova mensagem

arte: Pierpaolo Limongelli
arte: Pierpaolo Limongelli

Dei para enviar mensagens para mim mesma. Pelo e-mail, Messenger, Voxer ou o aplicativo que estiver à mão. Pequenos lembretes, escritos ou orais, para quando a agenda (de papel; sim, eu uso agenda de papel) não está por perto, ideias para textos, links de coisas interessantes para ver depois, não esquecer de fazer isto, aquilo e mais aquilo outro. Entupo minha própria caixa postal. Tenho mais mensagens de mim para mim que dos amigos. Qualquer hora, endoideço de vez e me respondo.

“Olá! Tudo bom? Recebi a mensagem. OK, buscar o resultado da mamografia na sexta”.

“Gostei do tema da próxima crônica, sobre o hábito inconfesso e incontrolável de espiar o que os outros passageiros estão lendo ou assistindo no avião”.

“E aí, o marceneiro foi?”.

Tem gente que fala sozinha com um interlocutor imaginário. Tem gente que fala consigo sozinha. E tem gente que registra o diálogo. Ou seria monólogo?

No mundo caetano – “Quem lê tanta notícia?” – eu me pego doente, padecendo de um não-dar-conta de absorver tanto conteúdo e lembrar do que precisa ser lembrado, ainda que sejam tarefas básicas do dia-a-dia. A escrita, desta vez não por motivos literários, vem para me salvar. Recorro à tecnologia que, nesse caso, assim como a fé, não costuma falhar.

Dou enter na automensagem e logo vejo a notificação: “visualizada”. Posso dormir sossegada. No dia seguinte, checo as mensagens-missões. Se as cumpro, são outros quinhentos.

Por outro lado, mando tantas mensagens para mim, que vou acabar me ignorando, me apagando sem me ler, me bloqueando, tal faço com os spams. “Ih, lá venho eu de novo”.

Triste fim!

Esqueci minha senha

"The key", Andrea Joseph
“The key”, Andrea Joseph

Fui fazer compras na internet e o site pediu login e senha. Eu, que um dia cadastrei-me ali e inventei um acesso, não me lembrava qual era. Mas são bondosos os sites, dando-me a chance de recuperá-los. Bastou clicar em “Esqueci minha senha” para, plim!, o código secreto surgir na minha caixa postal. É bom contar com a memória alheia, ainda que de uma máquina.

Quem dera fosse assim fácil restaurar as coisas deslembradas ao longo dos tempos, já que venho esquecendo não só senhas.

Esqueci, por exemplo, como fico de vestido curto.

Esqueci também como é não me preocupar com a barriga e usar tudo, tudinho que der na telha.

Esqueci o nome da senhora que vendia as cocadas mais gostosas do mundo na porta de casa, quando eu era criança. Em vez de “esqueci minha senha” eu queria, na tela do pensamento, a opção “esqueci o nome da senhora das cocadas”. Salivando, clicaria ali com a esperança de, nas redes sociais, localizar seus netos, quiçá bisnetos, apenas para lhes contar da minha cremosa, pedaçuda e doce lembrança.

Por falar no meu tempo de criança, esqueci como eram as férias escolares no final do ano, quando eu tinha três meses inteirinhos para fazer tudo ou nada, mais nada do que tudo.

Falando em não fazer, esqueci de ir à dentista este ano. Ano passado idem. A esta altura, doutora Fernanda desistiu de mim, arquivando-me, desesperançosa, nos casos de pacientes perdidos.

Por falar em paciente, esqueci, sobretudo, onde foi que perdi minha paciência. E essa, receio, não dá para reaver com um simples e-mail.

Ainda falando em escola, esqueci o que minha mãe mandava na lancheira. Penso nisso quase todo dia, enquanto preparo as dos meus filhos. Não para fazer igual, mas para lembrar como hoje tudo é diferente.

Esqueci também a receita do bolo Nega Maluca que ela fazia e eu cheguei a reproduzir, satisfatoriamente, por muitos anos. Há reminiscências que não podem mais ser acessadas, nem com senha. Certa vez, fiz de um jeito, não funcionou. De outra, mudei aqui, ali, e nem sombra do velho bolo.  Não arrisquei a terceira tentativa. Não quis uma saudade bloqueada.

Falando em saudade, esqueci o dia em que minha gatinha Doris Day morreu, depois de catorze anos conosco. Mas não esqueci o dia que a encontrei, miúda e faminta, no metrô Anhangabaú e a levei para o trabalho, escondida dentro da mochila.

Esqueci outro tanto de coisas: como é ter medo de ir mal numa prova, como é voltar de uma balada com o sol raiando, como é fazer uma entrevista de emprego. São lembranças vencidas. Não é preciso recuperá-las. Estou, a todo momento, criando novas.

Já assinou uma petição hoje?

arte: Carmela Alvarado
arte: Carmela Alvarado

Perdi a conta de quantas petições assinei, eletronicamente, nos últimos tempos. Nunca foi tão fácil criar – e apoiar – campanhas para qualquer coisa. Mais fácil que tirar o doce de uma criança. Lembrando que tirar doces de crianças daria uma ótima petição contra quem faz isso.

Com as petições online, sem por o pé na rua, ajudei a salvar baleias no Japão, abelhas na Europa e elefantes na África. Se quisesse, engrossaria o coro daqueles que são contra a remoção do povo Masai, na Tanzânia. Gente que não conheço, num país que nunca visitei.

A humanidade descobriu o poder transformador de um clique. Da sala de estar, comanda-se uma revolução. O que Mahatma Gandhi não faria, se tivesse uma conta no Twitter.

Já que é festa, proponho minhas próprias petições. Nem tão públicas; às vezes, um tanto particulares. Todas fundamentais. Com elas, minha vida seria melhor. Quiçá, a sua também.

1. Petição para que as vinte e quatro horas da sexta-feira – e não somente as últimas seis – sejam, oficialmente, integradas ao fim de semana.

2. Petição para manobristas de estacionamentos não mexerem no ajuste do banco.

3. Petição para o antiaderente das frigideiras durar mais de um ano.

4. Petição para proibir preços terminando em 96, 97, 98 e 99 centavos, uma vez que para esses nunca há troco.

5. Petição pela venda de morangos a granel, e não mais em enganosas caixinhas – aquelas onde os maiores e bonitões ficam por cima e os mirrados e estragados, por baixo.

6. Petição para que toda sala de espera de consultório médico ofereça, em local visível e de fácil acesso, um bom café.

7. Petição para que nenhum cavalo precise puxar charretes impossíveis, e que galinhas só botem ovos quando elas quiserem.

8. Petição para que as revistas femininas não ensinem mais como enlouquecer um homem na cama ou ter uma barriga chapada em quatro semanas.

9. Petição para as lojas pararem de usar os termos “sale” quando querem dizer “liquidação”, e “off” quando querem dizer “desconto”. Esta petição prevê, ainda, proibição aos vendedores de chamar os clientes de “meu bem”, e também de acompanhá-los até a porta ao final da compra.

10. Petição para criminalizar a publicação de textos apócrifos nas redes sociais, bem como a replicação de boatos e qualquer coisa que termine com “se curtiu, compartilha”.

11. Petição para proibir a Wanessa Camargo de lançar novos discos.

12. Petição para que a trilha incidental “Com quem será” seja, de uma vez por todas, excluída do Parabéns a você.

13. Petição para que os anúncios do You Tube, que insistem em passar antes das suas músicas preferidas, sejam sumariamente extintos.

14. Petição para não deixar o samba morrer, nem acabar, pois o morro foi feito de samba, de samba pra gente sambar.

Junte-se a mim!

Revista-se

 

Comprei um revisteiro. Pequeno, em ferro, do jeito que acho bonito. Flerto com ele, estou apaixonada. Trato de acomodá-lo na sala, ao lado do sofá, do jeito que imaginei. Mas não demora e sou invadida por uma devastadora realidade. O novo objeto é completamente inútil: não temos mais revistas em casa.

Há tempos não compramos revistas, nem jornais, em bancas. Tudo é lido nas telas. Acabou o papel, jingle bell. Os poucos exemplares remanescentes são velhos e habitam dois locais distintos em nosso lar.

O banheiro: para aquelas horas de atemporalidade absoluta, onde tanto faz ler uma matéria do mês passado ou de dois anos atrás. Banheiros são perfeitos para a leitura distraída, sem compromisso. Não conheço ninguém que tenha revistas da semana no banheiro.

A escrivaninha das crianças: são boas para os trabalhos de escola, recortar proparoxítonas, figuras de meios de transporte, itens da pirâmide alimentar. É apoio pedagógico que não carece de vínculo com a atualidade. Estão todas devidamente esquartejadas.

Encaro o revisteiro pelado. Minha vontade é voar à banca mais próxima.

O design simples e eficiente prometia não repetir os estragos que seus antecessores costumavam causar nas nossas Lolas, Vejas, Épocas, Vida Simples. Por conta da engenharia imprópria, as pobres ficavam deformadas. Como se padecessem de irreversível escoliose, prejudicando o mais básico folhear. Nesse, não. As revistas permaneceriam íntegras, saudáveis, confortavelmente repousadas à espera da leitura.

Volto à loja e peço para trocar por um quadrinho?

Revisteiros domésticos estão na mesma categoria daquelas antigas bases das máquinas de costura das avós. Restauradas e reinventadas, hoje enfeitam lares fazendo as vezes de mesa ou aparador. Sua missão guarda, porém, algo da essência original: costurar passado e presente. Não raro, sobre elas se veem vasos feitos daqueles também antigos, pesados e impossíveis ferros de passar roupa à carvão.

É o tempo da casa digital com decoração analógica (ou nem).

O que fazer, então, com meu revisteiro solitário e desocupado, tal um imóvel aguardando inquilino? Já que vira cama d’algum gato, despejo de pequenas tralhas sem endereço, estorvo na hora de passar aspirador.

Ou revisto-o de significado e encabeço um movimento pela volta maciça e definitiva das revistas aos lares, doces lares. Aproveito e estendo o negócio às máquinas de costura também. O ferro de passar roupa, esse impossível até quando moderno, pode continuar abrigando as flores. De verdade, plástico ou papel.

Te amo, Caetano

Arte: Lu Arembepe

São dezoito minutos do dia novo. Eu ainda estou no dia velho, conectada às manchetes de ontem. Como um marinheiro atraído pelo canto da sereia, sigo hipnotizada pelo noticiário on-line dos quatro cantos, de todos os santos. Estou diante da minha infinita banca de infindáveis revistas. Sabe quem lê tanta notícia, Caetano? Eu.

Aprendo sete dicas de linguagem corporal para quem faz apresentações. Mas eu não tenho nenhuma apresentação em vista.

Confiro cinquenta e três famosos sem Photoshop. Concedo meu palpite mental a cada um. Gisele é Gisele.

Tenho insights a respeito da vida, da Dilma e do aspartame nos refrigerantes. Todos os assuntos se amalgamam na rede.

Respondo doze mensagens e mantenho uma no rascunho, preciso pensar. Olho de soslaio o spam, avisto: “Como enlouquecer um homem”. Já faço isso, meu bem. Basta eu levar o tablet para cama e ficar navegando pela tudosfera.

Deixo comentário em cinco postagens. Em outra, penso, mas não escrevo. Me encho de preguiça.

Curto outras doze. Na décima segunda, já não me lembro mais o que curti na primeira.

Volto a um dos comentários que fiz, edito. Assim fica melhor.

Assisto pela quinta vez o vídeo de duas ex-elefantas de circo, amicíssimas, que não se viam há vinte e dois anos. Não tenho lenço à mão; meu documento diz que eu choro à toa.

E o avião da Malásia, hein?

Ouço duas músicas antigas (não caetanas) e sinto saudade. O Google facilita a nostalgia.

A semana teve dentes, pernas, bandeiras e uma ameaça de bomba que fechou a sede do Facebook, na California. A Brigitte Bardot está no Twitter, Caetano.

Bocejo, mas não me rendo.

Há um artigo recomendado para mim. Para mim! O título diz que nós, pessoas, não precisamos escovar os dentes. Não lerei o resto e a informação residual que acompanhará meus sonhos é: não preciso mais escovar os dentes. Alegria, alegria.

Vejo imagem de uma macarronada, clico no modo de fazer. Estou sem fome, mas com telefone, no coração do Brasil.

Fico triste, Paulo Goulart morreu. Fico alegre, a cachorrinha de três patas foi adotada por uma família de Nova Iguaçu. Fiquei bipolar depois da internet.

Confiro vinte e duas notificações. Esqueci de notificar as crianças sobre as toalhas molhadas no chão. Lembro de três coisas que não posso deixar de fazer assim que amanhecer. Na falta de caneta e papel, escrevo para mim mesma no Messenger. Logo aparece: “visualizada”. Posso ficar tranquila; eu vi meu recado.

Bocejo, desta vez me rendo. Caetano, eu vou dormir.

Por que não? Por que não?

Crônica de minuto para quem não joga Candy Crush

Eu não jogo Dragon City, Subway Surfers, FarmVille, Angry Birds Friends, Criminal Case, Fruit Ninja Frenzy, nem Papa Pear. Pet Rescue? Já jogo na vida real. A única coisa que o Candy Crush me faz pensar é em Fanta. Não faço coro à imensa maioria das Causes. Também não compareci a nenhum dos 94 eventos para os quais fui convidada, virtualmente, no último semestre. Sou praticamente uma marginal online, a chata digital que não quer brincar de nada.

O velho vício em jogos agora vem acompanhado de uma nova adicção: enviar solicitações para Deus e o mundo nas redes sociais. O viciado, em breve, contará com uma inédita modalidade de grupo de ajuda: a dos dependentes públicos, já que de anônimos não têm nada.

Declino todos os convites que recebo no Facebook e nem fico constrangida por não dar satisfação. Talvez seja esse meu jogo favorito. Mas sei: não foi assim que mamãe ensinou. Quando alguém chamava, “Quer brincar de esconde-esconde?”, e eu não queria, tinha que, ao menos, dizer o porquê. Agora não tenho mais.

As batatas da Malásia

Abro uma daquelas latinhas de batata. Gosto de ver o modo como são organizadas na embalagem, sobrepostas à perfeição. Quem arrumou as batatinhas assim?

Leio: são feitas na Malásia. Enquanto abocanho uma, procuro o endereço no Google Maps. Não é mais suficiente saber a origem; preciso conferir, com meus próprios olhos, o lugar onde foram feitas. (São Tomé não teria grandes dificuldades nos dias de hoje.) Ativo o street view, o endereço é aproximado. Espio o galpão onde, imagino, é a fábrica. Dou zoom, inspeciono o entorno. A região é despovoada; só rodovias e indústrias. A câmera do Google não flagrou um humano sequer circulando por ali. Estão todos descascando batatas.

A ideia de comer uma coisa que foi produzida a dezessete mil quilômetros e cruzou dois oceanos e um continente até chegar à padaria da rua de cima é tão encantadora quanto assustadora. Se são fritas ou assadas, se são resultado de um grande bolo de batata fatiado, se são de batata mesmo, já nem importa. Tenho o improvável na ponta da língua.

As batatinhas – fritíssimas – que eu comia quando criança eram feitas muito mais perto, ali na cozinha. Meu mapa-múndi particular, na época, era reduzido; compreendia basicamente nossa casa e o quarteirão. No máximo, alguns bairros onde os parentes moravam e o centro de São Paulo, aonde eu ia passear de vez em quando. Hoje vivo a cento e dez quilômetros e treze anos de lá.

Meus filhos comem menos batata frita do que eu, na idade deles. A neurose da boa alimentação não existia. O Google não existia. Nem a Malásia existia no meu atlas, ainda. Só os sábados existiam; dia em que minha mãe preparava baciadas de batata frita e as levava para a sala. Uma festa que, hoje, não ouso promover em casa. De que adianta poder viajar até o outro lado do planeta num clique, se ficamos todos chatos?

Mastigo o mapa digital em português e arroto em malaio. Limpo, sem que ninguém perceba, as pontas dos dedos na calça jeans (nem me atrevo a ver onde ela foi feita). Também quero visitar agora, pelo street view, a velha casa da rua Natal. Observo o entorno, tão mudado. Dou zoom na memória e vejo de perto a baciada de batatas, meus dedos engordurados de pura alegria.

A saudade não é aproximada. É exata.

Síndrome do pânico

O grito, Edvard Munch (1895)

Clico num link, à procura de diversão. É um desses aplicativos que fazem a festa dos habitantes da Vila Facebook. Também quero entrar na festa. Mal boto o pé na porta e dou de cara com o aviso: “Este aplicativo receberá suas informações básicas”. Localizado numa espécie de ante-sala do salão principal, a advertência parece dizer: “daqui para frente, não nos responsabilizamos”. Um maquiavélico “eu avisei”.

“Ele”, o aplicativo – uma entidade virtual, etérea, desconhecida e potencialmente malévola – não define, porém, o que considera “básica”.

Informação básica sobre a minha pessoa pode ser apenas o número do meu RG. A nacionalidade, sexo, idade. Pode ir além, no entanto. E o tal acesso às informações básicas pode percorrer minha vida particular e trazer à baila dados, aspectos e acontecimentos até então ocultos acerca da minha existência, eventualmente indiscretos, quiçá politicamente incorretos.

“Ele” pode revelar, por exemplo, que, apesar de meu atual ativismo pela causa animal, quando era criança, tinha um estranho passatempo: jogar a tartaruga de estimação escada abaixo, só para vê-la se esborrachar lá embaixo. Não contente, também atirava uma cadeira por cima. Talvez, no intuito de testar a resistência de seu casco, da cadeira, ou das duas coisas associadas. Felizmente, a tartaruga sobreviveu a todos os impactos, e viveu conosco muito tempo. Não sei que fim ela levou. Em dias de militância ecológica, algum vizinho já teria flagrado e registrado a cena num celular e postado no You Tube. Com milhões de visualizações, eu seria escorraçada pela sociedade, caçada pelo Ibama, enquadrada na lei de proteção ambiental e cumpriria pena num xilindró-mirim com mais vinte crianças da pá-virada. Minha infância foi salva pela falta de tecnologia.

E se “ele”, o aplicativo, descobrir que já joguei óleo de cozinha no ralo da pia depois de fritar batatas, quando era mais nova (beeem mais nova) e não tinha noção do estrago que isso fazia? Não sabia o que fazer com aquilo, afinal de contas. Era a mesma época em que colocávamos nossos sacos de lixo na porta de casa e eles simplesmente desapareciam, como que por mágica.

Pior: e se “ele” espalhar pelo ciberespaço um dos meus segredos pessoais mais nojentos? Foi no dia em que, gripadíssima, espirrei enquanto dirigia e aquela substância orgânica expelida foi parar no painel do carro, e eu tive que continuar dirigindo porque não dava para estacionar e a caixa de lenços não estava à mão, e a meleca lá, estatelada sobre o velocímetro.

Seria terrível ver minhas mazelas expostas assim. Só de pensar, me dá tremedeira.

E as ameaças “dele” não pararam ali: “Este aplicativo pode publicar em seu nome”. Para boa entendedora, meia palavra basta: estou a um clique de arrumar um procurador virtual. Um ser tecnológico com plenos poderes, que fará o que lhe der na veneta. Evidentemente, para o mal.

O danado do aplicativo pode inventar de postar besteiras e assiná-las sob meu nome. Publicar nas redes sociais que gosto do que não gosto, que vi o que não vi, sei o que não sei e faço o que não faço. (E se esta crônica, na verdade, não for de minha própria lavra, e sim “dele”, que tomou posse também do meu humilde blog e a digitou enquanto eu dormia? Encrenca dos diabos, essa.)

E se, valendo-se de tal poder, a procuração se estender à minha vida real, e “ele”, o aplicativo, resolver me descasar do meu marido e me casar com outro, que nem conheço, mas adicionei porque pareceu gente boa? E se “ele” permitir que meus filhos comam salsicha e Nutella de segunda a segunda? Se cismar de doar todos os meus sapatos, achando que tenho demais?

Com súbitos, claros e evidentes sintomas da síndrome do pânico cibernético, tais como taquicardia em banda larga, sudorese em alta resolução e alucinações em megapixels, só me resta puxar a tomada do computador e acabar logo com isso. Antes que o derradeiro clique transforme minha vida num inferno.

*****

Por outro lado, ter um procurador, virtual ou real, talvez se mostre uma boa ideia. Posso instruí-lo e autorizá-lo a fazer por mim coisas que não tenho dado conta – responder e-mails importantes e pendentes, curtir tudo que de bom postam os amigos – ou tarefas que considero por demais aborrecidas: limpar o banheirinho dos gatos duas vezes ao dia, tirar o feijão do fogo, procurar uma nova faxineira, ensinar aos filhos que Legos precisam ser recolhidos (todos).

Cadê a tomada para eu ligar o bichinho de volta?

Olho por olho

Arte: Ruggero Turra

Acomodo o laptop sobre a pia do banheiro. Acesso o tutorial que promete, passo-a-passo, um belíssimo par de olhos esfumados. É hoje!

Antes, achei graça no termo, recorri ao dicionário:

esfumar. [Do it. sfumare.] V. t. d. 1. Desenhar a carvão. 2. Esbater com esfuminho. 3. Sombrear com esfuminho. 4. Desfazer em fumo. 5. Enegrecer com fumo; esfumaçar. P. 6. Desfazer-se em fumo. 7. Desaparecer a pouco e pouco.

Igual receita, com ingredientes e modo de fazer, separo o que vou precisar. Corretivo, lápis preto, sombra, pincelzinho esfumador, curvex, máscara para cílios. No entanto, se com as panelas revelo alguma intimidade, o mesmo não acontece com meu próprio rosto. Invariavelmente, rendo-me ao básico, por preguiça, falta de talento e tempo (não necessariamente nessa ordem), com o costumeiro argumento “Vou só ali, mesmo”.

De imediato, detecto a necessidade de apontar o lápis, o recado que marido deixou de manhã no espelho do banheiro o arruinou (nunca reclamar disso, eis uma das regras de ouro do casamento). É aí que começam os problemas: impossível, apenas com conhecimentos humanos, limpar o apontador depois.

A parte da sombra corre razoavelmente bem. Animada, faço, com o lápis, um traço rente à pálpebra, como faz a dona do vídeo. Aprendo que há a pálpebra móvel, de cima, e a fixa, de baixo. E eu, achando que só telefonia tinha disso. Confirmo uma antiga suspeita: toda mulher entreabre a boca quando passa lápis nos olhos.

Maquiagem está para mágica, assim como os efeitos especiais estão para Hollywood. Não fossem as moças que fazem esses tutoriais gente de carne e osso, eu juraria que elas se utilizam de um ou de outro.

Esfumador entra em ação. Receio ter sido literal à definição do termo, marido perguntará onde foi que arrumei carvão. Tiro tudo.

Maquiar é como manobrar caminhão: ver os outros fazerem parece tão fácil.

Quem sempre anda de cara lavada, quando se maquia, corre o risco de sair de casa com a sensação de usar um rosto que não é seu. E esse, que parece não lhe pertencer, pode ter olhos de ver coisas que você não enxergaria. Perigo?

Refaço o procedimento. Bom de vídeo é poder pausar, rever e continuar, na hora que se quer – diferente da vida real. As pálpebras (fixa e móvel, conforme aprendido) se ressentem com a esfregação e não colaboram. Não sou vidente, mas sou acometida de uma premonição: o pior está por vir, quando chegar em casa com sono e tiver de limpar tudo antes de dormir. Parodiando o bandido arrependido, direi: o rímel não compensa.

Comparo o resultado final: nem sombra (ops) do que está na tela. E meu espelho não vem com Photoshop – ainda bem. É assim que vou hoje.

Fwd:

Arte: Amédée Forestier

Amigo ou parente assim, todo mundo tem. Você recebe a notificação, chegou e-mail do Fulano. Pensa: desta vez ele, ou ela, vai contar novidade. Casou, mudou de emprego, vai ter bebê, descasou, fez matrícula na pós, está pensando em largar a engenharia e sair por aí fotografando passarinho. Ou, quem sabe, dirá apenas que está com saudades. Ingenuidade sua. Ao bater o olho no Fwd: do assunto, já sabe: mais um forward. O décimo da pessoa – esta semana.

Você pausa o olhar na tela, avaliando se convém bloquear o amigo de uma vez por todas. Afinal, nem sempre foi assim, mas de uns tempos para cá ele nunca escreve para saber como vão as coisas, se você passou no concurso, como foi a sua cirurgia, se você ainda tem o telefone daquele homeopata. Não, ele não quer saber de nada. Seu prazer é encaminhar, ao infinito e além, tudo que recebeu por e-mail. É fissurado no repasse, viciado em retransmissão. Sem se dar conta que, assim, a amizade entre vocês ruma a uma espécie de backward. O amigo virou spam.

Então, você lembra: passou seu aniversário e ele não se manifestou (embora conhecedor da data, a mãe e você são do mesmo dia). No rátimbum dele, porém, você sempre dá um jeito e manda o alô por e-mail, que a vida é mesmo corrida. (Mas não precisa ser maratona.) Ele ignora e, dia seguinte, nova missiva coletiva na sua caixa postal. Alertando sobre novo golpe na praça. Golpeada, na verdade, fica a relação de vocês. Polícia!

Responder para um mandador de forward é monologar, falar com paredes sem windows. Ele não responderá, ocupado demais em seu espetáculo-solo. Fwd: é bom; Fwd:Fwd: é sensacional; Fwd:Fwd:Fwd: é a catarse. Para ele, compartilhar é preciso; viver não é preciso. Sem assunto, ele conta com os assuntos dos outros. Tem um milhão de amigos e nenhum. Quer ser lido, mas não acessado.

A solução para o caso não é empurrar a situação com a barriga – nem backward, nem forward. É na base do stop mesmo.

Admirável (des)mundo novo

Ilustração: Ade McO-Campbell/Flickr.com

Eu envelheço e o mundo vai ficando cheio de novidade. Meus espelhos estão mais sinceros, e as propagandas, mais mentirosas. Às vezes, eu queria me trocar, me devolver; acho que vim com defeito. Minha translação é lenta, ando atrasada para viver. Parece que o sol se põe dum lado diferente a cada dia, brincando de ser e não ser. Confundo-me toda nessa giração. De quantas rotações somos feitos, afinal, no admirável (des)mundo novo?

Tenho Gmail, Whatsapp, Facebook, Instagram, Twitter e o diabo a quatro ponto zero. Com quem ou o quê, exatamente, isso tudo me conecta? Agora tudo é descobrível, decifrável. (Exceto o coração de quem (des)ama.) Os segredos de Fátima só permanecem ocultos para quem não tem WiFi, nem banda larga. As teias sociais capturam até os avisados. E longe, de fato, é um lugar que não existe. Só sei que dependo de água e fibra óptica para viver. Tem dias que preciso mais de uma que da outra. Não conto qual.

Vivo, com expansões em vez de contrações, num parto incessante de ideias desvairadas. Algumas já nascem mortas. Outras vingam e me dão tanto trabalho. Tento escrever meu diário, mas o presente vira memória num piscar de olhos. Sei que a cabeça está cheia quando passo a me procurar, o tempo todo, para conversar. Qualquer hora, mando dizer que não estou.

Alimento-me de atualizações, bebo a pressa, sempre com pressa, e arroto posts aleatórios. Embanano-me diante de tantas opções, no infinito self-service do admirável (des)mundo novo. No entanto, recuso o adoçante, o light, o diet. A vida precisa ser integral.

Dei frutos. Eles continuam rentes ao meu tronco, lambendo minha seiva diária. Eu os protejo e lhes dou sombra. São meus admiráveis filhos novos. Vou imprimindo em meu corpo cicatrizes em forma de tatuagem, enquanto a da cesárea vai desaparecendo. É um recado.

Na admirável (des)ordem nova, os pecados são mais complexos. Os dez mandamentos já se multiplicaram: “Não compartilharás em vão”. Desobedeço ao menos um, todos os dias. Deus, eternamente online, nem liga. Testo sua onisciência, imito sua onipresença e não espero pelo castigo. Ele é moderno. Eu, não.

Ops

Ilustração: Michael Whitehead/Flickr.com

Você termina de digitar a mensagem e, um décimo de segundo depois de clicar em “enviar”, percebe que o email do destinatário está errado. Ingenuidade pensar que seu pedido – aquele que você fez em seguida, ao mesmo destinatário, para que desconsiderasse o que recebeu por engano – vá ser atendido.

Ele vai considerar, sim. E muito. Vai ler a mensagem inteirinha, tim-tim por tim-tim. Exercitará os neurônios, a criatividade e a clarividência para compreender o contexto do que leu, caso isso não esteja assim tão claro. Guardará a mensagem, para futura referência. A partir de agora, seu apelido íntimo, seus segredos – graves, médios e agudos –, suas mazelas profissionais ou afetivas, desde quanto você vai faturar naquele negócio até o que você pretende fazer com seu namorado no sábado à noite, em detalhes impronunciáveis, tudo se tornará público. O que você escreveu passará ao domínio não só de um terceiro, mas de um quarto, quinto elemento ou muito além disso, dependendo do grau de interesse que seu texto possa despertar na comunidade virtual, e do tamanho do mailing list do espírito-de-porco em questão. Fato: você ficará vendida e alguém terá o prazer de fazer a entrega.

Nem pense em tentar explicar como a mensagem foi parar lá, muito menos do que ela trata. Não haverá emenda capaz de consertar um soneto irrecuperavelmente perdido. O melhor é fingir-se de morta, ainda que você desejasse, de fato, estar.

De acordo com o velho ditado, há três coisas na vida que não voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida. Novos tempos trataram de incluir a quarta à milenar sabedoria: o email enviado.

Copie e cole na sua cabeça: a vida não tem Ctrl-Z.

Buscadores de lembranças

Ilustração: Ravenelle/Flickr.com

Atire a primeira pedra quem nunca procurou ex na internet. Seja solteira, casada ou tico-tico-no-fubá. Feliz no casamento, nem tanto ou nem um pouco. Por saudade, curiosidade ou falta do que fazer. De qualquer idade. O impulso é democrático.

Vamos combinar: isso não constitui traição. Não representa, necessariamente, recaída ou interesse num revival. Nem é prova incontestável de crise conjugal, existencial, ou as duas juntas. Psicólogos de plantão que me perdoem, mas o negócio pode – vejam bem, pode – ser mais simples: trata-se de querer saber por onde anda quem um dia andou com você. Descobrir se engordou. Se está grisalho. Saber onde está trabalhando, se casou, teve filhos. Se terminou aquele mestrado em Direito Penal ou abriu um boteco. Se é feliz, se virou monge, se está em expedição na Antártida ou se alugou um apartamento no seu bairro. Ou se sumiu do mapa e há dois anos não telefona nem para a mãe no Natal. Sem motivações rocambolescas e, uma vez saciada a curiosidade, retomar os afazeres sem maiores inquietações ou aflições.

Para dar conta da atualização afetiva, com ou sem segundas intenções, quem precisa de vidente se existem os buscadores, as redes sociais? Google, 123People, Orkut, Linked in, Twitter, Facebook, todos podem dar boas pistas em poucos segundos, uma proeza para qualquer esotérico profissional. Vale quase tudo na hora de sondar um paradeiro. Que mal há? É preciso, porém, ter boa memória para fornecer primeiro nome, nome do meio e sobrenome, cuidado com os homônimos e paciência para varrer os resultados sugeridos – melhor incluir as aspas na pesquisa. Quem é tradicional recorre ao método antigo: liga para a amiga do primo da cunhada que trabalhava com o fulano, estabelecendo uma espécie de corrente investigativa. O sigilo, nesse caso, passa ao largo do absoluto. Não há política de privacidade e o ex vai ficar sabendo, o que pode ser boa ou má notícia, dependendo do passado – e presente – em questão.

Às vezes, nem se trata de um ex de verdade, como ex-marido, ex-noivo, ex-namorado. Somente um ex-quase. Ou sequer ter chegado a isso. O amor platônico da faculdade. O dono da academia de ginástica onde você queimou mais suspiros que calorias. O moço cheio de esperança que lhe entregou um cartão com nome e telefone numa livraria e você, boba, jogou fora. As histórias de amor que foram sem nunca terem sido. Por culpa do Cupido, que estava de folga no dia. Ninguém é de ferro. Para dar uma forcinha nos assuntos do coração na era da informação, Santo Antonio deve ter sido convidado a fazer parte do Conselho Executivo do Google. Será que ele topou?

Fazer essa busca na internet também pode ser tudinho que você está pensando. É parte de um plano de ataque, minuciosamente elaborado sabe-se lá por quais razões – afinal, ninguém tem nada com isso, exceto quem vai para escanteio logo, logo. Talvez, uma sessão nostalgia, com direito a imaginar o que teria acontecido, não fosse o adeus. O adeus de comum acordo. O adeus sem acordo. O adeus sem adeus. Para tal, as vantagens da internet são imbatíveis. Auto-serviço, razoável garantia de anonimato, flexibilidade de horário. E ainda é de graça. Pode-se apagar o histórico da fuçação no browser. Afinal, será difícil explicar depois que focinho de porco não é tomada. Na iminência do flagrante, alternar para a página previamente aberta de um jornal online e disfarçar – “Quem será que ganha no segundo turno, hein?” – é tão rápido quanto o piscar de um par de olhos ressabiados.

A internet, no entanto, não emite opinião. Não resolve angústias. Não faz terapia. Nem aconselha. No caso de se querer saber se o ex ainda sente alguma coisa por você, ou se vocês têm alguma chance, ela não serve. Aí, só a vidente. Porque nem o santo casamenteiro vai querer se meter nisso.

O dersubu das amensons

arte: Károly Kiripolszky
arte: Károly Kiripolszky

Tente concluir alguma operação na internet – qualquer uma: deixar comentário no blog da comadre, comprar um livro ou enviar um simples email – e lá estarão elas. Implacáveis, desafiadoras da sua acuidade visual, insensíveis à sua pressa e, sobretudo, descrentes de que você é você. São as palavras de verificação, remédio amargo inventado para combater a doença do spam. Prescrito a todos, sem exceção. Até para quem não apresenta sintoma algum. Prevenção pura. É assim nas epidemias.

Como num jogo eletrônico, a função da palavra de verificação é impedir que você passe de fase. Um malévolo programa tentará lhe confundir: é um “i” maiúsculo ou um “L” minúsculo? A letra ó ou o número zero? Ele borrará o fundo, enfiará rabiscos no meio, distorcerá as letras. Sacaneará você, sem cerimônias. Um carrasco virtual, inexplicavelmente piedoso: serão-lhe concedidas quantas chances, ou vidas, você precisar. Ao detectar seu erro, outra palavra se apresentará e, diante do segundo equívoco, nova mistura alfanumérica, igualmente incopiável. E assim sucessivamente. O verdadeiro intuito não é auxiliá-lo, e sim testar seus brios. Checar até onde você está determinado na sua intenção. Até a hora em que seu chefe se planta ao seu lado, o telefone toca ou seu filho prende o gato no armário, e você deixa a verificação para lá. Não era nada tão importante assim. Depois você telefona para a comadre. Vai até a livraria e compra o dito cujo. Manda uma carta pelo Sedex. Mais fácil.

As palavras de verificação não são exatamente palavras. Oficialmente, são “imagens”. Para livrar dos tribunais quem as inventou, evidentemente. No entanto, se o objetivo é detectar se tem gente do lado de cá do computador, é incompreensível que não surjam de forma simples como banana, arara, cogumelo, casa. Não: tem que ser o indecifrável dersubu. As enigmáticas obvent e pargampu. A etérea amensons e a indizível muthst. Para não errar, você se concentra e, usando apenas o indicador, digita uma letra de cada vez. Confere na tela e, estando tudo correto, parte para a próxima letra. Sensação idêntica, para os mais velhos, a da primeira vez a sós com uma Olivetti.

Você fica na dúvida se a tecnologia está, de fato, a seu favor. Ou se é um movimento organizado em prol do idioma da nova era, conduzido por extraterrestres detentores de alta tecnologia, infiltrados em nosso planeta. Justo agora, que você aprendeu a se expressar em cento e quarenta caracteres e já havia se conformado com o huashuashua das mensagens instantâneas.

O futuro é incerto. Melhor se preparar.

All You Need Is Love (ainda sobre as gentilezas)

Ninio Romantico/Flickr

I

Um dia o Carlos, meu cunhado, chegou em casa com um presente para minha filha. Era uma enorme tartaruga de pelúcia cor-de-rosa. A tartaruga tinha um zíper na barriga, e nela quatro ‘ovinhos’ feitos de pano. Dentro, os filhotinhos. A tartaruga poderia ficar grávida e não-grávida, e as tartaruguinhas nasciam quantas vezes a gente quisesse. Era só colocar os bichinhos de volta na barriga e começar a brincadeira de novo. Enquanto minha filha se divertia com a novidade, meu cunhado revelou: Eram cinco ovinhos. E cadê o outro?

Foi assim. O voo estava lotado. Uma mulher estava com sua filhinha pequena no colo, que chorava sem parar. A mãe tentava distraí-la, cantava, contava histórias e nada. Os passageiros – meu cunhado, inclusive – já se incomodando com a situação, mas fazer o quê? Criança não quer nem saber, quando quer chorar, chora mesmo.

Foi quando o Carlos teve uma ideia. Pegou a tartaruga que estava embrulhadinha no bagageiro, e não teve dúvidas. Ou melhor, teve, mas era um quase caso de vida ou morte. Ele abriu-lhe a barriga, retirou um dos ovinhos e o deu à menininha. Como num passe de mágica, ela abriu um sorriso e parou de chorar. E todos viveram felizes para sempre.

Está certo, meu cunhado teve outra motivação, além da compaixão: o desejo de viajar em paz. Mas tirante isso, o gesto foi, no mínimo, uma gentileza das boas. Capaz de fazer a diferença na vida daquela garotinha, naquele momento. E da sua pobre e desesperada mãe. Eu, que não sou pessoa das mais gentis, tenho aprendido nos últimos tempos: todo mundo pode fazer alguma coisa por alguém, sempre. Algo simples, que não nos tira do caminho, não nos atrasa e não nos onera. Juro: a vida fica melhor assim.

Minha filha adorou o presente com o bichinho a menos. Até porque ela nem sabia da quinta tartaruguinha – que deve estar até hoje na casa da menininha.

II

Existe um lugar na blogosfera chamado Crônicas de uma menina feliz (não faço o link aqui de propósito, só mais adiante). A dona dele, uma brasileira que vive na Alemanha, dedica-se a uma atividade singular. Ela faz desenhos para os outros. Mas não são simples desenhos. Quero dizer, são desenhos simples, que ela própria chama de ‘bobinhos’, mas que não são nem um pouco simples na sua natureza. Ela desenha a vida das pessoas. Gente que ela nunca viu na vida lhe manda histórias de suas infâncias, contando suas doces memórias, e ela põe tudo no papel. Depois, todo mundo pode ver na tela. Às vezes, ela fica sabendo de uma história (triste ou feliz), se comove, e lá vai ela desenhar. Com um capricho de dar gosto.

Quando encontrei esse site, absolutamente por acaso, resolvi lhe mandar algumas das minhas histórias, assuntando se ela não gostaria de desenhá-las. E não é que ela gostou da ideia? Antes, fez uma espécie de entrevista comigo: quis saber como eram meus pais, meus irmãos, que roupas eu usava quando criança, como era a casa onde cresci.

Quando vi o post de hoje no seu site foi impossível não ficar com os olhos rasos d’água. Fiquei impressionada, e comovida, com sua habilidade para captar os detalhes do que lhe contei, das fotos que lhe enviei, traduzindo tudo em desenhos transbordantes de carinho e delicadeza. Como se as pessoas da minha família (até o gato) fossem seus velhos e queridos amigos. Ganhei mais um presente diferente e bom este ano, além dos que eu já contei aqui dias atrás.

Essa moça é uma verdadeira retratista de boas lembranças. Ela doa seu tempo e sua energia, simplesmente para fazer um agrado. Pensei com os botões: por que uma pessoa faz isso? O que move um desconhecido a nos endereçar tamanha gentileza? Sim, porque podemos ser gentis com quem está à nossa volta. Mas quando o somos com quem não conhecemos, propriamente dito, o sentido muda. É outro papo.

O que a move é simplesmente a alegria de imaginar a alegria das pessoas vendo seus desenhos, que são dela mas que pertencem, de um jeito muito especial, às pessoas retratadas neles. Aquele sentimento que, de um jeito ou de outro, é o que  funda o trem das nossas vidas.

É preciso registrar uma coisa: ela havia me avisado que publicaria minha historinha hoje. Então, este post aqui já estava meio pronto desde ontem, eu só estava esperando ver no que a coisa tinha dado para completá-lo. Prestem atenção: lá no finalzinho de seu post ela resolveu colocar uma música. Que também já estava aqui desde ontem e é, inclusive, o nome deste post. Ninguém combinou nada. Para quem acredita em coincidências…

III

Ave Beatles.

A.E.I.O.U.W.W.W.

Dia desses, deixei as crianças na escola e parei para tomar um café na padaria. Ao meu lado, sentaram-se duas mulheres. Falavam alto, daí que foi impossível não prestar atenção. Uma delas, ruivíssima, suspirou: “Eu já procurei, não tem nada”. E a outra: “Se você não achou na internet, é porque não existe”. Adocei meu capuccino. Da janela, via o dia novo anunciando mais uma terça-feira ensolarada. E via também um senhor com dificuldades para estacionar seu carro na minúscula vaga entre um caminhão e uma caçamba, visivelmente irritado.

A frase grudou no meu pensamento. Quer dizer que agora é assim? Se não tem na internet, não existe. Concluo, entre aterrorizada e encantada, que o que não está na rede não pode ser dito nem pensado, porque não é. Como se só merecesse crédito o que pode ser varrido pelo Google. A internet, que virou veículo, ganhou poder e credibilidade, pode ainda ser uma coisa desconhecida para um bocado de gente, conhecida para mais um bocado e inacessível para outras tantas. Mas é inegável o papel dela na vida de outro bom bocado que passeia por ela procurando informação, trabalho, diversão, distração, dinheiro, amor, amizade, sexo, drogas, rock’n roll, ingresso para o cinema e receita de bolinho de arroz. Agora, a vida e o além da vida cabem numa tela. Simples assim.

Não digo que foi num clique, mas em vários, que minha irmã encontrou descendentes de nossa família, espalhados pelo mundo. Encontrei amigos do pré-primário. Amizades de mais de trinta anos atrás, tão preciosas, perdidas no tempo, porque cada um foi para um lado. Posso comprar tudo o que preciso, e o que não preciso também. Não vejo a cara do vendedor, não sei se é educado ou tosco, mas mesmo assim confio-lhe o número do meu cartão de crédito. Descubro nomes de músicas que sempre amei e nunca soubera o nome. Isso para ficar em apenas alguns exemplos. Na rede, quem não vê cara, vê coração e muito mais. Pois há médicos usando a internet para ajudar nos diagnósticos. Dentro da lei e da ética.

Vou terminando meu café e pensando no quanto o mundo está diferente. Imagino que se fosse composta hoje, a A.E.I.O.U. de Noel Rosa e Lamartine Babo hoje teria um terceiro dabliú nos versos da cartilha da Juju. Se aquele senhor lá do comecinho da história quisesse, poderia pedir ajuda no Google: “como estacionar”. A resposta viria em 0,09 segundos. Tomé, o apóstolo que duvidou da ressurreição de Cristo, talvez hoje precisasse apenas ver no You Tube a cena, captada por alguém com um celular, para crer. E, no final das contas, John Lennon teria total razão em afirmar que os Beatles eram mais famosos que Jesus: bastaria comparar os resultados nos buscadores.

Hora de ir trabalhar. Pago meu capuccino, Tem troco para cinquenta? Fui embora pensando em São Tomé, na nova ordem mundial, e fiquei sem saber o que a ruiva queria encontrar.