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Piscina

Esta é de quando eu queria-porque-queria ter piscina em casa.

Mantinha um relacionamento platônico com as piscinas das novelas e, eventualmente, das casas dos outros. Sem falar nas do Juventus, que não eram para o meu bico (já contei essa). O amor é azulejadinho.

Inconformada, resolvi fabricar minha própria piscina. Ah, a bravura indômita da pré-adolescência.

Morávamos em uma pequena vila com quatro casas. A nossa era a número 1. Entrada lateral, portãozinho de grade, estreito, coisa de metro e pouco de altura. Na sequência, a escada que levava ao quintal, propriamente dito. A largura desse corredor? Também, metro e pouco. De um lado, a parede da nossa casa. Do outro, o muro que dava para a casa da Wanda, que tinha um cachorrão, o Gueibin (já contei essa também). Ao lado do portãozinho, torneira e registro de água, com aquele reloginho esquisito que não marcava as horas.

Pois bem. Elaborei um projeto para me refrescar no verão paulistano. Quem precisa de engenheiro, quando se tem alguns sacos plásticos, desses para lixo, e durex?

A ideia brilhante: fechar o portão com os sacos plásticos, tomando o cuidado de vedá-los embaixo, rente ao chão, e abrir a torneira. E vedar com o quê? Durex, oras. Formaria uma pequena represa cujos limites seriam: portão, parede, muro e escada. Não ficaria uma piscina categoria Juventus, claro. Porém, se tudo desse certo, eu teria água até a cintura. Poderia até usar os primeiros degraus da escada – ficariam submersos, de acordo com o projeto – para sentar e relaxar.

Desvantagem: ninguém poderia abrir o portão. Ou seja: quem estivesse em casa, não poderia sair. Quem chegasse, não poderia entrar. Mas o que é o direito de ir e vir da família, diante da oportunidade de ter uma piscina no lar, doce lar? Se bem que, pelas dimensões, estaria mais para ofurô. E quem se importava?

Coloquei biquíni. Instalei os sacos plásticos. Procedi com a vedação, torcendo para que ninguém desse falta do durex. Animada, já cogitava expandir o projeto e, quem sabe, atender outras amigas despiscinadas. Abrir um negócio, patentear o sistema, talvez? Empreendedorismo na veia, bicho.

Abri a torneira.

O processo pareceu-me um pouco demorado, sentei-me no chão. O reloginho correndo feito louco. Um dedo de água e o represamento ia bem.

Dois centímetros, e meu dedinho do pé já estava submerso!

A torneira era um chuá só, quando notei que o durex perdera a cola em alguns pontos. Eu precisava encarar a verdade: estava diante de um iminente vazamento. Era óbvio que meu projeto careceria de alguns ajustes.

Lentamente, a impiedosa água, dotada de anima e vontade própria, atravessava os limites dos plásticos e começava a ganhar a calçadinha. Era minha piscina indo, literalmente, pelo ralo. Porcaria de durex. Ali, aprendi que a água sempre seguirá seu caminho.

Cerrei a torneira, resignada. Só restava afogar-me na frustração. A brilhante ideia da piscina só não fora pior que a de me bronzear no telhado, mas essa eu conto outra hora. Recolhi os sacos, agora imprestáveis, joguei no lixo. Liguei a TV para assistir à Sessão da Tarde e fui fazer um sanduíche. Afinal, piscina dá uma fome danada.

Água e sabão

bolha sabão
arte: Guenevere Schwien

A brincadeira consistia em 1) jogar bastante água no quintal, 2) espalhar um pouco de sabão em pó e 3) ficar escorregando pra lá e pra cá a manhã toda.

Diversão da qual eu, caçula, não era autorizada a participar. Minha irmã e meu irmão mais velhos, privilegiados pelo tempo, deslizavam pelo chão vermelho de caquinhos, felizes da vida. Eu só assistia. E desejava, com toda determinação que garotinhas de quatro anos são capazes, crescer logo para entrar naquela farra também.

O quintal, pequeno, tinha bom formato para a pista ensaboada. Na lateral estreita, quinze metros, no máximo, os tombos não importavam. Eram, aliás, a melhor parte. Com direito a adrenalina extra: ao final do corredor, havia uma bela escadaria que dava para o portão de entrada. Se mal calculada, a brincadeira poderia acabar em choro. Ou coisa pior. E quem se importava?

Um dia, enquanto meus irmãos capotavam, às gargalhadas, meu pai me chamou na porta da cozinha, que dava para o quintal. Abaixou-se um pouco e me olhou, sério. Pediu que eu tirasse a blusa. Era de botões, eu me lembro. Fiquei só de calcinha, já vislumbrando o anúncio. Ele desfranziu o cenho e, sorrindo, proclamou o tão sonhado alvará: “Vai!”.

Finalmente, eu estava liberada para a epifania aquática. Já não era mais criancinha, então. Joguei-me naquele pequeno parque de diversões caseiro. Imitei o quanto pude meus irmãos, veteranos do sabão. Acatei suas dicas, Ó, faz assim, Olha a escada!, e nunca me diverti tanto.

Era a água e o sabão, lavando a alma dos três filhos de Antonio e Angelina.

Nina, a neta caçula deles, lembrou esta semana de quando sua escola montou para a turminha do maternal uma lona ensaboada. Pediram até para levar biquíni. No fim da tarde, quando a busquei, vi em seus olhinhos castanhos e nos cabelos molhados: foi dos dias mais alegres que ela passara ali.

Será que transmiti a ela, em algum gene, a experiência do pequeno quintal? Hereditariedade é mesmo um barato.

Quem me ensinou a nadar

De elemento água, não sou. Como autêntica taurina, meu negócio é terra firme. Nem wet, nem wild.

Reza a lenda que, em certo passeio a Santos, fui derrubada por monstruosa onda. Certamente, nada além de uma marola júnior. Para uma garotinha de dois anos, no entanto, devastador tsunami.

Costumo contar o episódio para justificar a paúra das águas. Eu, de costas para o mar, olhando minha mãe na areia. Vem a danada da onda e me dá um capote. O resto é história.

Não entro em barco, já empaquei atravessando pinguela, nunca enfio a cara no chuveirão. Houve uma vez, no entanto, em que o trauma pareceu arrefecer.

Tapiratiba, final dos anos 70. Visitando parentes do meu pai, a turma resolveu ir à cachoeira. A sardentinha aqui vestiu-se de coragem e foi no embalo. Afinal, não era possível que as águas fossem assim tão terríveis. Nem que nadar fosse coisa tremendamente difícil. Disposta a viver, ali, minha história pessoal de superação, entrei em suas águas calmas, onde as quedas se transformavam em piscinão. De roupa e tudo. A Isabel, esposa do Tião, quis certificar-se que eu sabia nadar. “Aham!” – respondi, determinada.

Quem me ensinou a nadar

Quem me ensinou a nadar

Foi, foi, Marinheiro

Foi os peixinhos do mar

Primeiro (único) tchibum e Oxum surgiu, rindo da minha esdrúxula performance aquática. Eu era uma espécie de peixe fora d’água – só que ao contrário. Afundei, me debati, engoli água. Avistei a Dona Morte se aproximando, metida em um maiô grafite estampado com foicezinhos em verde neon, querendo me levar para um rolê. Foi quando a Isabel percebeu que aquilo não estava indo muito bem.

“Tira a menina da água!”, “Puxa o braço!”, “Tião, ajuda aqui!”.

Salvamento realizado com sucesso. Minh’alma encharcada. O rolezinho ficou para depois. Quando, enfim, recuperei o fôlego, a Isabel estava inconformada: “Mas você não disse que sabia nadar?”.

Muita autoconfiança aos dez anos de idade dá nisso. Insisti que sim, eu sabia nadar. E completei, para incredulidade dos presentes: “Eu treino na cama”.

Foi assim que protagonizei, talvez, a melhor piada da família. Lembrada até hoje nos encontros e festinhas.

Minha sorte é que, naquela época, não existia internet.

Regras

cafe

Meu irmão implica comigo.

Diz que tenho que tomar a água, aquela que vem no copinho acompanhando o espresso, antes. E depois, só depois, o café. “Para limpar as papilas gustativas e apreciar melhor o sabor do café”, ensina. Eu sempre tomo a tal água do copinho depois. Às vezes, nem tomo. Gosto das minhas papilas gustativas sujas, mesmo.

Assim, o sabor do café se mistura ao sabor de tudo que comi antes de encontrá-lo à tarde na padoca – o pão com manteiga na chapa e o suco de uva e a banana prata com Nutella no desjejum, eventualmente um teco do bolo que deu sopa na bancada da cozinha no meio da manhã, o arroz, o feijão, a salada, a berinjela gratinada, a couve no alho do almoço – e então construo o gosto da minha vida. Que nem sempre é doce.

Meu irmão pode estar certo, tecnicamente falando. Alguém, um dia, pensou nisso, testou, provou cientificamente, estabeleceu a regra que se espalhou, foi parar nos livros, teses e tratados sobre o tema.

Como já sou desregradamente apaixonada por café, se seguir o preceito talvez eu alcance o nirvana. Talvez desenvolva a paciência, atraia a prosperidade, perca a barriga, cresça dez centímetros, me transforme em uma nova mulher. Enfim, talvez tenha a autêntica experiência do bom café, e tudo graças a uma simples inversão na ordem das coisas.

Balela.

Regra boa é aquela validada pela alma. A que faz sentido, desde antes de fazer sentido. Quem pensam que são os cafeólogos, para se meter nas minhas papilas gustativas?

E meu irmão vem encher meu saco. Logo ele. Que a vida inteira, antes de aprender isso, fez o contrário (água pré, café pós) e, asseguro, era feliz. (Nem vou relatar meu sofrimento quando o assunto é vinho.)

Eu, pura maldade, faço questão de provocá-lo.

Nossos cafés chegam. Ignoro o pobre copinho de água borbulhante ao lado. Abro o saquinho de açúcar, despejo-o na xícara, mexo, apoio a colherinha no pires e sorvo a bebida. A essa altura, as papilas gustativas dele já tomaram banho, seu copinho de água jaz vazio e ele se prepara para sua experiência lisérgico-cafeística conforme o manual. Finge serenidade, apesar da desaprovação à minha blasfêmia cafeeira.

Mas eu reparo; ele está desconfortável, se remexe na cadeira. Seus dedos tamborilam nervosamente sobre o jogo americano de ráfia amarela. Ele mira o horizonte, coça a cabeça, suspira. Puxa assunto. Respondo e meu bafo mescla resíduos do grand cru e da berinjela gratinada. Ele, silenciosamente, começa a rezar por minha alma.

Dou o último gole no café. Apanho o copinho de água.

Seus lábios inferiores tremem.

Bebo a água.

Ele enxuga a testa.

Eu estraguei tudo.

Ele desistiu de mim.

Baila comigo

arte: Shiko
arte: Shiko

Em tempos de desespero hídrico, paulistas, mineiros e fluminenses apelaram aos rituais mágicos para que a água retornasse às torneiras áridas. Entrou em cena a dança da chuva, a performance ancestral que promete eficácia na geração de torós.

Se o elemento água, artigo em falta nos canos do sudeste, pode ser trazido de volta com uma dancinha, por que não promover um grande baile nacional, quiçá mundial, a fim de evocar atitudes escassas, esquecidas, evaporadas com o tempo, levadas com o vento?

Uma dança da gentileza, por exemplo. Com precipitações abundantes de amabilidade para socorrer, entre tantas necessidades, o trânsito das pequenas, médias e grandes cidades. Só não é recomendável realizá-la na hora do rush, no meio da avenida.

Dança da paciência. Solitária, em par ou em grupo, para que escorra sobre cada um o dom da serenidade e da calma, a fim de melhor lidarmos com todos e tudo, de infâncias a velhices, de sofrimentos a injustiças, de chatices a arrogâncias. (Comigo, confesso, nunca funcionou; venho dançando há décadas, e ela ainda não deu o ar da graça por aqui. Talvez eu que não esteja fazendo direito os passos.)

A dança da tolerância, para alumiar mentes obtusas diante do diferente, e a dança da compaixão, até que ela, assim como o amor cantado por George Harrison, venha para cada um.

Sólidas ou líquidas, são muitas as coisas faltantes neste mundo. Invente a sua coreografia, e bote todo mundo na roda. Os deuses responsáveis hão de se sensibilizar. “Dance bem, dance mal, dance sem parar”.

Não custa tentar.

Enquanto eu me ensaboava

Ilustração: Michelle Certonio/Flickr.com

Se não me banho ao acordar, não termino de nascer para o dia que se faz pronto. É sob minha chuva particular que apago da pele o dia passado, para dele só permanecer, feito tatuagem, a mais bonita palavra. Nem sempre a ouço, porém.

Ontem, enquanto eu me ensaboava, quis mudar o mundo. Mas essas coisas dão preguiça pela manhã, à tarde é melhor. Então, mudei apenas a temperatura da água, tanto calor.

Enquanto eu me ensaboava, assuntei quantas pessoas no planeta faziam o mesmo no exato instante. Imaginei um banho universal. Ah, que bom se todos saíssem dele cheirando a erva-doce. Ou pitanga.

Enquanto eu me ensaboava, o filho chamou. Fingi não escutar, terminava com o dedo uma frase no vidro do box, cheio de vapor. (Tem gente que canta no chuveiro, eu escrevo.) Tive a nítida sensação de que o gato, enrodilhado no tapetinho, leu. Do rádio no quarto, um Lou Reed doidão sugeria: “take a walk on the wild side”. Eu, que pouco me atrevo a passear por lados selvagens, fiquei com vontade. Pra começar, me encarei no espelho embaçado. Em seguida, travei uma verborrágica conversa com meu terapeuta imaginário. O problema é que ele não ouviu nada, justamente por causa do chuveiro.

Enquando eu me ensaboava, olhei o sabonete tão redondo e lembrei dos nove círculos de Dante. Meu banho virou a divina lavação. Lavei a cabeça uma, duas, três vezes. As ideias permaneceram áridas, tal o inferno. Onde vende shampoo para ideias secas? Na hora do enxágue os pensamentos mais gordos não passaram, ficaram retidos no purgatório da autocensura. Fechei o ralo, só para ver a água pausar seu movimento. Abri, ela retomou seu caminho. Fechei de novo, depois abri mais uma vez. Fiquei ali, numa espécie de paraíso, brincando de mandar nas coisas.

Enquanto eu me ensaboava, vi o espectro dos meus amigos da escola primária em cada azulejo, num fragmento úmido de memória. Cumprimentei um por um. Mas evitei o abraço, não se sabe as pessoas tanto tempo depois.

Enquanto eu me ensaboava, fui à festa de aniversário da minha filha daqui dezesseis anos. Como engordei. Mas gostei das minhas calças de veludo cinza-chumbo, bem modernas.

Enquanto eu me ensaboava, pensei na lista de supermercado da semana, no livro que não sai, na fé que balança, mas não cai. Repassei o calendário de vacinas dos gatos, meu Deus, todas atrasadas! Assim como as minhas injeções anti-impaciência. Em dia, só minhas pílulas de melancolia.

Sim, fiz tudo isso no breve espaço de um banho matinal. Pensamento é igual sabão, e uns fazem mais espuma que os outros. Não foi banho comprido, saibam. Prova de que o tempo não é o culpado pelos atrasos, tampouco pelos adiantamentos. No fundo, ele é um pobre coitado que só sabe passar.

Abri mais o chuveiro, levemente siderada. Vi a nesga de sol no vitrô, o banheiro inteiro cheirava a pitanga. Enquanto eu me enxaguava, ainda era verão.