Encerramento.

Queridos e queridas

Hoje encerro este amado blog.

O Fio da Meada nasceu em abril de 2009 e, de lá para cá, foram quase 700 crônicas e um punhado de minicontos e poesias. Tudo permanecerá aqui, guardadinho no ciberespaço. E eu seguirei com minha escrita. Continuo nas redes sociais, aqui e ali. Meu contato também permanece: blogdasilmarafranco@gmail.com.

Muito obrigada a todos que passearam por aqui. Amigos leitores, leitores amigos: fiz tantos! A cada um de vocês, meu maior abraço.

Silmara

Meu pai.

Seu Tonico 02/02/1932 – 30/01/2022

Caros e caras

Eu havia me programado para retornar ao blog este mês. Mas agora não vai dar. É que Seu Tonico, meu pai, personagem de tantas crônicas, morreu no dia 30 de janeiro. Primeiro, uma pneumonia. Depois, ela: a Covid-19 (apesar de triplamente vacinado). Se ele esperasse mais três dias, completaria noventa anos. Em vez de festa de aniversário, ganhou funeral. E um céu inteirinho, embrulhado com laço de fita. Volto assim que for possível. Cuidem-se bem!

PS: estou repostando as crônicas que escrevi sobre/com ele, nas minhas redes sociais. Aqui e aqui.

Corcel

De casa dava o que, cem metros? Nem dois minutos a pé. A Escola Estadual Professor André Xavier Gallicho ficava, literalmente, na esquina. Mesmo assim eu, menina carente de pai e mãe em casa, posto que os dois trabalhavam na venda de manhã até à noite, gostava quando eles, a caminho do batente, me deixavam na escola.

A bordo do Corcel marrom eu tinha a carona mais breve e deliciosa do mundo. Mal dava tempo de abrir a janelinha do banco de trás, e já havíamos chegado. Eu queria ter um relógio esticador de instantes, para poder ficar um pouquinho mais com eles. Só os veria novamente quase na hora de dormir.

Para aproveitar a carona zás-trás, eu tinha que chegar cedo, muito cedo à escola. As aulas no primário começavam às sete, e às seis e vinte eu já estava no pátio. Sozinha. Quer dizer, eu e o bedel. Se eu saísse de casa faltando cinco para as sete, ainda chegaria antes de tocar o sinal. Poderia dormir um pouquinho mais, não? Não. E perder o gostinho de chegar de carro, Seu Tonico no volante, ganhar beijo e um “Estuda bastante, fica com Deus” da Dona Angelina? O sacrifício valia a pena. 

Valeu até no dia em que meu pai, ainda na frente de casa, não percebendo minha presença ao lado do carro, fechou o porta-malas do Corcel no meu dedo. Não foi da maneira como eu gostaria, mas naquela manhã o relógio esticador de instantes funcionou. Muita dor, chororô e um pouco de gelo depois, alguns “Mas você não viu a mão dela ali?” e outros “Como é que eu ia ver?”, eles me deixaram no portão da escola. Estavam atrasados para erguer as pesadas portas de ferro da venda, e a freguesia não perdoava.

Eu perdoei meu pai pelo dedo inchado e dolorido, que foi mudando de cor ao longo da semana.

Nosso Ford Corcel também mudou de cor. Branco de nascença, foi repaginado pelo meu irmão, que havia descolado um compressor para pintura. Para quê gastar com funileiro, não é mesmo? A vila onde morávamos virou oficina, era tinta marrom para cá, lixa para lá. Findo o trabalho, a cor não deu brilho por igual, umas partes da lataria ficaram manchadas. Não ficou bonito, não. A história estabeleceu-se na família como aquelas empreitadas cômicas que até hoje a gente insiste em relembrar em (quase) todo encontro.

Naquela época, eu nem desconfiava que corcel é sinônimo de cavalo. Cavalo veloz, de batalha, para ser exata. Então fazia sentido aquele ser o carro da família. Levantar cedo, trabalhar o dia inteiro, negociar as contas, enfrentar credor, criar três filhos, era pura batalha.

O Corcel marrom foi o último carro que meu pai dirigiu. Ele nunca fora lá muito bom das pernas – “má circulação”, cresci ouvindo falar. Era prudente, então, aposentar-se da direção. Minha mãe jamais aprendeu a guiar. E eu perdi as caronas de minuto. Na vida existe perdição e perdeção.

Vi um Corcel na avenida, dia desses. Tão velhinho e desbotado quanto meu pai. Antes que o sinal abrisse, peguei nele uma carona, que me deixou no portão de um outro tipo de escola. Deu até tempo de abrir a janelinha do banco de trás. É que eu guardei o relógio esticador de instantes.

Moletom

Érica chegou no colégio com um blusão de moletom azulíssimo, novinho em folha. Dia seguinte, apareceu com outro, super amarelo. Depois, com mais um, rosa-choque. Ganhara os três de aniversário e fez questão de desfilar suas cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, pelos corredores do Liceu de Artes e Ofícios. Exceto pelos tons, eram idênticos, sem estampa. Estampado na cara que minha amiga devia ser rica. Quem é que sai com a mãe e ganha três roupas de uma vez?

Eu, que não estava acostumada a ganhar roupa assim, no atacado, vidrei nas novidades. Aos quinze, tudo que se quer é um moletom bacana. Desejei ser também merecedora daquela trindade multicolorida: Santo Azul, Santo Amarelo, Santa Rosa. Praticamente um arco-íris, cujo pote de ouro ficava, claro, no quintal da Érica.

Guardei a lembrança, bem dobradinha, em meu armário-memória.

Dois mil e vinte. Planeta enroscado em pandemia, rendi-me de vez às compras online. Andava precisando de umas roupinhas confortáveis para desconfortáveis dias de quarentena. Bati os olhos na vitrine virtual e vidrei: um blusão de moletom super amarelo. Não que fosse inusitado. É que, ao lado dele, na telinha, havia as opções: azulíssimo e rosa-choque, piscando para mim, jogando beijo. Iguais aos da Érica. Pronto. O armário-memória estava aberto.

Tomada por uma epifania cromática e engolida pelo turbilhão das recordações, não deu outra: botei os três no carrinho virtual. Então não desejara, um dia, ser merecedora da multicolorida trindade de blusões de moletom? Pois a antiga quimera estava a um clique de distância. O universo tarda – às vezes, quatro décadas – , mas não falha.

Na hora de fechar a compra, oh infortúnio! Não tinha mais o azul. O site ofereceu o verde, que não apareceu de início. Acatei a sugestão. O que é verde, se não azul com amarelo? Àquela altura, não seria um simples pigmento que arruinaria tudo. A felicidade tem frete grátis, meu bem.

Pacote chegou, corri para o quarto. No espelho, me vi, adolescente. Meus longos e escorridos cabelos negros até a cintura, as renitentes sardas, um certo despertencimento. Estendi os três blusões sobre a cama, ao lado do gato que dormia. Nem era meu aniversário, mas o autopresente me fez retornar aos bancos de cimento dos jardins do Liceu. Porém, “sabendo o que sabem os velhos”, a Calcanhoto que disse. Vi, então, a Érica sentada ao meu lado, com suas confidências de amores confusos. Seus cabelos curtos, tão loiros e encaracolados, feito carneirinho. Dobrei os blusões. Será que me apoderei de uma lembrança que nem é minha?

Agora, cada vez que abro o armário (real) e dou de cara com a trinca colorida de moletons, sorrio. Ninguém, além de mim, sabe o motivo. Nem a Érica.

Edit: enviei mensagem para a Érica, contando. Ela riu.

O prédio

arte: Jane Dillon Wingfield

Estão construindo um prédio na minha rua.

Muraram o terreno; não vejo os trabalhadores lá dentro, mas já ouço as máquinas operando. Como formigas gigantes, vão cavoucando o chão. Onze andares, diz o outdoor. Inédito na rua. O bairro, antiga fazenda, foi se urbanizando aos poucos. Guarda, nostalgicamente, o ar das chácaras originais, as velhas e frondosas árvores lidando como podem com o cimento das calçadas mal feitas. E meia dúzia de indústrias, acho que antigamente Campinas acabava aqui. Moro em um condomínio de casas que veio depois de tudo, numa parte relativamente alta. Quando desço a rua, vejo o horizonte ao longe. As construções simples, os matos sobreviventes, a rodovia moderna lá embaixo, os carros feito formiguinhas (sempre elas), indo e vindo. Enfeitam a cena revoadas de maritacas faladeiras, bem-te-vis e tucanos eventuais. O bairro é feio, mas a vista até que é bonita.

E agora eles vêm com esse prédio.

Diariamente, vou me despedindo da paisagem. Aguardo, fingindo resignação, o dia em que terei que me contentar apenas com um naco do meu belo horizonte particular. Feliz de quem morar nos últimos andares. Terão não apenas o que avisto, mas um horizonte plus.

Nasci na casa número um de uma pequena vila na Mooca, ainda pelada de prédios. (Repare: condomínio horizontal nada mais é do que uma vila, só que maior, com piscina e boleto todo mês.) A janela do quarto dos meus pais, o único que dava para a vila, era meu observatório. Do posto, me distraía vendo recortes do bairro, decorando a geografia dos telhados do bairro, até onde o olhar alcançasse. A Serra da Cantareira ao norte, tão longe. Será que aquela casa vermelha é no Tatuapé? Havia dois sobrados do outro lado da rua, cujas laterais formavam uma lacuna e nela o sol recém acordado se encaixava perfeitamente. Achava incrível o astro-rei nascer ali, a cem metros de casa. Eu lamentava, no entanto, não morar de frente para a rua. Por exemplo, quando o moço do biju passava, era pelo tlec-tlec-tlec da sua matraca que a gente ficava sabendo. Era um tal de pegar o dinheiro, descer a escada, abrir o portão, corre!, ele já está quase na esquina. Diziam que o que dava forma aos bijus era cabo de vassoura. Certeza que isso explicava aquele sabor especial.

Com o tempo, aquele horizonte se transformou. Dias antes de me mudar de lá, fui até a janela dizer adeus à paisagem fundante da minha vida. Só então me dei conta do quanto ela havia mudado. Pudera, trinta anos. Ainda bem que tenho uma Rolleiflex embutida na cabeça e registrei as principais cenas. Tenho bem mais que onze andares de recordações.

Se eu pedir com jeitinho, será que eles constroem o prédio um pouquinho mais para lá? Não custa tentar. Pensando bem, de quem o meu condomínio, ao ser construído, roubou o horizonte? Apesar de ser de casas, deve também ter tirado a vista de alguém. Vou perguntar às maritacas, bem-te-vis e tucanos. E pedir desculpas.

Desaparecida

Arte: Mário Watar

Penduraram o cartaz na árvore, vi ontem. Papel sulfite já meio amarfanhado, com a fotografia e os dizeres: “gatinha desaparecida”. Grudado no galho, o cartaz lá, balouçando – sempre achei linda essa palavra, balouçar – conforme o vento. Há mais coisas escritas, nome da bichinha, número de telefone, do carro não leio bem. E o sinal já vai abrir.

Árvore é um bom lugar para anunciar gatos perdidos. Gatos sobem em árvores. Se ela, a desaparecida, zanzar por ali, verá o cartaz e pensará consigo, “Estão me procurando”. Gatos sabem ler. Às vezes, não sabem voltar para casa.

Na árvore vivem uns passarinhos. A notícia do desaparecimento já deve ter se espalhado entre eles. Se a gata saiu de casa e não retornou, pode muito bem estar por ali, encarapitada – outra palavra que gosto – em algum galho, à espreita dos alados distraídos. Se bem que a maioria dos passarinhos é esperta. Os que frequentam meu quintal, ao menos, são. Meus gatos bem que se esforçam, mas não pegam nenhum. Ainda bem.

Uma vez, o Léo sumiu. Foram dias procurando o bichano pelo bairro. Morávamos em apartamento, o prédio estava em obras, havia uns andaimes. Grávida, um barrigão deste tamanho, subi no andaime para procurá-lo; jurava ter ouvido o miado dele. Doida, disseram. O zelador que avisou: tem um gatinho branco na garagem. Era ele.

Falando em desaparecida, esta semana teve feriado. Dia de Nossa Senhora Aparecida. Foi também Dia das Crianças. Ninguém fala da infância da mãe de Jesus. Parece que já nasceu mulher feita. Será que Maria, menina pré-santa, gostava de gatos e tinha um para se enrodilhar aos seus pés? Quando eu era adolescente, sonhava em estudar no Externato Nossa Senhora Menina, na Mooca. O menino que eu gostava estudava lá. Mas era escola particular, completamente fora da minha realidade. O menino também era completamente fora da minha realidade. Nem rezando para a padroeira do Brasil.

Meu pai teve um gato. Batizou-o Aparecido. Perguntei por que. “Porque ele apareceu aqui, ué”. Um dia, o Cido (diminutivo que ficou) desapareceu. Virou gato ido. Nossa língua é bem brincalhona.

Tento memorizar a fotografia da gatinha perdida, caso eu a veja pelo bairro, quem sabe? Embora seus donos não tenham sido, digamos, muito eficientes. Cartaz em branco e preto, onde já se viu? Não se sabe se a gata é branca, amarela, cinza. Pode até ser que a desaparecida já esteja em casa, e a família esqueceu de retirar o cartaz da árvore. A peluda lá, de volta ao bem-bom, toda trabalhada no sachê, e a gente aqui, preocupado. O papel balouçando no galho pra lá e pra cá, feito fruto maduro prestes a cair. Repare: o cartaz é feito de papel, papel vem da árvore. Parece que tudo neste mundo, um dia, de um jeito ou de outro, retorna ao seu lugar. Agora só falta a gatinha. Nossa Senhora Aparecida há de rogar por ela também.

Das coisas à toa

arte: Barnaby Goode

Bom mesmo é o sossego daquele cuja única preocupação, na pauta diária mundana, é tirar a casca do ovo cozido sem fissurar a alva clara. Ou observar, sem comprometer a agenda, a formiga dar a volta completa no mamão papaya sobre a mesa e descobrir que ela, formiga, só finge, pois não sabe aonde vai.

Invejo a tranquilidade de quem tem, como estresse máximo da sexta-feira, debater com os amigos entre um tira-gosto e outro, quem é mais fundamental, Cartola ou Noel Rosa. Dedicar a manhã inteira do sábado, se preciso for, para investigar qual, no barulhento casal de maritacas aboletado no poste de luz, é o macho e qual é a fêmea. Inclusive, divagar acerca da possibilidade de serem, de repente, menina e menina, ou menino e menino, por que não?

Invejo igualmente quem dispõe, como única decisão importante do domingo, deliberar se deixa a Alessandra ou põe a voz do Gil do Vigor no Waze. Se faz lasanha ou escondidinho para o almoço, quando chegar em casa depois da feira. Falando em casa, bom mesmo é poder dedicar o resto do dia em que Deus descansou à escolha das cortinas novas.

As coisas desimportantes, incluindo as mais à toa, ao contrário do que muitos pensam, são carregadas de incompreendida relevância.

Como contar quantos ovinhos a Maria Fedida botou naquela frestinha da parede. Ou pesquisar todas as palavras que rimam com Maria, para construir uma poesia. Olha aí, já temos uma.

Coisa boa é estabelecer, como meta da semana, a organização das meias por cor. Exagerando, a reorganização dos livros na estante também; aqui alguém fez o favor de bagunçar tudo esses dias. Onde já se viu Adélia Prado com Diário de Um Banana?

Ideal, ideal mesmo, é passar a tarde todinha embrulhando balas de coco em papeizinhos coloridos com franja e enfeitá-las em cascata, como faziam as tias, em vasilhas uma sobre a outra, sempre que havia festa de casório na família; eu era criança e comia todas.

Todos os atos do mundo, por menores que aparentem, representam incalculável quantidade de energia despendida, impulsionando Gaia na giração sem fim.

Mas agora é com vocês. Quem é imprescindível, Noel ou Cartola? E olhe que isso não é coisa à toa.

Os tijolos

Foram sete fiadas, eu contei.

Sete fiadas de tijolos cerrando o túmulo, aberto mais cedo para receber a tia. Passava das nove da manhã quando ela chegou. A primavera chegou um dia antes, reparei nos canteiros das outras lápides.

No túmulo da família, a tia agora reencontra o tio, seu amor. E também os sogros, os cunhados. Dos três andares em mármore, apenas um está vago e, dizem, reservado. Só Deus sabe o dia da mudança. “Não tenha pressa”, pedi, sussurrando em seus ouvidos onipresentes. Ele deu uma piscadinha. Deus já piscou para vocês? É bonito demais.

O funcionário, sabendo que era observado pela plateia enlutada, foi assentando os tijolos do túmulo com calma, algum capricho e certo respeito. Como quem ergue uma casa. Não deixa de ser uma casa. A última. Se na primeira fiada os tijolos couberam direitinho, na segunda, não. Pensei: e agora? Com a colher de pedreiro, o homem partiu um ao meio; mediu-o, ainda estava grande. Outra pancadinha no tijolo, assentou o toco, pronto. Se na vida tudo tem jeito, na morte também.

Mais uma fiada. A tia, tão elegante. Jamais lhe faltavam o cabelo escovado, a roupa alinhada, o batom. Amorosa, recebeu-me, vinte e um anos atrás, como legítima sobrinha. Sou muito sortuda.

Cemitério, reparem, é uma espécie de condomínio. Nele, a lei do silêncio vale o dia inteiro, e não só depois das dez. De vez em quando, ele é quebrado. Assim que o homem cerrou de vez o túmulo, varreu a baguncinha, lavou a pedra e foi embora, alguém puxou um cântico. Outros seguiram. Tia Lourdinha cantava no coral da igreja. Certeza que ela também os acompanhou, agora mais que nunca, afinada feito anjo.

Uma família é feita de tijolinhos. Bem ou mal assentados. Uns inteiros, outros nem tanto. Nem sempre encaixados com exatidão. Mas unidos por uma poderosa e invisível argamassa. Tijolo sozinho é nada. É no coletivo que a gente existe, nessa imensa olaria que se chama mundo.

Café da manhã

arte: Naoko Izawa

O café da manhã deveria ser cláusula pétrea da Constituição Federal, artigo fundante na Declaração Universal dos Direitos Humanos, primeiro mandamento da Bíblia. Ser pessoal, intransferível, inalienável e inegociável. Não estou falando, porém, do direito básico à alimentação, nem de carboidratos, ingestão diária de calorias, essas paradas todas. E, sim, do café da manhã como instituição. O ritual sagrado de celebração de quem diz: “Mundo, acordei”.

De preferência, ser longo, prazeroso e dispensar o relógio. Para, entre um gole de café e uma mordida do pão francês com manteiga, viabilizar a observação essencial das maritacas que fazem ponto no telhado e do ipê rosa na rua, pré-inaugurando, escandalosamente, a primavera. Para, também, deliberar se o almoço vai ser macarrão ou feijoada e para adquirir, em dois cliques, o livro novo do Cássio Zanatta.

Já fui praticante do café da manhã na modalidade vapt-vupt. Estudava do outro lado da cidade e tinha quatro minutos para fazer descer a banana amassada com aveia e Nescau que minha mãe preparava para mim, antes de enfiar a camiseta do colégio, catar o material e sair chispando, o 3104 passava na rua da Mooca às seis e treze e o motorista ignorava retardatários. Se quisesse me deleitar mais tempo na banana ou fazer um penteado no cabelão, eu que acordasse mais cedo – e aí seria pedir muito. Foi assim na faculdade, foi assim quando comecei a trabalhar no jornal. O café da manhã apressado de segunda a sexta, rasgando sem dó minha Constituição particular.

Um dos regalos de minha mãe era o café da manhã. Hora só dela. O cardápio franciscano disposto na mesa de fórmica, a toalhinha estampada, as louças duralex cor de âmbar (ou aquela beginha?). O rádio AM na cantoneira acima da pia, sintonizando um programa matinal qualquer, Zé Bettio ou Omar Cardoso. Ela com ela; assim começava seu dia. Na verdade, começara antes, ao abrir os olhos. As esperanças disputando espaço com as preocupações. Três filhos, a grana curta, os medos todos que as mães têm.

Não me lembro de ver minha mãe em seu café da manhã. Só me recordo de ela falando dele. Falar de uma coisa é a melhor maneira de fazê-la existir. Quantas vezes Dona Angelina chorou as pitangas, depois que ela e meu pai resolveram ser empreendedores e abriram uma venda… (Achava o fato de terem ‘comprado’ uma ‘venda’ uma excelente sutileza linguística). As longas jornadas, de segunda a segunda, iniciadas antes de o sol abrir os olhos, não a deixaram mais desfrutar o café da manhã em paz. Seu direito fundamental lhe fora subtraído. Talvez ela tivesse quatro minutos em casa para mandar alguma coisinha para o estômago, antes de pegar no batente. Ou quatro minutos já atrás do balcão, entre um freguês e outro. Em vez da mesa de fórmica, um canto improvisado entre prateleiras de latas de óleo, sacos de arroz e feijão, as garrafas de Cinzano e Tatuzinho, o baleiro cheio de Delicado e Jujuba. Em vez do rádio, o ruído do motor da geladeira, responsável pelos guaranás Caçulinha sempre fresquinhos. O direito (aquele, que deveria estar na Constituição) só lhe foi restabelecido uma década depois, quando ficou doente e não pode mais dar expediente na venda. Considerei isso uma pequena sacanagem da vida.

Em meu ritual particular, além do pão, dou-me música e notícia e gatos – também alimentos. Envio, recebo, respondo mensagens, vou relembrando o sonho da noite passada. A manhã é do café e ninguém tasca. Estico-o até onde dá; às vezes, reconheço, mais do que deveria. Penso também que, se me demoro no ritual, o faço por minha mãe. Como se meu café da manhã longa-metragem fosse espécie de compensação para ela. Talvez, seja coisa do nosso DNA. Ou só preguiça, mesmo.

Azul

Havia mais, dentro da caixa de papelão. Aquela, há tempos encostada no corredor. A da etiqueta invisível, “Depois eu vejo”, e que, um dia, resolvi ver. Nela, entre outras preciosidades, parte de um antigo enxoval de bebê, pertencente a nós, os três filhos de Angelina e Antonio. Uma touquinha de tricô, pagãozinhos bordados, um xale de lã. E o vestidinho azul.

Enodoadas e meio esfareladas pelo inclemente tempo, não houve saída para as roupinhas, a não ser o lixo. O xale, inexplicavelmente em bom estado após meio século e tanto, teve fim mais nobre e foi embalar algum bebê rechonchudo; é o que disse a moça da igreja, quando levei a sacola.

E o vestidinho azul.

Por pouco não foi embora também. Cheguei a colocá-lo junto ao xale. Tirei. É que a memória apitou, feito um trem quando atravessa a neblina da serra. Olhei as rendinhas, tão delicadamente costuradas. No peito, um pequeno enfeite em forma de flor, trançado em linha, numa técnica que não sei o nome. Vesti-me duma espécie de epifania misturada com déjà vu. Esse não vai embora, não.

Dia seguinte, mostrei à irmã a foto que fiz dele com o celular. “Era seu?”. Ela devolveu na hora: “Não. O azul era seu. O meu era igual, só que rosa”.

Estava explicado por que eu não fora capaz de me desfazer dele. Tão pequeno, como pude caber nele? Eu tinha, quanto?, dois ou três anos. Nas minhas mãos, pareceu-me roupa de boneca. Devo ter sido criança miúda. Está certo que o tempo encolhe as coisas. Repare: até as pessoas, quando ficam velhas, encolhem. Estão tentando descrescer.

Minha irmã lembrou de nossa mãe fazendo os dois vestidinhos em sua máquina mágica de costura, que ampliava os tecidos, esticava as linhas, virava a vida do avesso, fazia milagre, enfim, com o orçamento sempre tão curto. No final das contas, estávamos sempre bonitinhos, meu irmão, minha irmã e eu. Costurar é contar uma história.

Qual terá sido o primeiro passeio que fiz com ele? E qual será o último que fará? Aprisionado na caixa por tanto tempo, hoje ele está engruvinhado, desbotado. É nem sombra da peça graciosa que um dia foi. Saibam todos, porém: o meu vestidinho era lindo, lindo. Azul da cor do mar. Ah, se o mundo inteiro me pudesse ouvir.

Luiz

arte: Jason M. Peterson

Numa tarde, o Luiz foi até a vila onde eu morava e escreveu no muro, com tinta spray: “Silmara eu te amo”. Assim, sem vírgula e sem vergonha. Irmão da amiga de minha irmã, ele e eu tivemos um breve namorico. Coisa de adolescente, os caçulas das duas famílias. Os vizinhos foram conferir a declaração, até então inédita no pedaço. As opiniões, polarizadas, iam de “Que absurdo!” a “Que fofo!”, passando por “Os pais dela já viram?”. Quem viu e não gostou nadica foi meu avô. Mandou limpar, onde já se viu. Lá foi o Luiz com a lata de tinta branca, e a apaixonada missiva desapareceu. Fiz enquete na escola; quem mais já havia ganhado anúncio igual?

Numa noite, o Luiz e eu fomos dar um rolê no Opala branco – coisa fina – do pai dele. Sábado, anos 80, o point mais badalado da cidade era a Avenida Ibirapuera. Eu me sentia o máximo, circulando naquele carrão. Vidros abertos, uma Janis Joplin rouquíssima se esgoelando no toca-fitas, Moema inteira há de ter ouvido. Lembro direitinho, era Summertime na fita K7.

O namoro não engatou, a amizade ficou em pé. Luiz era divertido, sarrista, criativo. Onde ele estivesse presente, certeza que a gente iria rir, e muito. Família inteira, tão querida. As festas na casa deles eram animadíssimas. Em uma, com o tema “Ridículo”, o Luiz surgiu metido num casaco com pisca-pisca, desses de árvore de Natal, que ele próprio instalara. Quem não ama um amigo assim?

Numa manhã, o Luiz se foi. Estava em casa com a esposa, passou mal. Acode, o Samu vem vindo, a equipe orientando pelo telefone. Não deu tempo. Morreu nos braços da irmã caçula. No velório, eu não sabia o que pensar. Então, emprestei da Janis:

“One of these mornings

You’re gonna rise, rise up singing

You’re gonna spread your wings, child

And take, take to the sky, Lord, the sky”

Sua mãe partiria um ano depois. Sim, é possível morrer de tristeza.

Ontem vi num muro, em letra cursiva, meio torta: “Fulana, eu te amo”. São bonitas, as declarações públicas de amor. E os muros são perfeitos para isso. Acho até que essa deveria ser a principal função deles. Enquanto eu esperava o sinal abrir as lembranças passaram por mim, feito filme. Nunca mais andei de Opala. Há tempos não passo pela vila. Sete anos que o Luiz foi embora. E, de todas as suas brincadeiras, essa foi a única que não teve graça.

O sofá listrado

Deitei os olhos na fotografia de quando eu era em preto-e-branco.

É do sofá listrado que vou dizer. Embaixo do assento havia uma espécie de baú para guardar coisas. A gente o erguia e uma travinha fazia ‘clec’, mantendo-o aberto. Ali dentro, antigos cadernos escolares de nós três, provas de matemática, pastas coloridas com dobradura para o dia do índio, bandeira do Brasil pintada com lápis de cor, gibis e papéis que não contaram com destino melhor, reunidos em caótico acervo.

Essa era, aliás, uma característica da nossa casa. Uma gaveta dando sopa, um pedaço de armário, tudo virava abrigo para objetos aleatórios e quase sempre inúteis, como uma escova de cabelos quebrada, uma tampa órfã de caneta, um anelzinho de plástico que viera de brinde no chiclete Ping-Pong. Uma desorganização doméstica aparentemente inofensiva, a revelar o estado das coisas na casa de número um da vilinha da rua Natal.

De tempos em tempos, eu passava horas fuçando nossas lembranças impressas, no porão do sofá listrado. Se eu estava, por exemplo, na quinta série do ginásio, e encontrava um caderno do segundo ano primário, apesar de apenas três anos os separarem, ele já era considerado uma antiguidade. Antiguidade, hoje, é topar com algo de trinta anos atrás. Três anos? Foi ontem, oras. Gostava de folhear o caderno, comparar minha caligrafia de então com a anterior, reler os ditados de português, relembrar o nome da professora, observar meus desenhos. Eu me tornava uma criança encantada com a minha criança.

Quando trocamos o velho sofá por um mais moderno, sem listras, notei: cadê o baú? Não tinha. Onde ficaria nossa bibliobarafunda?

Meu reino para rever, hoje, aquela coisarada. Uma vezinha só. Folhearia meus cadernos e ficaria com vontade de abraçar a menina que fui. Alcançaria os gibis da Turma da Mônica, leria alguns do Tio Patinhas. Nas últimas páginas, a seção de cartas dos leitores-mirins que queriam se corresponder com outras crianças. Sempre prestei atenção aos seus nomes e endereços. Lembro que, um dia, me surpreendi ao ver a cartinha de uma menina (eu não a conhecia) que morava perto da minha casa. Não escrevi para ela. Que adultos se tornaram aquelas crianças?

Além do velho sofá listrado, queria escrever de novo na Olivetti Lettera, que a gente colocava sobre a mesinha de centro da sala e de onde saíram tantos trabalhos de escola, e também meus primeiros e tímidos escritos. Queria o Tommy no colo mais uma vez. Gato bonito, embora vivesse estropiado de tanto brigar com outros bichanos nos telhados. Nunca mais tive cabelos tão compridos assim. Queria reviver a fotografia inteira, com a estante que não aparece, a TV, o som, os duzentos LPs, o relógio cuco. Quem fez o clique?

Parte da minha vida cabe num baú de sofá. De tempos em tempos, ergo o assento, uma travinha faz ‘clec’, deixo-o aberto. Então vou revendo, em recordações listradas de saudade e melancolia, tudo que guardei ali.

O pano

Tenho muitos panos de prato na cozinha. Um, no entanto, não é pano ordinário, acessório qualquer. Original da casa onde nasci e cresci, herói da resistência feito em algodão, esse segue guardadinho na gaveta do armário. É um pano-calendário, do ano de 1975.

1975, eu disse.

Estampado com desenhos simplórios de um açucareiro (parece-me), uma tigela e um prato floridos, duas cenouras, um moedor de pimenta (sal?), um tomate, duas cebolas, dois salsões e um castiçal com vela, nele se lê, no canto superior esquerdo, em desbotados números verdes: mil novecentos e setenta e cinco. É um pano-folhinha, como aquelas que se penduravam nas paredes.

Inventado para ser utensílio dois-em-um: com ele, a dona de casa poderia enxugar a louça do café da manhã enquanto conferia quantos meses faltava para ficar louca. Verificar se era dia de faxinar os quartos ou quarar as ideias no quintal. Dar-se conta que dali uma semana venceria a nota promissória de ser feliz.

O nosso pano-anuário teria sido presente de alguém? Na virada para 1976 – a saber, uma quarta-feira – , ele quedaria obsoleto. Apenas como marcador dos dias e meses, registre-se; como pano de prato permaneceu firme e forte em casa. Tão firme e tão forte que está aqui, na minha cozinha, protegido em local seguro, à prova de tempo. Levemente esgarçado aqui e ali, claro. Nos trinques, porém, para sua idade: quarenta e seis anos.

Quarenta e seis, eu disse.

Fui arrumar as gavetas, dia desses. Apanhei-o e conferi o dia sete de maio daquele ano. Também era quarta-feira, quando completei oito anos. Não lembro se teve parabéns a você, bolo, brigadeiro, presente. Fazia o segundo ano primário e lidava mal, muito mal com minhas sardas; tentava me livrar delas a todo custo, e em vão. Gostava de ir à venda dos meus pais para tomar sorvete e comer doces “de graça”. Brincava com a boneca Susi e ouvia Beatles. Jogava Stop com meus irmãos e assistia, em preto-e-branco, à Vila Sésamo. Sentia falta da minha mãe em casa e chorava escondido. Poderia ter recorrido ao pano para secar meus olhos.

Nem tenho coragem de usá-lo. Temo gastá-lo, vê-lo perecer. Gosto dele. Houvesse um museu dos panos de prato, ele figuraria em seu acervo, glorioso e cheio de histórias para contar. Dobrei-o bem, devolvi-o à gaveta. Lá no fundo, para não correr o risco de alguém, inadvertidamente, colocá-lo na roda da lida diária. 

Quem teve a ideia, lá atrás, de guardá-lo? Por que não teve o destino dos outros panos de prato da casa, reduzido a pano de chão e, uma vez trapo, fadado ao descarte? E por que ficou comigo? Foram tantas mudanças de endereço, era fácil ter se perdido. Mas veio parar aqui, e não na casa dos meus irmãos, igualmente herdeiros do pano setentista.

Talvez ele, ao lado do boneco de louça da minha mãe-criança e da blusa amarela de tricô que ela fez para mim, coisas que insisto em manter em meus armários, sejam, simbólica e materialmente, os guardiões das minhas memórias. Não duvido.

Eles

arte: Robert & Shana ParkeHarrison

É deles que quero falar.

Eles, que moravam em nossa rua, um pouco acima da nossa vila, em uma casa destoante das demais do pedaço. Se todas por ali eram muito simples, a deles era mais. Casebre antigo, plantado no fundo de um grande terreno, vinte de frente, cinquenta de fundo. O que também destoava; na nossa rua Natal, com raras exceções, as casinhas eram coladas umas às outras. Lembranças de um bairro operário. Fora o casebre, tão pouco. Nem garagem, nem carro, nem jardim. Umas bananeiras, o mato crescendo livre. E o casebre lá. Feito ilha.

Eles, que não tinham nome. As pessoas se referiam àquela família como “os turcos”. Se eram legítimos turcos da Turquia, não sei dizer. A geografia da ignorância nunca foi bem mapeada. Só sei que eram diferentes. E a gente não tinha olhos para os diferentes. “Os turcos” não se relacionavam muito com a vizinhança. Porque a vizinhança não queria muito se relacionar com eles.

Eles, que não conversavam pelo muro com os outros vizinhos, como todo mundo. Suas crianças não andavam de carrinho de rolimã na rua, nem jogavam bola com os outros meninos. Nem sei, ao certo, se iam à escola, ou como foram parar naquele pedaço da Mooca. Uma aura sinistra pairava sobre aquela casa pobre. Feito lenda.

Eles, com quem não podíamos brincar. Ordem expressa dos mais velhos; baseada em quê, exatamente, não sei. Talvez um boato, alguma história mal contada que criança não deveria saber. Entrar na casa deles, nem pensar.

Até o dia em que entrei.

Levada por uma amiga que morava nas imediações, que precisava tratar alguma coisa lá. Jogo rápido, ela me tranquilizou. Entramos sem bater palma, não havia campainha. A caminhada até o casebre pareceu-me infinitamente assombrada. Então eu não morria de medo deles? A amiga, talvez lendo meus pensamentos, falou: “Eles são legais, vem”. O medo, construído no solo fértil da imaginação, tentou e quase venceu. Então, feito o que precisava ser feito, deixamos a casa, desci a rua correndo, entrei na vila, alcancei nosso portão. E agora? Conto, não conto, conto, não conto? Guardei o segredo como uma perigosa aventura infantil à qual eu, heroicamente, sobrevivera. Continuei a passar, todo santo dia, em frente à casa deles, tão diferente e tão incorporada à paisagem. Com o tempo, o medo se foi. A indiferença, não.

Até o dia em que eles foram embora.

O terreno foi vendido. O casebre, demolido. As bananeiras, derrubadas. No lugar, surgiu um prédio de apartamentos. Era a história dos “turcos” soterrada para sempre. De certa forma, a minha também. Admito que não senti falta dos meus não-vizinhos, do terreno semiabandonado, do casebre, das bananeiras solitárias, daquela família excluída, maltrapilha, que nunca fizera mal a mim e, até onde sei, a ninguém. Se pouco sabíamos deles enquanto viviam ali, nunca soubemos para onde foram. Será que continuaram sendo “os turcos” em outras paragens?

O prédio erguido, curiosamente, também destoava na rua. Por muito tempo, reinou como único arranha-céu (nem tanto ao céu) do quarteirão. Na frente está escrito um nome pomposo, em outra língua. Para essas coisas, a gente gosta do estrangeiro. O prédio bem que podia, numa espécie de redenção, tardia e inútil, se chamar Edifício Eles.

RG

Tirei RG aos (quase) doze anos. Estava com sarampo, abatida. Saí ligeiramente prejudicada na 3×4 em preto-e-branco que me identificaria dali por diante.

Minha mãe também precisava tirar o dela, fomos juntas. Assim, nossos RGs foram numerados em sequência. Primeiro o dela, par, depois o meu, ímpar. Ela tinha quarenta e três anos e também estava doente. A 3×4 escondeu direitinho.

Passei a adolescência achando a coisa mais linda, aquela numeração. Ainda acho. Veja: no documento e na vida, ela veio primeiro, eu vim depois. Ela se foi primeiro, eu vou depois. Continuo por aqui, aguardando minha vez. Meu RG é minha senha com Deus. Ele quem decide. Par ou ímpar ?

Guardei comigo o RG dela. Ela não precisa mais. Eu sigo precisando do meu para tudo. Tive que renová-lo; a menina com sarampo envelheceu e ninguém mais aceitava um documento da década de 70. Na 3×4 nova e colorida e digital estou mais parecida com a minha mãe. Pudera: tirei-a com quase a mesma idade que ela tinha, quando tirou a dela.

Nas fotografias a gente congela o tempo. Até as doenças. Mas eu sarei. Ela, não.

Sacola

Amanhã levarei, como faço de quando em quando, uma sacola cheinha de doações para a igreja. Eles dão bons destinos à coisarada que a gente não quer mais. E todo mundo vive pedindo algo a Deus.

Em meio a quatro pares de sapatos, dois brinquedos, um liquidificador velho e uma toalha redonda, vão também um medo que não me serve mais e um punhado de palavras que não uso, só ocupam espaço na boca. Pensei em tirar o medo da sacola, isso é coisa que se doe? Mandarei-o mesmo assim; sempre tem quem queira um para chamar de seu.

Pensei também em doar as lembranças da colônia de férias em Suarão. Nem são minhas, de verdade. Emprestei-as das fotografias em preto-e-branco do nosso álbum, eu era muito pequena e não lembro de nada. Por onde andará a Emilinha, aquela garota que brincava com meus irmãos? De tanto vê-la nas fotos, ela se tornou familiar. Mas não era parente, nem amiga pra valer, só estava por lá quando a gente também ia. Vai para a sacola.

O sonho de ser pianista também vai, ficou curto. Há de servir n’alguma criança.

Um coração quebrado. Alguém conserta.

Uma promessa vazia. Enjoei.

Saudades variadas. Há muitas aqui em casa, nem tenho onde guardar.

E pronto. A sacola de doações já está cheia e pesada. Mas espera, ainda dá para colocar umas tristezas, só ajeitar bem que cabe. Se reciclarem, podem ter serventia. E também umas alegrias que nunca mais se repetirão, como ir de Viação Nasser para Tapiratiba, nas férias, e quebrar noz na porta da cozinha, no Natal. Tem sempre alguém procurando uma alegriazinha, por mais boba que seja.

Só não lembro de ter colocado na sacola essa esperança teimosa de que tudo vai melhorar neste país. Deixa, vai. Tanta gente precisando mais que eu.

Inverno

É inverno no hemisfério sul. Meu quinquagésimo quinto. Da minha coleção de estações frias, lembrei de duas.

Era uma vez, inventamos de fazer tricô. Minha irmã, as amigas e eu. Viramos militantes da lã, partidárias das tramas, as doidas das agulhas. Nas geladas tardes paulistanas, nos reuníamos para tricotar. A cada ponto, uma bobagem no ar. Rir e tricotar são terapias avançadas.

Ficamos freguesas de um depósito de fios perto da rua Siqueira Bueno. Um mar de novelos, cones e cores à disposição. Se as temperaturas eram baixas, nossa criatividade não. E a gente era boa mesmo nas blusas. Depois de prontas, algumas ganhavam até nome, conforme a personalidade da peça. Fiz uma azul e verde, lã grossa, grandona. “Com que roupa você vai?”, “Hoje vou com a Big”. A amiga lembra dela até hoje.

Minha irmã se dedicou a um modelo com tranças na frente, maior capricho. Técnica sofisticada. Amarelo-bebê, pura meiguice. Mas ela não gostou nada do resultado, e nós… assim… tivemos que concordar. A pobre blusa sofreu bullying e ganhou a terrível alcunha de Brega. Nem chegou a ser usada. Hoje, acho que fomos injustas.

Ela também se tornaria famosa por tricotar uma blusa investível, razão de algumas das melhores gargalhadas da nossa juventude. Determinada a inovar no modo de fazer, ela a fez inteiriça, quase sem costuras. Toda branca, candidata a linda. Acontece que minha irmã exagerou na quantidade de pontos e só viu depois. As mangas tinham mais de um metro de comprimento, se não me falha a memória. Que ficou gigante, ficou. Sem nome, virou cobertor da nossa cachorra. Ela, ao menos, adorou.

Aquele inverno rendeu ainda muitos suéteres, cachecóis. Coloridos, listrados, gola assim, gola assado. O tempo passava, a gente se divertia e, de quebra, economizava e incrementava o guarda-roupa.

Minha mãe era craque nas agulhas gerais. Fez tanto tricô “pra fora”, como se dizia, na velha Lanofix. Entre as roupas que tricotou à mão para mim, guardei duas. Uma de verão, em barbante cru. E uma de inverno, amarelo-limão. De tempos em tempos eu as retiro do armário, sacudo a poeira, conto-lhes as novidades. Tão miúdas. Incrível que tenham me servido um dia. De tempos em tempos pergunto à Nina, sua neta, se ela gostaria de usá-las. Mas elas sempre retornam ao armário.

Então, era outra vez e Dona Angelina partiu. Nos últimos dias de um outono gélido, não houve blusa de lã que aquecesse o peito. Era dia dos namorados; nevou no coração do meu pai. Trinta e quatro junhos depois, recebo no celular uma foto dele com chapeuzinho colorido de palha, todo alegrinho. Não são só riso e tricô que fazem bem. O tempo também. Faz tempo que não vou a uma festa junina.

No inverno passado, em meio à pandemia, resolvi retomar as agulhas e tricotei. Nina pediu uma blusa para ela, também. Escolheu a cor, falamos sobre modelos, providenciei agulhas novas. Até hoje não fiz. Filha, eu estou te enrolando, tal um novelo. Sua avó já teria lhe feito mil roupas, uma mais bonita que a outra.

É inverno no hemisfério sul. Meu quinquagésimo quinto. A cada ano, completo uma carreira nova nessa minha malha de viver. E não pretendo arrematá-la tão cedo.

A capa encapada

recorte da capa de “Música ao longe” (Erico Verissimo)

Encapava-se tudo: dos cadernos aos livros de matemática e português e até alguns da velha estante, que não faziam parte do acervo didático. Plástico colorido transparente para os livros, xadrezinho de azul ou verde ou amarelo para os cadernos, comprados por metro na papelaria do Seu Remo. Para, diziam, dar vida longa ao material escolar (e ao Seu Remo). Também para protegê-lo das traças, de mãozinhas amanteigadas, do tempo impiedoso. As coisas, afinal, precisavam durar. E papel contact era caro. Durex para o acabamento e voilá!, conservado estava.

Toda mãe era – ou ficou, na marra – craque na arte de encapar livros. Parece fácil, mas não é; unir pontinha com pontinha, produzir a dobra perfeita, deixar o plástico justinho nos cantos, sem parecer, feito roupa, um número maior ou menor.

Perpetuando o hábito ancestral, eu também encapei livros e cadernos dos meus filhos. Em pleno século vinte e um. Torcia o nariz, achava trabalhoso, sem sentido, mais plástico neste mundo? Um dia, não encapei mais, pronto, chega, a professora que reclame.

Volto à velha estante, instalada no meio da sala. Alguns livros, além dos da escola, não escapavam do encapamento. “Música ao longe”, do Erico Verissimo. Um dos meus favoritos (por algum tempo, quis me chamar Clarissa), tão lido e relido. Envolto, desde antes de eu nascer, num plástico transparente, talvez originalmente vermelho, que foi perdendo o viço e ficando meio desbotado. O durex já velhinho, sem a cola da juventude.

Era como se o livro sempre tivesse sido daquele jeito. Eu observava a ilustração na capa, os sete rostos soturnos e inexplicavelmente familiares. O plástico vermelho roubara-lhes os matizes. Em compensação, os pouparia do fatal envelhecimento.

Então, decidi. Arrancaria o plástico. Rebeldia? Subversão? Coisas da adolescência? Ou apenas constatação de que o inútil invólucro não servia para nada e as traças, na hora que bem quisessem, fariam banquete daquela celulose toda?

Arranquei.

E minha surpresa foi maior que a da Clarissa, quando se deu conta que amava Vasco.

Aquela era a verdadeira capa! No lugar da monocromia vermelha, rostos policrômicos e vivos. Pareciam, agora, até menos tristonhos. Eu tinha um livro novo em mãos. Naquele dia, acabei lendo a capa, somente a capa do meu livro favorito. Já era uma história e tanto.

Busquei na velha estante outras vítimas do encapamento. Localizei vários. Quis descascá-los também. Encontrei um encapado com (pela hóstia consagrada!) papel pardo cem por cento opaco. Livrei o livro. Havia uma biblioteca escondida sob nossa biblioteca.

Não quero mais me chamar Clarissa. Em minha estante, não há sequer um livro encapado. Tampouco material escolar. Mas tenho saudade da papelaria do Seu Remo. De que me encapei esses anos todos?

Prisão

Cheguei para doar sangue, a enfermeira chamou para uma salinha. Encostou a porta e iniciou o questionário. Queria saber se já tive isto e aquilo e mais aquilo outro. De câncer a hepatite, foi checando o inventário de enfermidades, acometimentos e eventuais vícios dos quais eu pudesse padecer ou já ter padecido nesta vida de meu Deus.

Talvez pela vigésima vez naquela manhã azul de sábado, ela seguia o script. A voz acelerada em 2x, diabetes?, cirurgia?, tatuagem?, fuma?. Como num campeonato, eu me esforçava para responder na mesma velocidade, não, sim, sim, não.

Então, ela lascou: “Já esteve presa?”

Pedi para repetir. De máscara (oh pandemia) ninguém fala, nem ouve direito. Ela pronunciou novamente, mais devagar. Quase deixei escapar uma risadinha – eu, presa? –, mas contive-me. Não era de bom tom rir do trabalho da moça. Respondi não, acrescentando mentalmente um ôxi. Ela seguiu com o rosário hospitalar, nem prestei mais atenção. Presa, eu. Rá.

Considerada apta a doar meu sangue tipo O, saí da salinha e fui para outra, maior. Acomodei-me na poltrona, o enfermeiro instalou em meu braço direito uns equipamentos. O sangue, retido em minhas veias, achou que estava livre. Era armadilha; continuava aprisionado, agora numa bolsa plástica. Que, aos poucos, ia enchendo e colorindo. Cor de vinho. Deve ser a cor mais bonita que há dentro do meu corpo. Melhor que amarelo-tripa. Mas quem é que se importa com a cor do avesso de alguém? Enquanto apertava e soltava na mão a bolinha verde de borracha, lembrei do Alberto Caeiro: “A cor é que tem cor nas asas da borboleta”. Borboletas não doam sangue. Embora saibam bem o que é prisão.

Meu sangue serve para qualquer pessoa, o enfermeiro disse. É bom saber-se doador universal. A gente se sente meio Criador. Ou, ao menos, da equipe dele.

Foi quando me dei conta. Sim, já estive presa.

Não pelo crime de ter tomado todos os Yakult da geladeira, de uma vez, quando era criança. Nem pelo de ter jogado talco na privada e sustentado até o fim que não fora eu, mesmo diante da névoa perfumada de Alma de Flores que se instalou no banheiro. Tampouco por ter, no primário, puxado a cadeira da coleguinha da frente, que se estatelou no chão e a mãe dela veio em casa depois, tirar satisfação com a minha (a menina ficara com um galo na cabeça). Olha, não foi nem por ter fumado Minister escondido com a amiga, depois do colégio, atrás do metrô Jabaquara.

Já estive, isso sim, presa a amor ruim, medo bobo, emprego esquisito. Presa à crença besta, como achar que bolinha não combina com listra e que não se toma sopa no verão. Que tem que tirar o miolinho do chuchu e que não dá pra ser feliz solteira. Que os santos veem tudo o que a gente faz. Já fui, veja só, presa à ideia de que precisa de salto alto e cabelo comprido para ser mulherão.

Não é fácil reconhecer um cárcere, quando ele lhe parece tão natural e quase confortável.

Uma vez presa, algumas penas acabei cumprindo. De outras, fugi. Liberdade é meio e é fim.

O enfermeiro avisou, “Prontinho”. Retirou a coisarada do meu braço, etiquetou a bolsa gorda de sangue; eu podia ir embora. Tinha lanchinho na copa, eu não queria aproveitar? Não, obrigada. Queria era voltar à sala da enfermeira e retificar minha resposta: sim, já estive presa. Mas meu sangue ainda há de servir.

Blue jeans

Gagarin já havia cantado a bola: a Terra é azul.

Talvez não tenha sido o primeiro jeans que vesti. Mas digamos que meu début no indigo blue tenha sido com uma US Top. “Não usa quem não quer”. E eu queria aquela calça que desbotava e perdia o vinco. Ganhei uma e ficava dividida entre querê-la em seu intacto denim, postergando ao máximo colocá-la no cesto de roupa para lavar, ou vê-la clarear como prometia a propaganda na TV.

Da US Top, migrei para a Lee. Quase uma deidade têxtil, espécie de metonímia para jeans, “calçali”. Quem não usava era boko-moco. Será que fui de Lee ou US Top assistir a King Kong no cinema?

Sob influência dos irmãos, mais velhos e descolados, cheguei à Levi’s. “Levi’s é no Centro, na Jeans, Jeans Tarka”. Santo pedacinho de couro marrom grudado no cós. Levei anos para sacar os dois cavalinhos puxando a calça, cada um para um lado. “Quality clothing”, eu repetia com inglês treinado nas letras dos Beatles. Usava uma quando fui ao Teatro Municipal e me apaixonei por um garoto desconhecido do outro lado do foyer. Eu não tinha nem dez anos.

Entrei no ginásio e as pessoas eram – ao menos na Mooca – classificadas em três tipos. Os que usavam Soft Machine, os que se viravam com as imitações e os que não tinham nem uma, nem outra (meu caso), e se dedicavam a fiscalizar a bunda alheia para identificar quem fazia parte do primeiro e do segundo tipo.

Então, surgiu na TV a propaganda de um homem lindo, só de calça jeans, numa praia idílica, brincando com um cachorro lindo; os dois correm ao encontro de uma moça linda, com uma música linda embalando tudo. O amor é azulzim. Eu tinha que ter um jeans Staroup, poxa! Foi minha primeira “calça com lycra” ou, tecnicamente, com elastano. Mais justa que Deus.

Passei pelos Wrangler e tornei-me, enfim, adepta dos Ellus. Adulta e inserida na sociedade de consumo, entrei na loja e pá!, assinei com gosto o checão do Banespa, deixando ali meu primeiro salário de estagiária in-tei-ri-nho. A insana aquisição foi, além de falta de educação financeira, recall tardio de uma propaganda que nem passava mais. Como esquecer daquele comercial com o casal tirando a roupa dentro da piscina, “Meu bem, você me dá água na boca”?

De lá para cá tanto mudou. As propagandas. Eu. Azulejaram minha vida jeans de múltiplas personalidades. Apertados e largões. Rasgados e certinhos. Barra dobrada, desfiada, com durex. Boca de sino, baggy, skinny, saruel. Delavê, stone washed. Cintura alta, cintura baixa, clochard (aargh). A moda passa; jeans não se passa.

Costurei essa história toda para dizer que comprei um jeans sem pedigree no Carrefour, por quarenta e nove contos, e estou absolutamente satisfeita.

O dia em que nasci

arte: Lillian Chan

Eu era pequenininha quando minha mãe operou o estômago. Ficou uns dias no hospital, voltou para casa com dores, fez repouso, ganhou jantinha na cama. A cicatriz era grande, um corte deeeste tamanho na barriga.

Por algum tempo, acreditei que aquela ida de Dona Angelina ao hospital fora para… eu nascer! Para dar à luz sua caçula, no caso, eu. E que, diferente do resto da humanidade, sim, eu tinha na memória o registro da minha estreia neste mundo. A cicatriz grande? Da minha cesárea, oras. O repouso e as dores, completando o quadro pós-parto. E não era nadica estranho o fato de eu, recém-nascida, já andar, falar, ver, entender. Considerava isso normal, e não um milagre, nem desafio à ciência. “Sim, eu me lembro direitinho do dia em que nasci”, diria, placidamente, ao ser entrevistada na TV.

A dura verdade, no entanto, não tardou. A revelação veio de gente mais velha e, portanto, lembradora do real dia em que nasci. Foi quando soube da tal operação de estômago. Aquelas cenas tão bem conservadas na memória eram somente uma memória equivocada. Como muitas que ainda devo conservar.

Já considerei grandessíssima sacanagem não podermos nos lembrar do nosso próprio nascimento. Já pensou? Recordar, com precisão, da primeira vez dos nossos olhos nos da mãe. Da mamada iniciática. Da palavra pioneira, do primeiro passo coordenado, em plena sala de estar.

Porém, a incapacidade de lembrar desses momentos talvez seja uma prova de inteligência da espécie. Para quê, afinal, lembrar da aterrorizante e estreita passagem do útero? Dos primeiros minutos gelados fora do corpo morno da mãe, da primeira e devastadora cólica? Para que se saber gente tão cedo, se dá para borboletar nesse dolce far niente de bebê?

Nascer não é para maricas.

No rol das minhas memórias comprovadamente reais, há um par com a etiqueta “Mais antigas”.

A primeira: tenho dois anos, estou na areia da praia, de costas para o mar; aceno para alguém (minha mãe?) ao longe, uma onda (ok, marola) vem e me derruba – o que ajuda a explicar meu pânico de mares, rios, lagoas, cachoeiras.

Segunda: estou com três anos, na cozinha; minha mãe acaba de estourar pipoca, passa-a da panela para a vasilha, pulveriza o sal e me chama para a sala, onde já estão meu pai e meus irmãos; é a Copa de 1970, o Brasil vai jogar.

De maio de mil novecentos e sessenta e sete, ao contrário do que cheguei a acreditar, nada guardo. O que, mais tarde, passei a considerar ótimo. Lembrar dum complicado nascimento a fórceps, meu corpinho todo ferido, Dona Angelina chorando, crente que eu havia morrido? Ah, nem.

Os pesinhos

Quando visito meu pai, ele conta as mesmas coisas. Às vezes, na mesma ordem. Que come bem, que a comida é temperadinha, que não tem muito sal, nem muita gordura. Que ele pode, mas prefere não repetir o prato, embora outro dia tenha repetido, era macarronada. Que toma os remédios direitinho. Que ao se deitar ele ora por todos, um por um, e dorme a noite inteira, uma beleza. Que estão entregando o jornal, sim. Que não, não tem falado com o tio Jair, que eles precisam voltar a Três Pontas, na festa do Irmão Padre Victor, quantas horas daqui até lá, mesmo? Que a vida, se melhorar, estraga. Que tem feito ginástica e caminhada, mas não muito rápido, que se um dedinho enrosca no chão, babau. E que os pesinhos que eu dei são muito bons.

Meu pai nunca foi fitness. Depois de enviuvar, se aposentou e resolveu treinar seu coração partido, encontrando na ginástica e na andança o caminho da paz. Para incentivá-lo, dei a ele, trinta anos atrás, dois pesinhos para musculação. Pequenos, dois quilos cada, de ferro azulado. Nunca pensei que fossem fazer tanto sucesso. Desde então, os pesinhos o acompanham desde que deixou nossa velha casa da vila. Livrou-se do sofá grande, da geladeira e do fogão, mas os pesinhos jamais saíram de sua mobília. É deles que Seu Tonico, oitenta e nove anos, fala sempre que nos encontramos. Se os usa, de fato, é mero detalhe desimportante. E, como fosse a primeira vez, ele faz questão de encenar como os usa. Decorei a sequência: pesinhos nas mãos, primeiro exercita os braços, um, dois, depois flexiona as pernas, um, dois, eleva os pés, um, dois. Em sua biografia, feitos como ir e voltar a pé do Alto da Mooca à Praça da Sé, depois dos setenta. Vai dizer que não é mérito (também) dos pesinhos? O melhor presente que já lhe dei. Mais que os livros do Cony, os pijamas da Hering, os CDs do Pavarotti.

Onde ele mora há, logo na entrada, pequena rampa. Coisa de vinte metros. Ele diz que, como exercício matinal, a sobe e desce todo dia. Cada vez que vamos ao seu médico, ele narra a façanha e aumenta a extensão da rampa. Da última vez, cravou: cinquenta metros, doutor! Parei de corrigi-lo. Aprendi a exercer a filhandade com relativa leveza.

Como falei, nem sempre foi assim. Meu pai tinha uma senhora barriga, como se diz. E não era barrigão molengo, não. Bem formada, sólida feito rocha. Parecia eterna. Com as caminhanças, sumiu. (Alento meu; tenho tempo para virar fitness.)

Em sua oitava, quase nona, década de vida, meu pai amiudou-se. Está magrinho, virou peso pena. Se os quatro quilos dos pesinhos são sua dose diária de ânimo, as pernas já não respondem bem, as ideias lhe fogem, os nomes das pessoas e das coisas brincam de esconde-esconde, as memórias se apagam (exceto aquela da infância, quando a vaca Beleza pisou em seu pé, deixando seu dedão para sempre assim meio estranho, essa ele não esquece e não deixa a gente esquecer). Leve feito um passarinho, penso que a qualquer hora, sem aviso, nem pesar, ele irá embora.

Por isso, deixo registrado, para efeito de inventário, a quem interessar possa: o dia em que meu pai voar, os pesinhos são meus.

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[atualização: inventário realizado, meu pai alçou voo em 30 de janeiro de 2022. os pesinhos estão comigo.]

Receita

Eu bem que tento. Corto a abobrinha dum jeito, corto doutro. Fatio fininho, fatio mais grosso. Produzo cubinhos maiores, menores, médios. Ora deito na panela pouco óleo, ora bastante. Alho e cebola, sempre. Refogo, provo o sal, deixo cozinhar. Depois, quebro os ovos por cima e espero a mágica acontecer. Quando gema e clara estão a um passo de firmar, revoluciono tudo com a colher de pau. Então sirvo.

Ficar bom, fica. Pouco lembra, no entanto, a iguaria da infância, de sabor e receita registrados naquele caderno invisível, com letra de mão de mãe. Sempre falta alguma coisa. A toalha xadrezinha sobre a mesa de fórmica, os pratos duralex que não quebravam nunca. Faltam o quintal de caquinhos vermelhos e o porão onde ficava a enceradeira. Falta a Françoise Hardy na vitrola, com sua “La Question”. La question que não cala: por que não sou capaz de reproduzir a abobrinha com ovo da minha mãe? Algum tempero secreto, será? Eu exagero nos ovos? Falando em ovo, quem nasceu primeiro, o amor ou a saudade? Que tonta, eu. Falta é ela.

A gíria é velha: quando alguém falava bobagem, dizia-se que estava “falando abobrinha”. Injustiça. Eis aí legume bacana, de boa com a vida. É ter abobrinha dando sopa na geladeira e o banquete está garantido (inclusive sopa). Logo, na minha avaliação, falar abobrinha é bom. “Benzinho, me fala alguma abobrinha” – sussurraria a mocinha apaixonada, na novela das seis.

Contam que minha sogra fazia a receita. Em vez de abobrinha, porém, vagem picadinha. Família é assim. A base é a mesma, só mudam os personagens. Ou ingredientes.

Fiz abobrinha com ovo esta semana, para acompanhar o arroz e o feijão. É o sabor e a receita que meus filhos terão registrados em seus próprios cadernos invisíveis, com letra-mãe. Não saberão da abobrinha com ovo da avó, que não conheceram. Memórias culinárias são feitas de passado, embora se construam no presente. E repetir receitas afetivas é uma forma de perpetuar a espécie, um modo bom de fazer vida. Eu vivo falando das minhas. E se, por acaso, disserem que falo muita abobrinha, já sabem: é elogio.

(crônica finalista no Prêmio Off Flip/Festa Literária Internacional de Paraty, abril/2021)

O miolinho do chuchu

Esta não é uma crônica culinária. Ou é. Um pouco, talvez.

Sempre tirei o miolinho do chuchu. Descasco, vou com a faquinha e extirpo aquela parte branca, estranha, diferente, desconhecida. Foi assim que via minha mãe fazendo, que via minha avó fazendo, que via minha bisavó fazendo. Modo de fazer é praticamente uma coisa genética.

Como se ele, miolinho, fosse feio, sujo e malvado, merecedor da rejeição dos humanos. Quem sabe, tóxico como as folhas de comigo-ninguém-pode do velho quintal e que eu tinha medo até de por a mão. Ou, no mínimo, que estragaria, irremediavelmente, o meu refogado.

Mas nunca ouvi falar de alguém que houvesse batido as botas por ter comido o miolinho do chuchu. Também não se tem notícia de manchete na primeira página, “Homem é internado às pressas depois de jantar; esposa fez chuchu e não tirou o miolo”.

Recentemente, aprendi que não precisa tirar. Que os miolinhos também são filhos de Deus e devem ser deixados em paz.

Passei a vida comendo e preparando chuchus desmiolados, à toa. Cozinhei meus próprios miolos a fim de compreender de onde vinha o hábito. Não vem de lugar algum. Melhor dizendo: vem, sim. Vem do grande caldeirão onde ferve nosso caldo cultural. Miolinho de chuchu é uma espécie de manga com leite, pontinha esfregada do pepino.

Ontem comprei chuchu. Posicionei na bancada a tábua, a faquinha. Lavei-o e descasquei-o (já não tenho certeza se a casca precisa mesmo ser retirada). Parti-o ao meio. Encarei o sechium edule, me encarando de volta em sua chuchuzice alviverde. Ficamos ali, em franca telepatia humano-vegetal. O corte transversal lembrou-me um útero, a preparar e guardar a vida. Eu tinha duas alternativas: perpetuar a lenda, ou destruí-la. Três: escrever para a Palmirinha.

Mudar um hábito ancestral desse, bicho! Nananina-não. Vou tirar, pronto, resolvido; e se minha família cai dura depois do almoço?

Eis, porém, que meus miolos resolveram aceitar a novidade. Foi tudo para a panela: o chuchu inteiro e minha crendice partida.

Todos comeram, nem repararam. Só eu. Fartei-me. Não veio febre, nem indigestão, nem mal súbito. Ninguém adoeceu, não abreviei a vida.

Viva o miolinho do chuchu.

Para Neide Rigo

As listas

Quem tinha telefone em casa, tinha também lista telefônica. Nelas, os números e endereços de tudo e todos. Um abecedário de mundo.

Depois de quitar o carnê com vinte e quatro prestações do plano de expansão da Telesp, e ter nosso aparelho – vermelho, de teclas – instalado na sala em lugar de honra, passamos a receber as listas em casa. Eram duas: a residencial e a comercial, mais conhecida como páginas amarelas.

Livrões desajeitados, encadernação molenga, as listas tinham folhas finiiinhas e letras miúdas. Só assim para abarcar o mar informacional. Um Google de papel, basicamente. A cada dois anos, eram atualizadas. E lá vinham os moços com uniforme da companhia entregá-las. A gente se livrava das antigas? Nem sempre. Por garantia, mantínhamos algumas, para o caso de faltar alguma coisa nas novas. Vai que.

As nossas ficavam na estante da sala, ao lado do telefone, dos livros, TV, rádio, vitrola com som estéreo que nos dava orgulho, um barzinho com bebidas que ninguém tomava e muitos, muitos bibelôs. Estante de sala, naquele tempo, era a central de mídia de uma casa.

Eu achava bem chique quem tinha uma mesinha só para o telefone, com cadeira ao lado. Os aparelhos sem fio só chegaram depois; não dava para sair andando e falando pela casa. O fio enroladinho esticava, pero no mucho. Na mesinha, o porta-caneta, agenda telefônica com os números (escritos à mão) da madrinha, dos primos, dos vizinhos, das amigas, da farmácia, da escola, da vendinha, do médico da família. Bloquinho de papel para anotar os recados e uma toalhinha de crochê fundando tudo. Embaixo, as listas telefônicas. Com a internet e a telefonia móvel, não só a mesinha desapareceu, como todo o resto. Temi pelas toalhinhas de crochê.

Eu catava a lista telefônica e a folheava como quem lê interessante livro. Prestava atenção aos sobrenomes dos assinantes, onde moravam, decifrava as abreviações dos logradouros, av de avenida, al de alameda. Quanta gente, meu Deus. Na letra F, localizava ‘Franco’, para ver quem podia ser parente. Eu sempre achava o tio Jair.

As listas eram uma espécie de Facebook, só que sem fotos. Se não dava para dar like, dava para passar trote. Era sempre na casa da Rô, depois das aulas. Aleatoriamente, escolhíamos nossas vítimas. A aventura consistia em ligar e falar uma besteira qualquer. Tínhamos predileção por nomes esquisitos. Certa vez, achamos um que, em nossa avaliação, merecia a traquinagem: Fotolito Gama. Ligamos. Segurando o riso, anunciei: “– Quero falar com o Fotolito”. E, antes que o interlocutor dissesse algo, desligamos, quase fazendo xixi nas calças de tanto rir. Mas a gente não sabia o que era fotolito. Quem riu mais foi o moço lá. Riu de nós.

Tenho saudade das velhas listas telefônicas enfeitando a estante. Tenho saudade de atender nosso telefone vermelho, nove-quatro-oito-três-quatro-quatro-três. Posso fazer uma lista de tudo que sinto saudade. Hoje, especialmente, a saudade da Rô. Mas não sei como encontrá-la. Em que lista eu acho os amigos que partiram?

Quintal

Olhei os hibiscos da vizinha, lembrei dos da minha infância. Repare: a flor parece uma bailarina com tu-tu. Nas ruas, eu gostava de apanhá-la e ir tirando as pétalas, numa espécie de strip-tease botânico. Tremenda sacanagem com a flor, isso sim. Pelada e escangalhada, depois largava a pobrezinha no chão, para terminar de morrer.

Eu também era sacana com tatu-bolinha. Havia tantos no quintal! Agachada no chão de caquinhos vermelhos, observava-o se recolher, ao menor toque. Bastava encostar em sua carapaça com a ponta do dedo ou dum graveto, folhinha que fosse, para que o pequeno isópode detectasse o perigo e se fechasse, virando uma bolinha perfeita. Eu não o machucava. Esperava – e tempo não me faltava – o bichinho acreditar que eu não estava mais por perto, para se desenrodilhar e retomar seu importante caminho rumo a lugar qualquer; então eu tornava a provocar-lhe o movimento defensivo. E assim ia nessa quase tortura, até que outra coisa mais interessante me distraísse ou alguém chamasse para comer pão com manteiga.

Eu não era menina exatamente má, nem com a flor, nem com os tatuzinhos. Era criança habitante de quintal vivo (não de playground asséptico e emborrachado), rodeada de seres, cores, cheiros, formas. Eu torrava a paciência de alguns desses seres, é fato. Gosto, porém, de pensar que a natureza é compreensiva com crianças sem maldade, que veem nela um grande e divertido brinquedo. (Mas é bom lembrar: natureza não é brinquedo.) Já matar passarinho com estilingue ou jogar sal em lesma não era comigo, não. Embora me divertisse assistindo o Coiote se ferrar, porque o Papa-Léguas era muitíssimo mais esperto, e achasse graça no Tom levando a pior – o Jerry era bem danadinho.

O quintal de casa era pequeno no tamanho e imenso nas possibilidades. Ali cabiam oficina de carpintaria, casa de bonecas, cozinha experimental, laboratório de química, castelo de princesa, pista de bicicross, sala de aula e até um museu de coisas desimportantes (já contei essa: certa vez, instalei ali precioso acervo de objetos aleatórios, catados pela casa, como o “pente de José Bonifácio”, o “espelho da Princesa Isabel”). A imaginação é o quintal da vida. Tudo em meio a varais de roupas quaradas, gato e cachorro, vasos de babosa, espada de São Jorge e comigo-ninguém-pode (diziam que quem comesse suas folhas caía durinho, ploft). Nunca me conformei como nosso velho quintal, de pequeno, apequenou mais com os anos. Eu crescia, ele encolhia. Pior: foi deixando de ser território de brincar, enfeiando e entulhando (ou sempre foi entulhado e feio) até virar deserto desabitado de gentes pequena e grande.

Meu quintal de agora é outro, feito de outra história e com outras possibilidades. Cogitei pedir à vizinha uma flor para enfeitar o vaso. Não tenho mais vontade de despetalar hibisco. E aqui nem tem tatu-bolinha (tem maria-fedida, louva-deus, aranhas diversas e insetos indecifráveis; nem tudo está perdido). Como a gente muda. Só a bailarina-flor que nunca mudou o modelo da sua saia.

Enquanto descasco os ovos

arte: Edel Rodriguez

Cozinhei ovos para o almoço.

Eu, que vim dum ovinho do tamanho de nada, descasco o ovo que veio duma galinha, para que meus filhos, vindos de ovinhos do tamanho de nada, se alimentem. (Um infográfico disso deve ficar bem louco.)

Enquanto descasco os ovos, lembro de minha mãe fazendo gemada para os três filhos. Se hoje a iguaria não apetece, naquela época era suprassumo. Como gema crua não é manjar dos deuses, mas super alimento, na avaliação materna, ela adicionava gotinhas de essência de baunilha. Até hoje, quando apanho o vidrinho na prateleira do supermercado, é da cumbuca de louça com o creme espumado-amarelado que me lembro.

Nunca fiz gemada para meus filhos.

Ovo é palíndromo. Além disso, a vogal de início e fim tem forma de quê? De ovo. Mas ovo não é redondinho, como os O deste texto. Assim como a Terra, ao contrário do que aprendi na escola, não é exatamente redonda. É esférica com os polos achatados. Um tantinho deformada e feiosa, sejamos sinceros. Eu desenhava nosso planeta com compasso, círculo perfeito. Se pensar bem, moramos num ovo.

No mundo-ovo corre solta uma pandemia. No rádio, o repórter conta os mortos daqui. Um, dois, três, quatro mil num dia só. A cada ovo que descasco, uma pessoa morre. Se eu parar, será que não morre mais ninguém?

A gente comprava ovos frescos na Dona Adélia. Ela morava em nossa rua e criava galinhas no quintal. Os da minha panela têm impresso nas cascas vermelhas o lote em códigos e data de validade: até lá, quantos mais a pandemia terá levado?

Descasco os ovos, pacientemente, pedacinho por pedacinho – ovo não é como banana, que se tira a casca toda em três atos. O repórter continua sua funesta contabilidade. Tenho fome e tristeza e medo. Afinal, quem choca os ovos das serpentes?

Hoje é Sexta-feira Santa. O domingo será de Páscoa, dia de outros ovos. Não de galinhas, nem de coelhos impossíveis. Chocados nas fábricas, filhos de ninguém. Quando meus filhos eram pequenos, escondíamos os ovos de chocolate pela casa. Fazíamos uma trilha de balinhas e contávamos a lorota de que o coelhinho havia passado por ali. Quem nasceu primeiro, a verdade ou a mentira?

Enquanto ajeito na vasilha os ovos pelados e cortados ao meio, penso na velha gemada com baunilha. Penso nas galinhas das donas adélias soltas e também nas confinadas pelo mundo, ciscando, alheias à pandemia.

Depois de amanhã, saibam todos: ninguém ressuscitará.

Redenção

Ele contou, de jeito tão bonito, as histórias das pipas de sua meninice. Dei-me conta de não ter essa passagem em meu currículo de criança, e fiquei até com pena de mim. Tratei, ligeiro, de cavoucar as lembranças em busca do que pudesse me redimir de tamanha falha biográfica. Algo que compensasse as horas não passadas empunhando a lata de óleo Mazola com o cerol enroladinho.

Se não soltei papagaio, soltei imaginação: dava aulas imaginárias para alunos imaginários do primeiro ano primário, pois eu, mais experiente, já estava no terceiro. A ludicidade era completa: tinha lista de chamada, lousa e giz de verdade, fichário com planejamento das aulas, provas, caneta vermelha para corrigir os exercícios da ‘turma’. Entrava tanto na personagem que dava bronca nos mais danadinhos. Acreditei na performance a ponto de jurar a mim mesma que, quando crescesse, seria professora. Rá!

Posso não ter empinado pipa, mas brinquei de boneca de papel. As que vinham prontas na revistinha, só recortar. E as de autoria própria, onde eu inventava os biotipos e indumentárias que bem entendesse. Fiquei craque e não esquecia mais de planejar as pequenas abas nas roupas, fundamentais para fixá-las no corpo da boneca. Quantos trajes não perdi, por esquecer esse detalhe! Como um Deus, bondoso e esteta, criava moças lindas de olhos azuis e providenciava-lhes todas as roupas maravilhosas que eu não tinha.

Se, por um lado, não confeccionei a rabiola mais bonita da rua, por outro exibi algum talento ao produzir fantasias para o gato mais bonito do pedaço. À noite, meu pai e eu íamos, no velho Corcel, buscar minha irmã no colégio. O Led, frajola bem nutrido, um dia surgia vestido de bailarina, no outro usando óculos recortados em cartolina colorida, no melhor estilo Elton John. Eu dedicava parte da minha tarde para bolar e executar os figurinos. Led fazia sucesso na turma da irmã. Houvesse Instagram naquela época, não ia ter para ninguém, meu bem.

Nunca fiz batalha de pandorga no céu, mas abusei da lei da gravidade na balança no quintal. Eu sei, o certo é balanço, no masculino, que balança é coisa para pesar coisas; em que pese meu vocabulário iniciático, brinquei mesmo foi ‘na balança’ instalada pelo vô Paschoal. No vai-e-vem, eu me espichava para trás, os longos cabelos quase tocavam o chão. E via tudo de ponta-cabeça, o céu virava chão. O friozinho na barriga era dobrado, uma leve vertigem me fazia gritar de medo e excitação.

Não experimentei a bravura de enfrentar gente maior que eu tentando roubar minha raia, mas encarei, valente, o farmacêutico cuidando do meu dedo aberto, fatiado por acidente na máquina de cortar frios, na venda dos meus pais. Eu gostava de brincar com ela, fazendo de conta que era um carro; a roda com a manivela, que fazia a afiadíssima lâmina girar, parecia-me um volante perfeito. Certa vez, enquanto ‘dirigia’, decidi pegar um pedacinho do presunto que estava ali, dando sopa, à espera da próxima freguesa. A cicatriz está aqui e não me deixa mentir.

Fiz muita comida de mentirinha nas minhas panelinhas. Os ingredientes: planta, terra, água, grãos de arroz e feijão subtraídos das latas de mantimentos da minha mãe. Entabulava altos papos com as bonecas, enquanto preparava-lhes o banquete. A fim de tornar o negócio mais verossímil, certa vez botei uma vela acesa dentro do pequeno fogãozinho de brinquedo. Se conto a história hoje é porque não foi tão grave.

Decorei a vila onde morávamos, providenciei bolo e refri, chamei os amigos e botei a pequena lousa (a das aulas) bem na entrada. Nela, o convite, em letras garrafais: “Venham todos para o batizado do gatinho Tommy”. A festinha bombou, mas o bichano não quis ficar.

Passeei de enceradeira. Apertei campainha e saí correndo. Passei trote pelo telefone. Fiz colar de macarrão. Tingi camiseta Hering com Vivacor, no caldeirão de feijão. Escrevi diários. Posso não ostentar no portfólio da infância a categoria soltação de pipa. Mas também trago no peito digno inventário de menina quase feliz, e queria contar isso a ele.

Para o Marcílio Godói

Freezer e micro-ondas

arte: Evgeniy Zemelko

Lembrei de quando a família aderiu, em meados dos anos 80, à modernidade: agora também tínhamos freezer e micro-ondas. Não é só a vida que vem em ondas, meu bem. As lembranças também.

Antes da dupla, panelas de arroz, feijão e mistura eram feitas para durar dias. Para economizar tempo e, talvez, dinheiro. Não havia a frase resolvedora das sobras alimentares: “Congela”. Do Continental 2001 verde, as panelas iam para a velha Prosdócimo azul. Da geladeira (quem é que guarda panela na geladeira, hoje?), de volta ao fogão e, voilà!, almoço e janta requentados. Cozinha é inverno e verão, onde yin e yang fazem a farra.

Com a chegada dos dois, a dinâmica da cozinha mudou: era possível fazer comida para um batalhão, congelar em porções e ir descongelando conforme a necessidade. Adeus, rango requentado. Agora, só arroz e feijão ‘fresquinhos’, como se dissessem: “Faz de conta que fomos feitos agora”.

Animados, contratamos uma cozinheira para, num dia só, preparar vários pratos. A moça chegou cedinho. Inspirada, talvez, nos avisos dos ônibus, “Fale ao motorista somente o indispensável”, a moça não me deu a menor trela e se concentrou no cardápio. Não queria perder tempo, que tempo é comida. Num instante se familiarizou com fogão, pia, mantimentos, escumadeiras, facas. Nossa cozinha foi transformada em linha de produção, “Saindo a lasanha”, “Frango ao molho pardo tá pronto”, “Onde coloco o risoto?”. Perguntou se queríamos macarrão à carbonara. Perguntei o que ia. Explicou, topei. E mais nada. Sequer trocamos uma ideia sobre carbonara vir do italiano carbone, que significa carvão, ou sobre as lendas que envolvem o nome da iguaria. Achei um acinte, onde já se viu cozinha sem prosa?

Só sei que, naquele dia, embalei cento e quarenta e quatro porções de arroz, em caprichados pacotinhos. Em casa, cada um fazia suas refeições em horários diferentes, tudo tinha que ser individual. (Sei também que, até hoje, se vejo macarrão carbonara, é da cozinheira de poucas palavras que me lembro.)

Animados II, meu irmão foi ao McDonald’s e pediu uma dúzia de Big Macs – “Sem alface, é pra congelar”. E o jingle, na casa 1 da vila, ficou capenga: “Dois hambúrgueres, (silêncio), queijo, molho especial, cebola, picles num pão com gergelim”. Dois minutinhos no micro-ondas, bicho.

Com o tempo, deixamos de ser um lar povoado e cada um foi cuidar da sua vida – uns, dos seus pós-vida. O velho freezer, do tamanho de uma geladeira, deixou de ser fundamental e passou a ser estorvo. Desligado, continuou lá, de enfeite. Até que demos fim nele. O forno de micro-ondas, no entanto, resistiu bravamente até o último Franco sair de lá. Sei que estou velha quando me pego dizendo, “Aquele que era bom”.

Como disse, não é só a vida que vem em ondas. As lembranças também. E eu, que faço questão de manter muitas no meu freezer particular, vou descongelando uma a uma. Feito os pacotinhos do arroz. O sabor fica um pouco diferente, nada é assim tão fresquinho. Mas eu me farto mesmo assim.

Acredite se quiser

Jamais contei essa.

Para não correr o risco de passar por mentirosa, loroteira, gabola, bazofiadora. Porque, se eu não houvesse vivido o causo em primeira pessoa, parece mesmo mentira, lorota, gabolice, bazófia.

Agora vou contar.

Talvez, a maturidade tenha me trazido autoconfiança, um certo nem-te-ligo para o que o povo fala. Também porque é preciso contar histórias tão reais quanto improváveis, pra tornar o mundo mais crível.

Minha irmã, testemunha ocular, também jamais a contou. Para, penso eu, não correr o risco de passar por mentirosa, loroteira, gabola, bazofiadora.

N’algum dia da longínqua década de 80, fritávamos batatas. Panelão com óleo borbulhando, as batatinhas lá. Cortadas em palito, trabalhando a mágica de ficarem crocantes por fora e macias por dentro.

Peço que prestem atenção aos elementos essenciais da história: fogão – fogo – óleo.

Quase prontas, eu as revolvia no óleo quando, por algum movimento desastrado, a panela virou. Eu tinha o péssimo hábito de cozinhar coisas líquidas e derramáveis na boca da frente do fogão. E não na de trás, como manda o manual da cozinha segura.

Panela tombada, batata e óleo pelando desabaram feito uma cachoeira do último círculo do inferno de Dante, romperam como o magma do centro da Terra – valei-me, Júlio Verne! – sobre meus pezinhos… calçados com míseros chinelinhos de dedo.

Quedada, procurei o olhar da irmã. Talvez, para certificar-me que eu continuava viva e a visão da cozinha não era um apenas um lampejo pós-desencarne, esses que os mortos contam em cartas psicografadas, relatando que viram suas almas se desprendendo dos corpos, aquelas coisas.

Então, concluí: eu estava ali, sim, vivinha da silva. E que meu par de pés número 35 acabara de ser escaldado em óleo de soja, feito nuggets.

Pois bem. Meus pezinhos, alheios às leis da termodinâmica, não haviam se transformado em uma imprestável geleia morna de pele, carne e osso. Tampouco em uma massa derretida e sanguinolenta. Estavam apenas e tão somente avermelhados. Como se eu tivesse apanhado um solzinho sem Coppertone.

Acredite se quiser.

Incrédula, fui lavar os pés lambrecados no banheiro, sem saber ao certo a que santo ou entidade agradecer. Minha irmã, igualmente incrédula, limpou o chão, que permaneceu quentíssimo por muito tempo. Assim como meus chinelos. O rango, porém, fora para as cucuias. Mas não adianta chorar pela batata derramada.

Está certo que batata frita é iguaria incomparável, universal, unânime, a única capaz de unir os povos (talvez, ao lado da pizza), e tem em si um aspecto realmente divino. Mas até eu achei o milagre meio exagerado.

E agora que me animei, vou contar outra, também inédita. Podem me chamar de mentirosa, loroteira, gabola, bazofiadora.

Morávamos em casas coladas, a nossa e a dos nossos avós, unidas pelo quintal. Eu estava no quarto dos meus pais. Minha avó em seu quarto, no extremo oposto. Cuidava de meus afazeres adolescentes quando a ouvi me chamando, num brado fraco. Silmaaaraaa. Parei o que estava fazendo, fui atendê-la. Cheguei ao quintal e já ia subindo à sua casa, quando encontrei ali a Caró, minha cachorra, engasgada com um osso de frango. Acudi a pobrezinha, sabe-se lá o que teria acontecido se eu não chegasse naquele exato momento. Cachorra salva, dei-lhe um beijinho e subi a pequena escada para ver o que dona Zéfina queria comigo. Ela, plácida em seu sofá de curvim verde, disse: “Não te chamei, não”.

Acredite se quiser.

Fratura

Foi no Cine Comodoro, acho. Avenida São João. Pegamos o 378 e fomos eu, minha mãe e minha irmã. Estava passando “Uma janela para o céu”. Eu tinha oito anos e fiquei comovida com a história da moça que quebrou a perna esquiando naquelas montanhas tão branquinhas. Jill Kinmont, a personagem. Não me esqueço.

Minha mãe também quebrou a perna, anos depois. Mas não ao esquiar. Ela deitou-se na maca para fazer o raio-X, virou de lado e crec!, lá se foi o fêmur. Os ossos da Dona Angelina estavam fraquinhos. Pudera, tanta radioterapia.

No filme, a moça participava de uma competição. Minha mãe também. Em vez de montanha a vencer, um câncer. “Vamos ver quem ganha”, ela devia pensar.

Um dia, bem antes do tal raio-X, nós descemos a rua do Acre e atravessamos, já quase na avenida Álvaro Ramos. Um garoto de bicicleta vinha na maior vula – gosto bastante dessa palavra, vula – e não conseguiu brecar. Minha mãe se estatelou no chão. Achei que tinha se quebrado inteira, já estava doente. Enquanto eu e uns desconhecidos a acudíamos, o garoto teve a coragem de reclamar. Catou sua bicicleta e se mandou, fazendo careta. Não é bonito pensar assim, mas eu desejei que um dos ônibus na avenida desse um sustinho nele. Um pé quebrado, de leve, sabe?

Nunca me quebrei. Nem perna, nem braço, nem dedo. Já contei isso. Criança inconformada com a inquebrabilidade, fui até a Casa São Pedro e saí de lá com um quilo de gesso em pó. Em casa, peguei a bacia com água e inventei meu próprio braço quebrado. Não convenci ninguém.

Quando minha mãe se quebrou, eu deveria ter proposto a ela: “Fico com a perna partida, você com o braço quebrado de mentirinha”. Os médicos disseram que ela não andaria mais. Dona Angelina fingiu que não ouviu, inventou sua própria perna consertada e andou. Não lembro se a Jill Kinmont conseguiu.

Dez anos depois de receber de um Dr. Fuad, visivelmente preocupado, a carta de encaminhamento urgente ao Instituto Arnaldo Vieira de Carvalho, a competição terminou para minha mãe. Era quase inverno e meu coração fraturado congelou. No filme da vida da minha mãe, a montanha venceu.

O escorredor e a zona de conforto

Depois de vinte anos de bons préstimos, julguei ser hora de substituí-lo. Suas hastes metálicas, já carcomidas pelo tempo, seu espaço útil aquém do necessário, seu visual demodê, enfim, haviam dado o que tinham que dar. Então, comprei um escorredor de pratos novinho da silva.

Design moderno, preto-chique, bonitão. Até porta-copos acoplado tem – o que me agradou sobremaneira, pois assim teria mais espaço na bancada para preparar o almoço, picar os vegetais, fatiar o pão. O velho, desprovido do item, me obrigava a ter um porta-copos avulso, de plástico feioso, atravancando a pia em dia de muita louça.

O velho, no entanto, é praticamente da família. Um agregado, quase parente, sempre ajuda na lida, é de boas. Não fala mal de ninguém. Fica lá, na dele. Apesar disso, depois de uma vida nos servindo, enviado à reciclagem foi.

Engana-se quem pensa que escorredor de pratos é tudo igual. Cada um tem sua personalidade, seu modo de ser e de estar, de ver a vida e a louça. E ocorre que o novo ser que passou a habitar minha cozinha e compartilhar da minha intimidade, embora repleto de virtudes, me incomodou.

O tal porta-copos, por exemplo. Tão valorizado até então, revelou-se estar – de acordo com a geografia da minha pia – do lado errado. Se boto ali os copos para escorrer, dificulta-me o acesso ao andar térreo do escorredor. Tenho que esticar o braço assiiim, ó. Tem mais: o engenheiro que projetou as hastes para os copos nunca lavou um. Impossível dispor copos lavados lado a lado. Que fiz? Com jeito, dei uma entortadinha nelas. Minha Nossa Senhora do Design chora. E a Santa Gambiarra sorri.

Se o leitor pensa que o problema seria resolvido se eu, simplesmente, invertesse a posição do escorredor, enganou-se. Se assim eu o fizer, os pratos lavados ficarão de costas para mim, mirando a parede. Onde já se viu? Então, dos males, o menor. Eu estico o braço, vai. Escorredor bom é aquele que pode ser colocado à direita, à esquerda, de frente, de lado. Como o velho.

Para restabelecer a harmonia na pia, já o troquei, sim, de lugar. Mexi nos satélites naturais da pia, como o lixinho, o porta-detergente. Cogitei trocar o filtro d’água de lugar, mover o fogão embutido. Nada. O feng-shui da bancada continua descalibrado. Será por isso que engordei?

Já o velho escorredor… ah, esse sabia de todas as manhas das minhas louças. Conhecia cada xícara pelo nome, sabia se alguma faca estava sem fio só pelo seu som ao cair na cuba. Já pegara a forma das minhas panelas, fazia mimetismo com o mármore da pia, me aconselhava a pegar leve na Nutella.

Vinte anos, bicho. Mais velho que meu filho, que tem dezessete. Está em casa antes mesmo que eu e seu pai nos conhecêssemos. Quis retorná-lo ao seu posto, e dar o novo escorredor de presente a alguém. Lembrei que fora para a reciclagem. Tarde demais. Feliz de quem o pegou.

O velho escorredor de pratos representa o sabido, o conhecido, o previsível, o fácil, o confortável. Zero trabalho.

O novo escorredor é o desconhecido. O estranho no ninho. O que altera a paz da pia. O que bota minhas sinapses pra dançar o tchá-tchá-tchá. O que ri da minha parvoíce. O que revira meus padrões, solidamente construídos ao longo de meio século.

O novo escorredor de pratos me tira da zona de conforto como o sorvete de pequi, quando o experimentei. Tão mais simples pedir de chocolate, Silmara. O velho sabor parceiro, sem surpresas, mas bom e prazeroso. O de pequi alvoroçou as papilas, tocou sirene no cérebro, ativou a careta. E agora tem um sorvete de pequi, de design moderno, me encarando na pia, enquanto lavo os pratos do almoço. Se seremos amigos, um dia, o tempo dirá. Até lá, muita água há de rolar. Digo, escorrer.

Imagina

Só esta semana foram duas vezes: troquei meia dúzia de mensagens pelo WhatsApp, com o moço da farmácia e a secretária da escola de inglês dos meninos. Fim das conversas, educada que sou, agradeci. Ambos devolveram um “Imagina!”. A segunda ainda lançou mão da corruptela: “’Magina”.

Está certo que esse “imagina” deve ser entendido como “não há de quê”. Porém, dito assim, em imperativo afirmativo, só restou-me obedecer. Imagina, Silmara!

John Lennon fez o exercício, ao imaginar não haver essa coisa de paraíso, nem inferno, religião, nem fome, a galera toda vivendo em paz. Deu naquela música linda.

Já eu imaginei minha mãe, tratando o tumor a tempo de hoje poder estar aqui, me ensinando a pregar zíper e acertar o ponto da massa de coxinha.

Imaginei poder telefonar para quem já morreu – sem precisar de centro espírita ou médium. Conexão direta pra valer. E a pessoa atendesse lá, aonde quer que fosse lá.

Imaginei uma cidade onde os motoristas respeitam as faixas do retorno, sem bancar espertinho, passando na frente dos outros que esperam pacientemente sua vez.

Aproveitei e imaginei também todos freando para os cães atravessarem.

E já que imaginação é o bicho, imaginei um reencontro com todos os pets que já tive. Gato, cachorro, maritaca, hamster. A Caró, o Oscar, o Fritz, a Doris, o Huguinho, o Shazam, o Led, a Branquinha, o Chang, o Léo, a Bia, o Beto Boa-Pessoa, o Júlio, a Didi, a Bodhi, o Tommy, o Kim, a Beth Pimentinha, a Bibi, o Chico, o Norman Bates. E melhor parar, porque vou acabar esquecendo algum. Mas imagina a farra?

Imaginei quando a trindade Caetano, Gil e Chico tiver partido e, juro, quase chorei.

Mas aí imaginei como este mundo seria menos legal se não existisse “Devotion”, aquela do Earth, Wind & Fire. Aliás, fico imaginando como é que alguém consegue não sair dançando feito louco quando a ouve.

Mandou imaginar, eu imagino.

Imaginei poder gravar os meus sonhos em HD para assisti-los depois. Voltar umas partes, pular outras. Eventualmente, apagar alguns.

Imaginei o arrependimento no ladrão que roubou meu celular cheio de fotos, e eu perdi tudo porque não salvei na nuvem, e dias depois eu recebendo pelos Correios meu aparelho de volta, intacto e com um bilhetinho escrito à mão, “Foi mal”.

Por um dia, unzinho só, imaginei os preços das coisas com duas casas decimais a menos. E ninguém estranhando; só o comprador percebendo que está levando um carro zero por quinhentos contos ou um par de Louboutin novinho por módicos setenta.

Imaginei – olha que doido – que as pessoas que comentam as notícias nas redes sociais sabem, com propriedade, o que estão falando. Daria gosto de ver (e ler).

E imaginei todo mundo usando direitinho a crase e as vírgulas.

Então, viajei total e imaginei se “pois sim” fosse sim, e se “pois não” fosse não.

Você pode dizer que sou muito imaginadora, ou sonhadora. Mas, assim como Lennon, eu não sou a única.

Casa de vó

Trouxe do supermercado um pão sovado, petulantemente batizado “Casa de Vó”. Que mentira, que lorota boa. Como se esse pão que vem no saquinho plástico, recheado de estearoil, propionato e sorbato (seja lá o que for isso), soubesse o que é casa. Quanto mais o que é vó. Que eu saiba, casa de vó é outro papo. Embora a minha, que me lembre, nunca tenha feito pão.

Das frustrações que trago na vida, uma é não ter passado férias, aquelas férias idílicas de livro e filme, na casa de vô e vó.

É que os pais do meu pai, não conheci. E a casa dos meus avós maternos se confundia com a nossa própria casa. Bastava subir quatro degraus e eu estava lá. Pequena casa construída no quintal, pelas mãos hábeis do vô Paschoal, aproveitando o fundo do terreno. Cozinha, sala, quarto. Banheiro, fora. Costume antigo, esse dos banheiros externos. Resquício dos tempos de esgotos rudimentares. Problema que não tínhamos, mas talvez a engenharia ancestral dera o tom na hora de meu avô planejar a construção. Eu, criança, dava graças a Deus por nosso banheiro ficar dentro de casa. No inverno, não precisava por casaco para ir fazer xixi à noite.

As férias escolares eram feitas de intermináveis quatro meses: dezembro, janeiro, fevereiro e julho. Cento e vinte dias por ano longe das lousas e cadernos, para se fazer o que quisesse. Eventualmente, nada. Parte deles, no caso dos livros e filmes e alguns amigos reais, passados na casa dos avós. O que podia significar uma temporada inteirinha comendo biscoitos pela manhã, sorvete depois do almoço, café com leite e bolo de chocolate à tarde, sopa à noite, chupando manga no pé (a legítima casa de vó tem mangueira), ouvindo histórias do arco da velha.

Em vez de sorvete e bolo de chocolate, na casa da minha avó tinha pão de glúten, queijo branco, leite Molico e Assugrin. Diabética, ela decidiu que só poderia comer e beber aquilo. Ter três netos ali ao lado não alterava o conteúdo de sua despensa. E o pão que ainda fermenta na minha memória é a bengala que meu avô trazia embaixo do braço e a gente fazia na frigideira, em rodelas e com margarina. Um pão chamado “casa de vô” mexeria mais comigo.

Não posso negar, porém, que a casa dos meus avó tinha seus encantos e mistérios. Mais mistérios que encantos. Meu avô, devotíssimo, mantinha sobre o guarda-roupa uma coleção de santos digna do Vaticano, em um altar com luzinha e tudo. Eu morria de medo, rezava (!) para que não me pedissem para buscar nada no quarto deles. Meu irmão mais velho, então meninote, dizia ver freiras pelo quarto. Questão devidamente resolvida na Federação Espírita, com um passe. Havia também o porão sob a cozinha, onde só se entrava ligeiramente agachado. Ali ficava guardada, entre outras tralhas, a enceradeira. Das antigas, grandalhona. Dia de faxina era dia de passear de enceradeira. A gente se aboletava sobre o motor e lá ia meu avô, dirigindo a máquina e lustrando o velho assoalho de tacos.

O pão do supermercado, também não posso negar, é bom. Da Seven Boys, nome tão presente na minha infância. Em casa, vejam só, éramos sete. Um a um fomos saindo, cada qual a seu tempo e destino. Hoje as duas casas, amalgamadas pela história e poeira, são só um triste conjunto de paredes descascadas e estuque prestes a ruir. Fechadas, sem criança em férias, sem vó, nem vô. Sem pão, sem santo, sem nada.

Piscina

Esta é de quando eu queria-porque-queria ter piscina em casa.

Mantinha um relacionamento platônico com as piscinas das novelas e, eventualmente, das casas dos outros. Sem falar nas do Juventus, que não eram para o meu bico (já contei essa). O amor é azulejadinho.

Inconformada, resolvi fabricar minha própria piscina. Ah, a bravura indômita da pré-adolescência.

Morávamos em uma pequena vila com quatro casas. A nossa era a número 1. Entrada lateral, portãozinho de grade, estreito, coisa de metro e pouco de altura. Na sequência, a escada que levava ao quintal, propriamente dito. A largura desse corredor? Também, metro e pouco. De um lado, a parede da nossa casa. Do outro, o muro que dava para a casa da Wanda, que tinha um cachorrão, o Gueibin (já contei essa também). Ao lado do portãozinho, torneira e registro de água, com aquele reloginho esquisito que não marcava as horas.

Pois bem. Elaborei um projeto para me refrescar no verão paulistano. Quem precisa de engenheiro, quando se tem alguns sacos plásticos, desses para lixo, e durex?

A ideia brilhante: fechar o portão com os sacos plásticos, tomando o cuidado de vedá-los embaixo, rente ao chão, e abrir a torneira. E vedar com o quê? Durex, oras. Formaria uma pequena represa cujos limites seriam: portão, parede, muro e escada. Não ficaria uma piscina categoria Juventus, claro. Porém, se tudo desse certo, eu teria água até a cintura. Poderia até usar os primeiros degraus da escada – ficariam submersos, de acordo com o projeto – para sentar e relaxar.

Desvantagem: ninguém poderia abrir o portão. Ou seja: quem estivesse em casa, não poderia sair. Quem chegasse, não poderia entrar. Mas o que é o direito de ir e vir da família, diante da oportunidade de ter uma piscina no lar, doce lar? Se bem que, pelas dimensões, estaria mais para ofurô. E quem se importava?

Coloquei biquíni. Instalei os sacos plásticos. Procedi com a vedação, torcendo para que ninguém desse falta do durex. Animada, já cogitava expandir o projeto e, quem sabe, atender outras amigas despiscinadas. Abrir um negócio, patentear o sistema, talvez? Empreendedorismo na veia, bicho.

Abri a torneira.

O processo pareceu-me um pouco demorado, sentei-me no chão. O reloginho correndo feito louco. Um dedo de água e o represamento ia bem.

Dois centímetros, e meu dedinho do pé já estava submerso!

A torneira era um chuá só, quando notei que o durex perdera a cola em alguns pontos. Eu precisava encarar a verdade: estava diante de um iminente vazamento. Era óbvio que meu projeto careceria de alguns ajustes.

Lentamente, a impiedosa água, dotada de anima e vontade própria, atravessava os limites dos plásticos e começava a ganhar a calçadinha. Era minha piscina indo, literalmente, pelo ralo. Porcaria de durex. Ali, aprendi que a água sempre seguirá seu caminho.

Cerrei a torneira, resignada. Só restava afogar-me na frustração. A brilhante ideia da piscina só não fora pior que a de me bronzear no telhado, mas essa eu conto outra hora. Recolhi os sacos, agora imprestáveis, joguei no lixo. Liguei a TV para assistir à Sessão da Tarde e fui fazer um sanduíche. Afinal, piscina dá uma fome danada.

Ninho

arte: Golly Bard

Minha rua, como toda rua, tem postes. Em um deles, há um ninho de bem-te-vi. Justo no que tem o transformador de energia, com um indecifrável emaranhado de fios e cabos.

É ninho antigo. Todo ano, eles vêm botar seus ovinhos. Não são os mesmos. Talvez seja “imóvel” que passe de bem-te-vi pai para bem-te-vi filho, garantindo o teto (teto?) a várias gerações. Ou pode ser de locação, conforme anúncio classificado no Jornal dos Passarinhos, “Aluga-se ninho para temporada, completo e equipado, no melhor pedaço do Jardim Santa Cândida. Tratar com Sr. Bem-te-vi”.

E só vem bem-te-vi mesmo. Nada de rolinha, maritaca ou sabiá-laranjeira como inquilinos, que esses têm outros lares. É ninho de uso exclusivo deles, como se houvesse um contrato invisível assinado pelas demais espécies. Nunca soube de outro passarinho ousando quebrar essa cláusula.

É local absolutamente inóspito aos meus critérios humanos e limitados. Mas passarinho é quem sabe das coisas. O pequeno vão entre poste e transformador formou um nicho seguro, à prova de gatos e outros predadores. E quentinho, condição básica para berçários. Um casalzinho deve ter aparecido por ali, achado a vizinhança interessante, com fartura de alimento e fácil acesso às matas da região. Resolveram se instalar. Foram juntando palhinhas, galhinhos, folhas, fios de cabelos que voam pelos ares (não que cabelos sejam pássaros), restos que ninguém quer mais. Desde então, o ninho virou tradição benteviana. Sabedoria passarinhesca não se questiona.

O pessoal da companhia de força e luz já esteve fazendo reparos no poste. Removeram o ninho, numa época em que estava vago. Mas bem-te-vi é bicho marrudo. Ao contrário do velho Adoniran, que viu sua saudosa maloca indo ao chão e, resignado, lamentou – “Nós arranja outro lugar” – , logo os bem-te-vis ergueram, no mesmíssimo ponto, um ninho novinho em folha. E a vida continuou. Desconfio que, se voltarem a tirar, eles voltam a construir. Vamos ver quem ganha. A natureza é mais poderosa que o transformador de ferro. Só ela é capaz de transformar ovo em passarinho. Não conheço quase nada mais importante que isso.

Quando sei que tem filhotes ali, por causa dos piados fininhos, costumo parar na calçada para ver o pai ou a mãe chegando para alimentá-los. É bem alto, mas, às vezes, dá para ver as cabecinhas semicarecas dos filhotes, os biquinhos abertos à espera do almoço. Já de minha varanda eu os ouço, mas não consigo vê-los. Estou quase adquirindo um binóculo. Como Manoel de Barros, também fui aparelhada para gostar de passarinhos. Voyeur de passarinho é profissão?

Só sei que logo eles crescem, vão voar suas vidas e o ninho fica vazio. Mas só até a próxima estação.

Tipo A

arte: Dan Kessler

À tardezinha, íamos à padaria na rua de cima comprar uma bengala – não tinha esse negócio de baguete – e um leite de saquinho. Apesar de conhecer a velha garrafa de vidro retornável com que se comprava leite naquele tempo (ficava no armário da cozinha, sob a pia), não convivi com ela. Eu gostava de apertar os saquinhos de leite. Gelados, úmidos e molengos. Temia que estourassem, feito balões d’água.

A hierarquia dos leites, na época, era bem definida na minha cabeça. O tipo A, mais caro, encorpado e, logicamente, melhor. Eu acreditava que ele deixava as pessoas mais fortes e inteligentes. Presente apenas nas mesas das famílias ricas.

Os tipos B e C eram os primos pobres do leite A, mais ralos e mais baratos. O tipo C era praticamente um fake-milk, com um fundinho de verdade e olhe lá.

Em casa, as vacas eram magras e a gente ia de tipo C, mesmo. Quando muito, B. Exceto minha avó, que vivia de Molico por causa do diabetes. Aquele era dela, só dela. Eu, criança urbana, ignorava que o leite de verdade, cru, tirado ao pé da vaca, era mais grosso que o próprio A, tinha cheiro forte e podia até ser meio amarelo. Cruz credo, amarelo?! O leite do saquinho era branquinho de tudo, feito… leite!

Talvez por conta de alguma conjunção astral esquisitona na Via Láctea no instante em que vim ao mundo, ou até mesmo questão de carma, nunca fui chegada a leite e laticínios em geral. Conta a lenda que desmamei, por vontade e birra próprias, aos 27 dias de vida. Minha mãe não sabia o que fazer para me alimentar, mas o fato é que eu não queria mamar de jeito nenhum. Recorro sempre a esse expediente para justificar minha ojeriza a leite puro. Embora tenha sido adepta do Toddy na infância e, até hoje, consuma coisas onde o leite é ingrediente oculto. Quis o destino também que eu descobrisse, depois dos cinquenta, uma moderada intolerância à lactose – coisa que eu já sabia desde nenê, mas quem é que ouve os nenês?

Toda cozinha que se prezasse tinha um porta-leite de plástico colorido, semelhante à uma jarra. Bastava acomodar ali o saquinho, cortar a pontinha na diagonal e servir. Hoje a maioria dos leites é longa-vida e UHT e vem numa Tetrapak com lacre inviolável e lote de fabricação e prazo de validade de seis meses (a vaca nem imagina) e código QR. E, apesar de os saquinhos de leite ainda existirem, os porta-leites são espécie em extinção.

Eu ia com minha irmã à padaria. Na ida, trajeto sem intercorrências. Na volta, como a rua Jaboticabal era leve descida eu, invariavelmente, levava um tombo. Ralava joelho, chorava e voltava no colo da irmã, mais velha. Não sei como ela nunca fez campanha para que eu não a acompanhasse mais.

Certa vez, minha mãe adoeceu. Para demonstrar meu afeto e zelo filial, preparei-lhe uma gostosa xícara de café com leite. Ela, da cama, sorriu, agradeceu e quis saber onde eu encontrara leite, já que o da geladeira havia acabado. Respondi, naturalmente: “Na tigela no gato”.

Ontem, no supermercado, vi leite de saquinho. Vários, dispostos em uma grande caixa plástica, ao pé dos iogurtes. Tão parecidos com os do tempo que eu era criança. Embora eu não vá mais à padaria a pé com minha irmã, nem leve tombos a torto e a direito. Fingi procurar alguma coisa na prateleira e apertei os saquinhos. Continuam gelados, úmidos, molengos.

Enxuguei a mão na minha calça jeans, paguei as compras e vim embora, levemente feliz. É que das minhas memórias sempre jorra saudade. E elas são do tipo A.

O lagarto que não me deixa trabalhar

Fiz como sempre: abri notebook, conectei celular e caixinha de som, apanhei caderno de anotações, caneta, café. Ajeitei meu canto de trabalho, transposto para a mesa de jantar, por causa da pandemia. Assim o marido, em home office, usa a mesa do escritório. Particularmente, apreciei a mudança. Agora fico em frente à janela maior que dá para o quintal e vejo mais coisas.

Vejo, por exemplo, o pequeno lagarto que vem e vai pelo muro, alheio ao perigo da cerca elétrica. Não sei se é sempre o mesmo, ou se é uma família. Lagartos são tão iguais. Eles devem dizer o mesmo de nós: “Humanos são tão iguais”.

Meu muro é seu caminho de todo dia. Sempre ligeiro, o lagarto tem pressa, feito o coelho da Alice (mas não sei se este aqui usa relógio). Calculo vinte centímetros, no máximo, da cabeça à cauda. Atento, ele estanca ao menor ruído ou movimento ao redor, pescocinho erguido. Esses lagartos têm visão e audição apuradíssimas. Não à toa, estão neste planeta há milhões de anos.

Enquanto o pequeno dinossauro está na área, não consigo trabalhar. Não por medo, pelo contrário. É que em vez de tocar o ofício, distraio-me. Que espécie é essa? Eu, que não sou entendida em répteis, chamo tudo de lagarto, calango. Há vários por aqui. Nesse quesito, meu quintal, talvez pela quantidade de plantas, é lembrança viva da era mesozoica. Será que este mesmo lugar, onde hoje é minha casa, e que já foi fazenda, foi habitado pelos seus ancestrais grandalhões?

A miniatura de crocodilo ensaia escalar um galho do pingo d’ouro que resvala no muro e a gata, enrodilhada no sofá, percebe. Gatos, assim como os lagartos, também têm visão e audição apuradíssimas. Ela levanta e, estática, se põe a observá-lo. Gatos são mestres em ficar imóveis, seria divertidíssimo brincar de estátua com eles. Mas gatos só fazem as coisas quando eles querem. Lentamente, ela avança alguns passos, sem ruído, graças às patas acolchoadas. Quando chega à janela, o lagarto sente sua presença e também fica imóvel. Ficar imóvel, portanto, é estratégia dupla: boa para caçar e também para não ser caçado.

Enquanto a gata fita o lagarto e o lagarto finge que não está ali, mimetizando com as plantas, retorno à tela do Word. Reescrevo um parágrafo inteiro, salvo. Desvio o olhar para o muro, lagarto sumiu. A gata voltou ao sofá; desistiu de caçar, muito calor. Não tenho visão tão boa quanto a deles, mas estico os olhos até o limite do muro para localizá-lo. Nada. Agora quero ver aonde ele foi; levanto e vou até o quintal. Lá está a lagartixona, perto do mamoeiro da vizinha. Lagartos comem mamão?

Será o mesmo que entrou na sala, dia desses? Voltei do supermercado e encontrei os três gatos alinhados em frente à máquina de costura, fitando alguma coisa sob o móvel. Quando é assim, já sei. Algum bicho entrou e acabou encurralado. Batata: era um lagarto-bebê. Devia ser filho desse que está zanzando no muro. Operação de resgate bem-sucedida e o pobrezinho rastejou em desabalada carreira – sempre gostei dessa expressão, desabalada carreira – para o quintal, a salvo dos bichanos. Disse nem obrigado, o escamosinho.

O lagarto ficou meditando sob o mamoeiro, volto ao meu posto. Café acabou, busco mais na cozinha. Reviso mais alguns parágrafos, mas o final não me parece bom, vou precisar mexer. Perco o fio da meada, e o lagarto é o culpado. Estou atrasada, preciso entregar o texto (que não é sobre a Reptilia) para a editora hoje e ainda tenho que fazer o almoço. Porque não posso, simplesmente, levar minha família ao mamoeiro.

Li que os lagartos conseguem recompor seus rabos completamente, caso o percam por aí, n’algum embate. No processo, que pode levar meses, eles ativam mais de trezentos genes. Já pensou se a medicina descobre com eles como podemos regenerar, não um rabo, mas um braço ou perna perdida?

Respeitem os lagartos, meu.

Gorro de cossaco

Em casa tínhamos o livro de receitas do Açúcar União. Era só trocar não sei quantas embalagens por um exemplar. Na verdade, tínhamos dois; faziam parte de uma coleção. Açúcar era com a gente, mesmo.

Eu passava tempão folheando o livro e me distraindo com as fotografias coloridas dos pratos prontos, um mais apetitoso que o outro. Livros de receitas não são como romances que, para sabê-los, é preciso ler inteiro e na ordem. Cada receita é um conto, independente e autônomo em seu sabor.

Uma das receitas do livro colorido eu me lembro bem: “gorro de cossaco”.

Achava o nome intrigante, mais até do que o indecifrável “bavaroise” ou o insondável “chifon”. Eu não sabia o que era cossaco. Nem a relação que um gorro poderia ter com aquele magnífico bolo de chocolate da fotografia, coberto com muito, muito chocolate granulado. A ideia de usar um bolo na cabeça poderia até ser apetitosa, mas não me parecia muito prática.

A fábrica da União ficava na Mooca, meu bairro. O cheiro do açúcar refinado tomava as ruas e casas ao redor, mas não chegava na minha. No meu pedaço, o aroma reinante era de outra fábrica, a dos biscoitos Raucci. Eu sonhava poder entrar ali e comer todos os biscoitos que eu quisesse.

Cossacos, aprendi depois, eram soldados russos. Parte de seus uniformes era um robusto e negro gorro feito de pele e pelos de animais, para protegê-los do impiedoso frio. E o formato do tal bolo lembrava o do adereço. Se for pensar assim, qualquer bolo se parece com um gorro, e vice-versa.

Em seu caderno de receitas, minha mãe tinha mania de acentuar a palavra doce. Antigamente, o verbete, de fato, levava circunflexo no “o”. Mas ela confundia e botava o chapeuzinho no “e”. Sempre. Era docê de não sei que pra cá, docê de não sei que pra lá. Eu sempre a corrigia. Ela ria. Dona Angelina, que saudade docê.

Uma de suas receitas era famosa: o tal do bolo coelho. Ela recortava no pão-de-ló a silhueta do bicho, e o enfeitava com glacê branco. Uma cereja virava o olhinho. Sucesso garantido entre a parentada, que costumava encomendá-lo para as festas de aniversário. Ela guardava um molde em papel, que ela mesma desenhara, para recortar o coelho sempre do mesmo jeito. Não era receita do livro da União. Era da sua cabeça criativa, mesmo.

Quando minha mãe fez quimioterapia, seus cabelos caíram. Ficou carequinha. Para o inverno, ela arrumou um gorro de lã cor de vinho. Enfeitou-o com uma pequena borboletinha verde, bijuteria que fazia parte de um grampo. Guardo o gorro até hoje. Minha mãe era uma espécie de cossaco da família. Valente, guerreira.

A refinaria da União não existe mais. No local, ergueram um condomínio de apartamentos. Apenas a majestosa chaminé de tijolinhos foi poupada. O passado se derreteu como cubos de açúcar em chá quente. E quem mora ali agora nunca vai saber do velho e doce aroma no ar.

Cisne

Enquanto pintava as unhas, lembrei.

Quando eu precisava ir à farmácia tomar injeção (ai!), comprar remédio ou só acompanhar alguém, ficava fissurada nos esmaltes. Na Droga Cisne havia uma pequena vitrine sobre o balcão, cheia de Coloramas e Impalas. Cada vidrinho era um minimundo de cor, formando um arco-íris de formaldeído e nitrocelulose. Mas criança não pintava as unhas.

Nos anos setenta, não havia a overdose cromática dos esmaltes de hoje que, só de rosa, tem uma centena de tons. É a popularização da escala Pantone, com secagem ultra-rápida. Os nomes dos esmaltes também eram simples, quase singelos. Zazá. Rebu. Areia. Kirei. Hoje quem os batiza não quer saber de minimalismo. Nos rótulos, frases com sujeito e predicado nomeiam cada vidrinho, numa espécie de storytelling. Dias atrás passei um com o nome “Zeca chamou pra sair”. Sendo eu uma mulher casada, devo considerar isso traição?

Minha mãe preferia os clarinhos, “cor forte, não”. Gostava do Zazá, um lilás suave. Só nas mãos, no entanto. Ela nunca pintou as unhas dos pés. Eu tinha trinta e nove anos quando estreei a cor nos meus artelhos. Taquei logo um vermelhão, para compensar a vida passada em branquinho. Achei-me bem ousada, aqueles pontinhos vibrantes nas pontas dos meus pés.

Os dedos dos pés da minha mãe, quando vistos por baixo, pareciam balas de coco. Aquelas, que as tias faziam para as festas de aniversário ou casamento. Sempre quis escrever isso, não sei por que. Nunca mais comi aquelas balas. Quase não tenho mais tias.

Na Droga Cisne quem nos atendia era o Arquimedes. Farmacêutico dedicado, simpático, falava baixinho. Tinha um problema nas costas que fazia sua cabeça pender para o lado. Diziam que ele chegara a estudar Medicina, sem, no entanto, ter se formado. Era comum o bairro todo se “consultar” com ele. Quando o Arquimedes ficou velho, seu filho, parecidíssimo com ele, assumiu a farmácia. E se tornou médico.

Eu achava bonito o desenho do cisne na fachada. Pensava na história do patinho feio, que crescia e se tornava uma linda ave. Eu me identificava com o patinho. Queria crescer logo, para ter unhas compridas e usar aqueles esmaltes. Viraria, então, uma cisne.

Depois que meus pais foram trabalhar na venda, Dona Angelina não tinha mais tempo para a manicure. Pudera. O dia inteiro fatiando frios, pesando arroz e feijão, arrumando mercadoria nas prateleiras, lavando copos no bar. Que esmalte sobreviveria? Suas mãos tinham um permanente cheiro de café moído. Ou de presunto.

Eu gostava de brincar com suas coisas: acetona, lixa, palitinho de laranjeira. Quando vi um pé de laranja, pela primeira vez, fiquei procurando o tal palitinho. Não achei. Eu roía minhas unhas. De vez em quando era autorizada a usar um rosinha nas mãos. Logo o esmalte descascava nas unhas carcomidas, uma feiúra só. O cisne nunca chegava.

Assim que Nina saiu da minha barriga e a aconchegaram em meu colo, a primeira coisa que vi foi seu rostinho. A segunda, seus dedos finos e longos. Queria que minha mãe soubesse que a neta caçula, que já nasceu cisne, tem as unhas mais lindas do mundo.

A Droga Cisne, tão única, não existe mais. Na mesma rua abriu uma Drogasil, igual a qualquer outra Drogasil. Deve ter uma prateleira cheia de esmaltes multicoloridos. E uma garotinha que passa por ali, de vez em quando, atenta aos vidrinhos. Esperando sua vez de ser cisne.

Cidade-mãe

O ônibus dobrou a esquina e bati o olho no letreiro: Itapira.

Cidade da minha mãe. Que, vejam só, não conheço. Tão pertinho de onde moro, não dá uma hora de carro. Quando passo por ali, pela estrada, sempre estico o olhar. Procurando nem sei o quê (ou sei). Mais ou menos como os bichos, quando farejam o vento.

Deveria ser um mandamento, “Conhecei os lugares em que teu pai e tua mãe nasceram”. Com Seu Tonico, estou satisfatoriamente quite. Já com Dona Angelina, carrego a dívida. Ou pecado.

Leio na internet: Itapira, município do estado de São Paulo, tem 74.773 habitantes e localiza-se a uma latitude 22º26’00” sul, longitude 46º49’18” oeste. Dou risada. Essa Wikipedia sabe nada das coisas que realmente importam. Soubesse, o texto começaria assim: “Itapira é onde nasceu a Angelina, que fazia o melhor pão de batata do sistema solar e era conhecida por sua risada de apito”.

Quis tomar o ônibus. Aquele, vermelho, que virou a esquina e passou por mim, como um recado. Que se danasse aonde eu estava indo e o que eu tinha para fazer. Acenaria para o motorista, feito doida, fazendo-o parar ali, no meio da rua. Esbaforida, entraria e pediria desculpas aos passageiros pela confusão. Aboletaria-me em uma das poltronas vagas (haveria de ter uma). Durante a viagem, telefonaria para o marido, avisando, “Não me esperem para a janta”.

Desceria, então, na rodoviária da Itapira. E daria início à atrasada missão: encontrar a casa onde minha mãe viveu, quando criança.

O problema é não ter a menor ideia, única pista sequer, fotografia que fosse, de onde ela e meus avós viveram. Para que lado ficava? A casa tinha alpendre? Roseira na frente? Quantas casas da década de 1930 ainda estão em pé em Itapira? Quantos itapirenses se lembrariam dos meus avós e de minha mãe? Não temos parentes lá. Andaria a esmo, perdida, à espera de providência divina de súbita intuição ancestral. Deveria existir um Google Maps afetivo, sabedor de coisas assim.

Perguntaria ao rapaz da farmácia, puxaria conversa com a senhorinha da quitanda, bateria na porta do cartório. Apelaria aos meninos a caminho do jogo, interromperia o Tik Tok das garotas na porta da escola, quem sabe não teriam uma bisavó centenária e com boa memória.

Rodaria Itapira inteirinha, viraria a cidade do avesso. Bateria na porta da rádio, iria ao jornal, alugaria um carro de som, descolaria um megafone. Quanto tempo levaria para falar com 74.773 moradores? Onde a Angelina menina comprava balas? Qual era o nome da sua escola? Sem respostas, só me restaria tomar o ônibus vermelho de volta.

A casa onde nasci e vivi por quase metade da minha vida está vazia, fechada. Talvez, habitada por comunidades de fantasmas e aranhas. Meu filho tem pálidas lembranças de lá. A caçula, nem isso. Em São Paulo, a casa número 1 da pequena vila da Mooca é morta. Embora tenha abrigado tanta vida.

Já é fato doído, mas meus filhos terão esse buraco em suas biografias. Não terão sabido da casa onde sua mãe nasceu. Já do pai, novamente, estão ricamente quites (em história que, por alguma razão, se repete). Eles não saberão onde eu comprava balas e gibis. Talvez, um dia, lá na frente, se deem conta disso. E quedem assombrados com um letreiro de ônibus dobrando a esquina.

Mavi

O salão era perto de casa, íamos a pé. Ficava no subsolo de uma loja de coisa qualquer. Ali, no subterrâneo do bairro, alheio a primavera, verão, outono e inverno, pulsava um confinado e fascinante mundo de beleza. Onde eu, pirralha de tudo, ia cortar os cabelos ou só acompanhar mãe e avó em seus franciscanos rituais embelezadores.

Descia as escadas e já ouvia o burburinho da mulherada e dos secadores de cabelos. Daqueles grandalhões, com uma espécie de capacete futurista a abduzir cabeças cheias de bobs. Em meu nariz se misturavam os cheiros dos esmaltes, dos xampus, do laquê e da amônia no ar – substância fiadora da permanente nos cabelos. Nove entre dez mulheres fizeram permanente nos anos 70, em busca dos cachos perfeitos. (Eu fiz, nos anos 80. Rio bastante quando vejo minha foto na carteirinha do Juventus.)

Nossa cabeleireira era a Mavi. Mavi era linda. Eu queria ser a Mavi.

O salão ficava próximo à igreja onde meus pais se casaram. Cresci ouvindo meus avós, que não sabiam ler e escrever, falando rua Fernandsfalcão aqui, Fernandsfalcão ali. Não demorou para que eu deduzisse; por certo, era Fernandes Falcão. Aprendi a ler e soube: o nome da rua era Fernando Falcão. Mais ou menos como naquela outra história: minha irmã e eu pedimos ao meu avô o endereço da prima que morava em Mogi-Guaçu, queríamos mandar-lhe uma carta. Ele informou: rua Mervin Júnior, número tal. A prima respondeu, toda contente, escrevemos de novo. Muito tempo depois, descobrimos: Melvin Jones era o nome da rua. Esse pessoal dos Correios é bem batuta.

Mavi de quê, mesmo? Maria Vitória ou Maria Virgínia? Maria Virgulina ou Maria Vicentina? Nunca soube. De seu rosto, não me lembro. Nem de seus, vejam só, cabelos.

Só sei que cravei o velho salão e a Mavi na minha cabeça.

Assim como minha avó cravava o pente na minha cabeça, quando me penteava para eu ir à escola. Ela era incumbida de cuidar de nós três enquanto meus pais trabalhavam na venda. Para facilitar, eu subia no bidê do banheiro. Ela puxava com força meus cabelos, que iam até a cintura. Eu reclamava, ela também.

Minha bisavó Carmela, que também nunca foi à escola e provavelmente jamais pisou em um salão de beleza, cravava o pente-fivela em seus longuíssimos, finos e branquinhos cabelos, prendendo-os num coque. Era raríssimo vê-la com as madeixas soltas.

Será que Mavi ainda é cabeleireira? Jogo o endereço do salão no Google Maps, não reconheço mais o local. A escada, os secadores trambolhudos, vô, vó, bisavó, a prima de Mogi-Guaçu… Tudo se foi no sumidouro do tempo. E de vez em quando ressurgem nas lembranças, tão compridas feito meus cabelos de menina.

Retrospectiva

Fui preencher o cadastro na internet, tinha que informar a data de nascimento. Dia, 7. Mês, 5. Fácil. Já o ano em que vim ao mundo se situava a, no mínimo, dez rolagens na tela. Quem manda ter mais de meio século?

A cada ano exibido, fiz instantânea e aleatória retrospectiva. Pulei alguns, me ative a outros. Quando dei por mim, havia feito um breve apanhado da minha existência neste plano.

2020 é ano que nem acabou e já tem informação demais. E 2019, por enquanto, leva o mérito de ter sido véspera de um ano muito louco, do tipo “éramos felizes”. Segundo livro publicado em 2016, o primeiro em 2012, o blog em 2009, depois de dois anos em uma gaveta digital. Em 2006 nasceu Nina. Luca, em 2004. Com eles, a certeza de que ter filhos é como pintar os olhos; um sai sempre diferente do outro.

2001, 11 de setembro. Grudada na TV, atendendo ao telefone e dizendo que estava tudo bem. Um ano antes, dei à família, no atacado, as notícias: estou namorando, vou morar com ele, vamos nos casar, nos mudaremos de país. Nos anos anteriores, trabalhei, fiz terapia, tai-chi-chuan e bronzeamento artificial. Comprei bolsas e sapatos compulsivamente, e quase morri de amor pelo menos duas vezes.

Rolei até 1988. Meu primeiro estágio, no Museu do Ipiranga, nome artístico do Museu Paulista. E o primeiro salário torrado praticamente inteiro em uma calça jeans Ellus. 1987: no Dia dos Namorados, Dona Angelina, eterna namorada do meu pai, morreu. Eles, que se conheceram em um Dia de Finados. Eu tinha vinte anos e descobri uma relação especial entre amor e morte.

Em 1986 entrei na faculdade de Comunicação Social. Estranhei; a maioria dos alunos chegavam e iam embora de motorista particular. E usavam botinha de camurça da London Fog. Original! Foi em 1985 que a ficha caiu: o colégio técnico em Edificações não era para mim. Fui, então, fazer cursinho no Objetivo da Vergueiro, decidida a ser publicitária. No ônibus de volta para casa, curiosamente, quase todos os dias tocava “Tempo Rei”.

1984, ano de aventuras perigosas, impensáveis em qualquer época: ir com a irmã e as amigas para Ubatuba, de carona, solicitada na base do dedão em plena Rodovia Dutra. Deus deve ser muito meu chapa. Em 1983, após longa espera, instalaram nosso telefone. Plano de expansão da Telesp. Fui a última da turma a ter um em casa. Talvez, por isso, eu ainda me lembre: 948-3443. Em 1982, pela primeira vez, saí da Mooca, meu bairro-mundo, para estudar em outro canto da cidade. Do professor de português, os primeiros incentivos para escrever. Nunca mais o vi. Até hoje jogo seu nome no Google.

Primeiro namorado em 1980. Íamos de moto passear no Parque do Ibirapuera, ambos sem capacete e sem juízo. Não há dúvida de que Deus é meu chapa, bróder supremo protetor. Tirei meu RG em 1979. A foto 3×4 não é das melhores; estava no finzinho do sarampo. No mesmo dia, minha mãe fez o dela. Seu RG é um número antes do meu. Ela não precisa mais dele, desde que se foi. Eu sigo aguardando minha vez de ir. Meu RG é uma espécie de senha com Deus.

Em 1973 entrei na escola, pré-primário com a Tia Neide. A contragosto, participei de uma peça de teatro. Minha fala começava assim, “Eu era uma sementinha…”. Foi em um gibi do Mickey que consegui, sozinha, ler minha primeira frase. Se hoje, com cinco anos, uma criança não só lê, como escreve, declama e faz vídeos no Tik Tok, em 1972 aquilo era quase uma proeza.

1970, Copa do Mundo. Minha mãe estourando pipoca na panela. Ela desliga o fogo, passa a pipoca para a vasilha, pulveriza o sal, encosta a porta da cozinha e me chama para a sala. Meu pai e meus irmãos já estavam em frente à TV, prontos para a torcida. E, se 1968 foi o ano que não terminou, foi nele que eu comecei a andar e a falar.

Cheguei, enfim, a 1967. Dei enter. E meu cadastro neste mundo é concluído com sucesso.

Chiclete

arte: “Bubble Gum”, Zara Picken

Já fomos mais mascadores. Por onde quer que se fosse – puxe aí na memória –, havia alguém mascando chiclé. O cobrador do ônibus. O motorista do ônibus. Os passageiros. As vendedoras nas lojas. Os primos, os vizinhos. Todos os colegas da escola, sem exceção. Até a professora, que não admitia, mascava enquanto corrigia as provas. O chiclé era onipresente nas bocas brasileiras (quiçá mundiais).

Hoje, nem tanto. Quase não se vê mais aquele gingado de maxilares.

Chiclé é apelido de chiclete. Que, por sua vez, é metonímia de Chiclets, a marca gringa da famosa goma. Dizem que veio do hispânico chicle, látex extraído do sapotizeiro e que significa, ora ora, substância pegajosa.

Nada dessas erudições, no entanto, importava: eu só queria saber quantos chiclés eu poderia pegar na venda. Ser filha dos donos tinha suas vantagens. Além do Ping-Pong tutti-frutti, meu predileto, podia me fartar à vontade de bala Juquinha, Jujuba e Delicado; Chokito, picolé da Gelato, Dadinho e maria-mole. Passar a tarde na venda, depois da aula, era pura epifania.

Voltava de lá com Chiclé na boca e tatuagem de mentirinha no dorso da mão. Dez entre dez crianças tinham. Vinha na embalagem do Ping-Pong e do Ploc. Desenhinho ordinário, era só molhar o papel e grudar na pele. Durava dias, para horror das mães. Não saía nem no banho. Depois de uma semana, a pseudo-tattoo era apenas uma sombra pálida e encardida. Que beleza.

Eu tinha medo de engolir chiclé. Falavam que grudava nas tripas, a pessoa ia parar no hospital, poderia até bater as botas. O controle pelo medo, como se vê, é estratégia secular. Nunca soube de ninguém que tivesse morrido por causa disso. Por garantia, eu mantinha os meus longe da garganta.

Além da tattoo, os chiclés vinham com outro bônus, igualmente divertido: faziam bola. Os mais velhos classificavam a performance como falta de educação, na mesma categoria de mostrar a língua. Já eu considerava aquilo uma arte (exceto quando explodiam no rosto do próprio artista). Quanto maior e mais tempo durasse, maior a habilidade do chicleteiro.

Depois, os ping-pongs e suas bolas deixaram de exercer fascínio. Migrei para o politicamente correto Trident, sem o bandido açúcar. E sem bola, por favor. Nem dava; só se colocasse uns cinco tabletes na boca. Por fim, abandonei a mascação. Aderi, porém, às tatuagens de verdade. Que me acompanharão até o derradeiro banho nesta vida de meu Deus.

Outro dia, vi no supermercado o Bubbaloo, neto do Chiclets. Não vem com tatuagem temporária, mas tem recheio. Criança ainda gosta? Olhei ao redor. Nenhum gingado de maxilares detectado, em uma pequena amostra de pessoas entre 5 e 80 anos. Posso estar enganada, mas chiclé é guloseima em extinção. Basta olhar embaixo das carteiras escolares, das cadeiras e mesas dos fast-foods, nas paredes dos banheiros públicos. Nenhum.

Será a superação do ato de mascar uma clara evidência de evolução da espécie? Se sim, viemos das vacas, e não dos macacos.

Deu saudade da venda. Das tardes regadas a glicose, o baleiro antigo, a vitrine de madeira cheia de doces. Meu pai servindo Tatuzinho e Cynar aos fregueses, enquanto fazia preleções sobre a vastidão do universo. Minha mãe pesando arroz e batatas para as freguesas, suas mãos sempre cheirando a café moído. A máquina de cortar frios que quase decepou meu dedo (culpa minha), a sulfa mágica do farmacêutico estancando o sangue. Guardo na cabeça uma enorme goma de mascar lembranças. E não tenho medo de engoli-las. Se grudarem nas tripas, faço delas coração.

O boneco feio

Dos poucos brinquedos que minha mãe teve, quando criança, um permaneceu. É um bebê de louça, acabou ficando comigo. Se hoje ela teria oitenta e quatro anos, ele beira os oitenta. Apesar da idade, continua bebê. Não tinha nome de gente, como Alfredo ou Sérgio. Minha irmã lembrou: a Angelina-criança, minha mãe, o chamava, vejam só, de Boneco.

Se Boneco era o bebê de mentirinha da minha mãe, eu sou irmã de mentirinha dele. Além de compartilharmos a orfandade, tornei-me, nem sei desde quando ou por que, tutora dele. Dia desses, tirei-o do armário onde vive, envolto em xales, protegido dos perigos deste mundo. Nina, minha filha, neta de Angelina, sobrinha de mentirinha do Boneco, assustou-se ao vê-lo na sala. Já Luca não poupou o desaforo: “Que feio!”.

Eles têm razão. Boneco, o boneco, é feio.

Tem cabeça, bracinhos e perninhas de louça pintados à mão, em cor de pele sem vida. Seus olhos são fundos, inertes, perturbadores. A boca mal desenhada em cor de rosa, a balbuciar o nada. As mãozinhas, fechadas como as dos recém-nascidos, parecem de gente velha, cheias das marcas do tempo. Seu corpinho, de tecido estofado, está puído. Falta-lhe a ponta do pé esquerdo, quebrado sabe-se lá como. Na nuca, um misterioso buraco que acabou por lhe rachar parte da cabeça. Como é oca, alguém enfiou ali um chumaço de pano. Pois, todo mundo sabe, cabeça vazia é oficina do diabo.

Minha irmã e eu, de pequenas, também brincávamos com ele. Minha mãe deixava (o que, talvez, explique os acidentes). Crescemos, ninguém mais brincou com ele. Pudera. Que criança, hoje em dia, há de querê-lo? Não é bebê rosado, gordinho, fofo. Não se pode pegá-lo de qualquer jeito. O Boneco é durão, não fecha os olhinhos quando o deitam. “Não faz nada”, como diriam. E, duro dizer, é feio pra burro. Aqui em casa, nunca lhe arranjei merecido lugar, como num museu afetivo. Então, ninguém o embala mais. Resignado em sua condição de relíquia, Boneco é brinquedo esquecido. Nem por isso ele chora. Se ele é de louça, o coração deve ser de lata. Já chorou um dia, porém. Em suas costas há uma espécie de alto-falante inativo, enguiçado, podre. Devia ser desses bonecos que, se lhe apertam a barriguinha, choram metálico.

Tenho vontades de lhe dar um banho, mandá-lo a um hospital de bonecos, fazer-lhe curativos, vesti-lo decentemente, providenciar um bercinho. Não se pode esconder um pequeno irmão mais velho assim, num armário, para sempre. Ele precisa de cuidados. Boneco, o boneco feio, é frágil. Embora ninguém que chegue aos oitenta com apenas um pé quebrado e um buraco na cabeça deva ser considerado frágil.

Frágil sou eu. Que pareço de louça e me quebro inteira, imaginando a Angelina-menina dando-lhe papinha, trocando a fralda do xixi invisível, passeando com ele para lá e para cá, conversando com ele, ninando-o, fazendo-o adormecer. Ensaiando a mãe que já era desde sempre.

Boneco, o feio, deve ter sido bonito, um dia.

A modelista

Para a formatura da oitava série, não foi. Nela, usei um vestido branco, sem graça. Eu mesmo o inventara, a tia costurou. Parecia camisa de homem, comprida. Foi para algum casamento. Vestido pronto era caro, então, rumamos à rua 25 de Março para comprar o tecido.

Escolhemos uma das dezenas de lojas espalhadas ao longo do pedaço. Havia uma modelista de plantão, que desenhava os vestidos na hora. Depois, era só comprar o tecido e levar à costureira. Sacada genial dos lojistas, para atender freguesas enduvidadas sobre o modelito ideal.

A dúvida, no caso, era do meu corpo; não sabia se de menina, se de mulher. Encaixava-se naquela categoria indefinida, e algo incômoda, da adolescência.

Em meio a prateleiras com pilhas de fazendas coloridas, florais e listradas, uma mesinha e duas cadeiras. Sentamo-nos, a modelista sacou seu bloco de papel e um lápis preto, apontado à perfeição. Numa espécie de anamnese, quis saber se eu preferia longos, o que eu achava de babados, se gostava de tomara-que-caia. Enquanto eu respondia, ela me observava e ia esboçando no papel meu modelo. No balãozinho de seu pensamento, pude ler o diagnóstico: menina cabeluda, magrela, branquela, sardenta, pernas finas, levemente desengonçada.

Minutos depois, o desenho revelado: um longuete acinturado, alcinhas de amarrar, ajustáveis no decote, deixando um leve franzido na frente e nas costas, as alças finalizando num laço molengo. Estranhei a sugestão vaporosa, mas achei bonito. Sugeriu musseline, escolhi azul-céu.

No ônibus de volta para casa, vasculhei a sacola. Desdobrei a folha de papel e me dei conta. No desenho, uma moça esguia e alta. Três coisas que eu não era. Quis rasgá-lo e atirá-lo pela janela. Aquele vestido não era para mim, coisíssima nenhuma. A modelista devia ter meia dúzia de modelos de cabeça e usava-os aleatoriamente com a freguesia. No entanto, se o rasgasse, corria o risco de ganhar um novo vestido sem graça. Só que azul.

Fomos à costureira. Ela analisou o desenho, conferiu o tecido, tirou medida daqui e dali, “Pode vir provar na terça”. No dia marcado, experimentei o projeto de vestido, ainda alinhavado. Olhei-me no espelho. Como eu já constatara, nem sombra da moça do desenho. A costureira, percebendo meu desapontamento, tentou aliviar, “Não está pronto”.

Quem não estava pronta era eu. Eu não passava de rascunho. Se o hábito não faz o monge, o vestido não faz a moça. Quanto tempo demoraria para tudo acontecer em mim?

Eu só queria poder ir à maldita festa com minha velha calça Lee.

Usei o vestido no dia, resignadamente. Casamento de quem, meu Deus? Lembro das sandálias de salto, as primeiras, que eu fora autorizada a usar. Não sei que fim levou o vestido. Minhas recordações parecem feitas de retalhos de musseline. Uns coloridos, outros florais, alguns listrados. Como os da loja da 25 de março.

A Velha do Tempo

Depois que minha avó quebrou o braço, virou uma espécie de Moça do Tempo. No caso, Velha do Tempo. Sabia quando ia fazer frio, ou até se ia chover. Dizia que era porque lhe doíam os ossos.

Eu achava aquilo fantástico. Queria também ser uma Menina do Tempo. Saber, de antemão, se o recreio seria no pátio coberto ou se poderíamos brincar na quadra. Se daria para farofar com o Fusca em Santos no fim de semana, ou não. Para isso eu precisaria ter passado pelo ritual da fratura. E jamais quebrei nada, nem mindinho.

Já Vó Pina, não. Lembro de vê-la caída no quintal, perto da escadinha que levava à sua casa, a voz abafada pedindo socorro. Minha mãe a acudiu, e ela seguiu engessada por mais de mês.

Eu achava aquilo uma injustiça. Minha avó nem tinha colegas na escola, para assinar no gesso – outra quimera nunca realizada. Era tradição, a turma inteira rabiscar no gesso do amigo fraturado. Alguns chegavam a guardar, depois, o gesso coletivamente autografado. Hoje fazem uns gessos irrabiscábeis, o que não tem a menor graça.

Inconformada com minha inquebrabilidade, inventei meu próprio braço quebrado. Enfaixei, engessei com gesso de verdade. Descolei uma tipoia, ensaiei gemidos, serviço completo. Apesar do esforço, não convenci. Logo fui desmascarada e tive que arrancar tudo antes do jantar.

O braço engessado rendeu privilégios à minha avó. Ela não poderia fazer muito esforço na lida doméstica. Eu achava aquilo sensacional. Pensava em tudo que eu seria dispensada, caso me quebrasse. Se braço, quiçá o direito, estaria poupada das lições de casa. Um pé imobilizado garantiria o passeio de carro até as casas das tias, nos finais de semana, geralmente feito a pé. Ter osso quebrado me parecia, enfim, excelente negócio.

O melhor, no entanto, era mesmo o superpoder de extra-sentir e prever o tempo, conferido aos ex-quebrados. Mesmo com sol brilhando, se minha avó dissesse que ia esfriar, era batata. Melhor levar o casaco. Seus ossos eram videntes.

Ela morreu na primavera. De repente, no coração do meu avô ficou inverno. Sessenta anos juntos, feito passarinhos. Na maior parte da vida, ele cuidando dela e da casa, nessa ordem de importância. Eu achava aquilo bonito. Ele era brisa. Ela, tempestade. A morte da companheira é fratura exposta que não se vê.

Já não desejo mais quebrar nada, Deus me livre. Nem faço questão de profetizar o tempo. Os sonhos envelhecem, sim. Ou esfriam. Só sinto falta, em minha biografia, do gesso encardido, assinado pelos amigos. Mas não sou mais menina. Fiquei velha no tempo.

De panelas e pressões

arte: Johanna Kindvall

Enquanto lavo a louça do almoço, vejo meu rosto refletido na tampa da panela de pressão. No convexo espelhado, detecto olheiras que não existiam na pré-pandemia. Leio no alumínio: “Clock”. E esse relógio do planeta, que amalucou geral? Para uns, o tic-tac estancou. Para outros, disparou. Para mim, os dois. Envelheci cinco anos em cinco meses. E ainda espero pelo feliz ano novo.

É tanta panela de pressão que explode, leio nos jornais. Sempre tive medo de elas levarem pelos ares minha casa, meus filhos, meus gatos, meus feijões. No planeta azul, a pandemia explodiu, espalhando coronavírus pelos ares. Cozinhar e viver, não parece, mas é perigoso.

E a primeira pandemia a gente não esquece. Fique em casa. Use máscara. Lave a mão. Tire o sapato. Fecha comércio. Abre comércio. Tome cloroquina. Não tome. Pare de contar os mortos. Não pare. Espere a vacina. Não espere. Vá para a escola. Não vá. Ai de mim. Tem dia que eu só queria ser um feijão.

Ensaboo a tampa, invento espuma. Quero brincar de “espelho, espelho meu”. Mas estou pelas tampas com a quarentena. E com tempo de sobra para a louça. Na minha pia não tem pressão, baby.

O quê, dessa cilada sanitária, a gente ainda não sabe, e deveria? O que os livros de História dos filhos dos meus filhos contarão sobre 2020? No ombro de quem Deus chora? Boto tampa e panela no escorredor, para secar. Para o jantar, vou fazer sopa de perguntas com as letrinhas que sobrarem.

Tenho a impressão que este planeta é um imenso caldeirão, a cozinhar lentamente a humanidade. Que nunca fica pronta.

Ovos mexidos

Resolvi fazer ovos mexidos para o café da manhã. Enquanto quebrava as cascas e os deitava na vasilha, lembrei.

Era tradição na escola: no aniversário de alguém, os colegas levavam ovos. Guardados nas mochilas, nos bolsos do avental branco ou embaixo da carteira, com cuidado para não quebrar, até a hora da saída. Época em que se sabia de cor o dia do aniversário do amigo, sem precisar de aplicativo ou rede social para evocá-lo.

Terminada a aula, bastava o aniversariante cruzar o portão para ser alvejado, na calçada e à queima-roupa. Cabelo, rosto, costas, pernas, material escolar – nada era poupado. Uns levavam farinha também, para incrementar a, digamos, comemoração. O coitado da vez se tornava seu próprio bolo. Boa parte da sala aderia ao ataque coordenado. Quem não, ficava apenas de cúmplice na zoação. O ritual da ovação era o “Parabéns a você, nesta data querida” da turma.

Apanho o garfo, espeto de leve as gemas, que resistem. Mostro quem é que manda, elas se entregam. Clara e gema se amalgamam num creme liso, uma pitada de sal.

Havia dois tipos de aniversariante. Os que encaravam a homenagem com bom humor e, resignados, nem corriam, facilitando o bombardeio e abreviando o suplício. E os que não suportavam a humilhação. Pediam, em vão, socorro ao bedel. Tentavam fugir. Logo eram alcançados e a ovada, mais intensa. Eu admirava os resignados. Tinha sabedoria naquela atitude.

Ao chegar em casa, após deixar o rastro de meleca pelas ruas do bairro, o filho-omelete era recebido pela mãe furiosa. Só ela sabia a trabalheira que a aguardava. Inconformada com o desperdício – quantas tortas não dariam aquela dúzia de ovos? –, providenciava desinfetante com xampu para os cabelos, botava o uniforme de molho no sabão, oh fedor. E orava para que, no próximo ano, os colegas se esquecessem da data.

Levar ovada, no entanto, não era para qualquer um. Era preciso algum nível de popularidade na escola. Uma bela ovada era sinal de respeito e consideração. Ninguém virava gemada ambulante à toa.

Derreto um pouco de manteiga na frigideira, despejo os ovos batidos e assisto à lenta solidificação. No filme da minha vida devo ter, sem querer (ou não), editado algumas partes. Se tive o privilégio de feder a ovo no dia das minhas primaveras? Aí é que está: não me lembro.

Espeto minhas recordações com o garfo, elas resistem. São elas quem mandam, porém: delas não sai quase nenhum registro imagético dos meus aniversários antigos. Festa, presente, gente em casa, balões coloridos, nada. Nem de quando criança, tampouco de adolescente.

Logo eu, que tenho memórias para dar e vender.

Talvez eu só precise quebrar as cascas.

Street view

street view
ilustração: Zansky

Na quarentena, sem poder saracotear, dei para passear de carro. Não no meu. No do Google. Do meu sofá, abro o Street View e lá vou eu. Sigo pelas ruas (quase) como se estivesse nelas. Dobro a esquina, faço o retorno e, feito a Calcanhoto, presto atenção em cores que não sei o nome. Não é a mesma coisa, mas andar no carro do Google tem suas vantagens. Posso parar, de repente, e ninguém buzina atrás. Posso dar o zoom que meus olhos não são capazes. Andar na contramão à la volonté. Nem gasto combustível. E o melhor: posso ficar um tempão na frente de algum lugar, só olhando, sem levantar suspeitas.

Como ontem. Em um clique, fui parar na rua onde nasci, a cento e quatorze quilômetros do meu sofá. Outra vantagem: pensou, está lá. Não deixa de ser uma espécie de teletransporte. Meu Deus, o futuro chegou e eu nem percebi.

Estacionei em frente à pequena vila onde morei por trinta e três anos. Sua entrada não era tão feiosa como agora. Ou sempre foi e nunca me dei conta. Uma entre tantas vilas da Mooca. Quatro casas geminadas, a nossa era a 1. As câmeras do Google não alcançam lá dentro, mas lembrei-me dos vizinhos da minha infância. Não deixa de ser um misto de teletransporte com máquina do tempo. O passado do futuro chegou, Bello.

Na casa 2 morou, por pouco tempo, a Rosana. Alguns anos mais velha que eu, éramos amigas. Um dia, ela chegou toda feliz, havia comprado o LP do Ruy Maurity. Sem antes falar com a mãe, porém. Apanhou feio, ouvi tudo.

Na 3, a Elizabeth. Moça doce e bonita, que costumava levar uns safanões do marido. Fiquei triste quando eles se mudaram. Tempos depois, a encontramos no Mappin. Quis perguntar do marido brucutu, achei melhor não. Também viveram ali o Marcos, meu quase-amigo, e sua mãe Julieta. Ela morreu em casa, o velório foi na sala e eu achei estranhíssimo.

Dona Antonia e Seu Manoel na casa 4. Os únicos na vila que tinham telefone, cujo número ainda me recordo: 92-6405. O cachorro Lulu, que mancava de uma pata. Contavam que alguém jogara água fervendo no pobrezinho, que zanzava livremente no bairro.

Ainda com os olhos emprestados do Google, vi as três casas da frente, que davam fundos para a vila.

A da Dona Amália, mãe da Tunheta – apelido ruim para Antonieta. Garota diferente, tinha dificuldade na fala e sofria bullying, antes mesmo de isso se chamar bullying. Ela gostava do meu irmão. Embora dissessem que também gostava do Osmar, outro vizinho. Nunca foi correspondida.

A do Seu Inácio e da Marilisa. Ela e minha mãe eram muito amigas, num tempo em que vizinhas conversavam pelo muro. Uma vez, eu estava doentinha e o caçula dela foi me visitar, levando um presente. Um bichinho recortado em espuma. Eu tinha cinco anos, ele também.

Por fim, a do Tenente. Certa vez, minha irmã estava com os amigos na porta da vila, colada à casa dele. Não se sabe qual sua motivação, mas ele veio mostrar para a turma um LP do Kansas, que acabou morando na nossa vitrola por muito tempo. Até hoje, ouvir “Carry on wayward son” tem mais ou menos o mesmo efeito do Street view.

Aboletada no banco da frente do carro do Google, fui observadora invisível de um bairro inerte. Surpreendi-me mais uma vez com a feiúra e sem-graceza da entrada da vila. Não vi ninguém aparecer n’alguma janela, para eu dar um alô. Melhor assim, não conheço mais ninguém.

“Podemos ir embora?”, pedi ao motorista do Google. Igualmente invisível, o silente cúmplice de meu passeio virtual-memorial.

Um clique e estou de volta ao sofá. Entre saudade e lembrança, a dúvida. Afinal, a Tunheta gostava do meu irmão ou do Osmar?

A primeira TV em cores

tv cor

A humanidade já se dividiu entre quem tinha TV em cores e quem não tinha. Quando a nossa chegou, concluí: não éramos mais pobres.

A Semp, moderna e formosa, substituiu a velha Telefunken preto-e-branco na estante na sala. Sentadinha no sofá de curvim, eu acompanhava a saga do casal Regina Duarte & Francisco Cuoco em “Selva de Pedra”. Morria de vontade de saber como eram, de verdade, as roupas das moças. Nos anos 1970, as cores ferviam nos guarda-roupas. Pela Telefunken, só restava imaginá-las. O enredo tinha que ser muito bom.

Então, meu pai fez a surpresa e agora eu poderia ver a Lucélia Santos coloridona, em “A Escrava Isaura”. Lerê, lerê. Didi, Dedé, Mussum e Zacharias me fazendo rir em azul, verde e vermelho nas tardes de sábado. Lembro do meu pai exclamar, diante da tela de vinte polegadas: “Que espetáculo de imagem!”. Os ajustes, porém, continuavam a acontecer da mesma forma. Meu irmão no telhado, ajeitando a antena, e alguém na sala, informando, “Piorou!”, “Melhorou!”, “Agora o 5 está ruim!”.

A programação contava com meia dúzia de canais, é verdade. Mas a diversão já ganhara significativo upgrade. E a gente falava “tv a cores”. Eu era grandinha quando a nação brasileira descobriu que o certo era “tv em cores”. Para meu pai, porém, não fez a menor diferença. Fiel à antiga expressão até hoje, por vezes ele a customiza e solta um “tv à cor”, assim, com crase.

A Semp durou muito. É certo que, depois de um tempo, ela passou a viver mais no conserto do que em casa. Era coisa corriqueira, meu irmão descendo as escadas com o trambolho nos braços, ajeitando no carro pra levar na Colortel. Semana seguinte, a bichinha estava de volta. Até o próximo (ou mesmo) problema. Eu, que não entendia lhufas de eletrônica, só pensava que “tubo” deveria ser uma coisa complicadíssima.

A televisão mudou tanto, que nem deveria mais se chamar assim. Smartphone é TV. Tablet é TV. Computador é TV. A TV está em todo lugar, virou uma coisa só, tudo junto e misturado. Uma espécie de deidade da comunicação, o Santo Pixel a nos guiar. A TV é muito maior que a TV.

Assisto, com leve assombro, a facilidade que meus filhos têm para desejar substituir seus aparelhos: quero celular novo; quero computador novo; quero tablet novo. A Telefunken – que tinha seletor manual e eu gostava de virar de uma vez, só para ouvir o barulho, tráááá – me viu dar os primeiros passos, entrar na escola, aprender a escrever. A Semp acompanhou minha adolescência inteirinha, conheceu o primeiro namorado, ao vivo e em cores. A seguinte, que eu não me lembro a marca, estava presente quando comemorei meu primeiro emprego, e também quando meu mundo ficou preto-e-branco por um instante, na primeira demissão. Coitadas das TVs de hoje, de vidas tão breves. Culpa da Nossa Senhora da Obsolescência Programada. Nem comento com meus filhos, para não ouvir, “Ai mãe, você é tão século passado”.

Admito, tenho saudade das nossas velhas TVs. Grandalhonas, pesadas, com muitos botões e poucas funções. Eram uma porcaria em termos de tecnologia, e a culpa por essa saudade tem nome: nostalgia. É gostoso lembrar delas como parte não só da mobília, mas da família. Saber que suas transmissões estão, indelevelmente, inscritas em minha biografia. Mesmo com a dura constatação que, apesar das tardes de sábado colorizadas, nós ainda continuávamos pobres, pobres, pobres de marré deci.

Os ipês da quarentena

ipês dom pedro

Lua minguante, Sol em Câncer. Temperatura: vinte e quatro graus. Pressão atmosférica, umidade relativa e direção do vento em boas condições. Máscara e álcool gel: checked. Fui, então, ao shopping.

Todo mundo sabe que meu pai só usa Crocs. Não adianta lhe presentear com o mais fino par de sapatos em cromo alemão. Ele quer o Crocs e zéfini. O dele estava velho demais, a sola careca, um perigo. Não teve jeito.

Está bem, está bem. Jeito, havia. Era só comprar pela internet. Mas eu queria dar um passeiozinho fora do eixo supermercado-farmácia, minha invariável rota nos últimos quatro meses.

O shopping montou um esquema drive-thru no estacionamento, ao ar livre. Tratei tudo com a vendedora, pelo WhatsApp. Retirei os novos pisantes do Seu Tonico sem sair do carro. Missão concluída com razoável segurança, para que eu não me transformasse em uma usina de Covid-19.

Então, me dei conta: é julho, e os ipês-rosa estão escandalosamente floridos. Florir é atividade essencial, não pode parar. O estacionamento do shopping, repleto deles, vira um espetáculo nessa época do ano. E eu, em casa, perdendo. Não perdoo o Coronavírus por (mais) isso.

A cidade tem respeitável coleção de ipês. Rosa, branco, amarelo. Eles seguem seus calendários particulares, revezando-se nas florações e fazendo seu trabalho, alheios à pandemia. Como se nos dissessem também, “Continuem sendo o que vocês são”.

Fiquei ali, em breve contemplação. Para a passarada local é só mais um inverno.

Os Crocs ficaram grandes. De novo, tratei com a vendedora pelo WhatsApp e, dia seguinte, voltei para trocá-los. De dentro da minha cápsula protetora, admirei os ipês mais uma vez. Juro que não errei de propósito.

Falando de Vinicius

falando de amor

Dona Odila era a professora de Português. Usava um penteado démodé, e tinha gestos e falas formais demais para cativar a audiência adolescente do ginásio. Certa vez, estudávamos o Romantismo. Como lição de casa, deveríamos pesquisar e trazer para a aula seguinte um texto, de qualquer gênero e época, sobre o tema.

Não tive dúvida: copiei no caderno, caprichando na caligrafia, a letra de “Falando de Amor”.

Se eu pudesse por um dia,

esse amor, essa alegria,

eu te juro, te daria,

se pudesse esse amor todo dia

Foi na adolescência que descobri, pra valer, Vinicius de Moraes. O amigo do meu irmão nos emprestava seus LPs e nós gravávamos, em um tape-deck da Polyvox (bom pra chuchu), nossos próprios greatest hits, em antológicas fitas K7.

De vez em quando, depois das aulas, as amigas iam em casa, passar a tarde ouvindo música. E houve um tempo que a tríade sagrada – Vinicius, Toquinho, Tom – dominava a playlist. O que não era muito comum para garotas de treze anos. Eu decorava as canções, os sonetos, e me transportava para aquele universo idílico.

Dia seguinte, mostrei meu trabalho à professora. Dona Odila parecia encantada. Repetiu em voz alta alguns versos para a classe, marcando bem as palavras que caracterizavam a pauta da aula: amor, coração, alma. Reparei que ela, deleitada, até suspirava em algumas partes.

E, justo quando me descobri fã e dei para amar Vinicius, ele inventa de morrer. Era 9 de julho de 1980. Fiquei desolada, numa espécie de orfandade. Ou viuvez.

Choro eu, o teu cantor,

chora manso, bem baixinho,

nesse choro falando de amor

As K7 me consolaram. Hoje, aquele acervo que escorria sentimento mora no Spotify. O importante, ao final, é que o amor não morra. São quarenta anos sem o Poetinha. E a certeza de que a Dona Odila, naquele dia, estava, sim, apaixonada.

A rebelião das bolsas

bolsa

Uma a uma, foram todas descendo do armário.

Liderando a marcha, a vermelha de franjas. Claro, sempre foi a mais espalhafatosa. Em seguida, a preta com estampa de Fusca (até ouvi a buzina). Depois, a amarela com um gatinho de óculos. A de camurça cor de laranja. A de crochê marrom que veio de Natal, a coloridona que ganhei da cunhada, a azul que combinava com o céu no dia em que a adquiri (e o fiz justamente por isso).

Antes que eu pudesse reagir, alinharam-se sobre a cama, tirando satisfação. Queriam saber que história é essa de elas não saírem mais de casa. Há cento e seis dias minhas bolsas estão confinadas no guarda-roupa, exiladas, feito os batons no banheiro. Ameaçaram um movimento organizado de fechos-éclair e inquiriram, desconfiadas, com quem eu estava saindo. Então, a cinza, que já foi meia dúzia de vezes para o conserto (pudera, custou setenta reais), delatou, não sem uma nota de ciúme: “Ela agora só sai com aquela pequenininha metida, que não cabe nada”.

Vi, então, que era hora de ter uma conversa com elas. Papo reto. Mandar a real.

Falei da pandemia. Do Coronavírus. Da quarentena. Das máscaras. Das UTIs. Dos caixões.

Expliquei que, assim como tenho me esforçado para ficar em casa, elas precisam ser pacientes. No sentido de ter paciência, não de ir para o hospital, Deus nos livre. Que no hospital nem teria lugar para elas.

A bolsa cor de vinho – que a vendedora insistiu, o tempo todo, em chamar de ‘marsala’ – era, nas últimas semanas, a minha preferida no mundo pré-pandêmico. Cabe de tudo, da sombrinha às pequenas compras do dia-a-dia. Jaz, coitada, pendurada na entrada de casa desde março. Estamos em julho. Ensaio toda semana dar-lhe um banho, está empoeirada. Tenho medo, no entanto, de botar a mão lá dentro e encontrar elementais morando ali. Sei lá, uma família de gnomos, uma turma de duendes. Não quero incomodar. O banho fica para o pós-pandemia.

A pequenininha que elas falam é decana. Adquirida, en passant, num salão de beleza que nem existe mais. Eleita para a quarentena, nela mal cabem a chave do carro, o celular, o cartão do banco enfiado na capinha da CNH. Forçando um bocadinho, o mini-frasco de álcool gel também.

Logo eu, que costumo, nas bolsas, trazer o mundo comigo. Creme para mãos, carregador de celular, caderninho, caneta, batom, lenço de papel, Neosaldina, óculos de sol, óculos de grau, mini-lixa de unha. Há anos tenho o costume de ter, para eventualidades, uma pinça. Confesso: jamais usei.

Nas ruas, mais mulheres desbolsadas. Onde levam suas tristezas, agora? Algumas andam para lá e para cá como se tudo estivesse normal. O medo, eu sei, vai a tiracolo. A desconfiança, rente ao corpo. A incerteza pesando nos ombros. A pandemia é uma bolsa sem alça que o mundo terá de carregar por mais algum tempo.

Ao final, as bolsas desistiram da intentona. Resignadas, retornaram aos seus lugares. Mas brigaram para ver quem ficaria na frente nas prateleiras, parecem crianças. Pedi que confiassem em mim. Logo, voltaremos a passear juntas. Fechei a porta do armário, sentei-me aos pés da cama e veio uma ligeira vontade de chorar. Não tenho ideia de quando, nem como, será esse logo. Eu só queria que todos estivessem bem, como estamos aqui em casa.

Dizem que, depois dessa enrascada sanitária, sairemos transformados como pessoas. Leio coisas inspiradoras, sobre sermos menos consumistas, mais conscientes, mais solidários e empáticos.

Tenho dúvidas, embora torça e me dedique, pessoalmente, a isso. Por enquanto, a única certeza é que na minha bolsa não vai mais ter pinça.

O exílio do batom

batom
Abri o armário e os vi: tão quietinhos. Desde o começo da quarentena, não passo mais batom. Para ficar em casa, não faz sentido. Na rua, emporcalha a máscara. Ficaram lá, então. Exilados no cestinho. Minha paleta labial, antes tão diversa, agora exibe único tom: boca original. Nada de beijos coloridos por aí. Aliás, nada de beijos.

Nas ruas, um exército de bocas ocultas e descoloridas murmuram um apelo uníssono: Deus nos ajude. No mercado ou na farmácia, minha dupla de destinos recorrentes, passo pela gôndola dos batons. Não paro para ver as novidades. As novidades do noticiário calam fundo. Sigo direto para a seção de produtos de limpeza, meu novo affair.

Em meu armário, mexo nos batons para acordá-los do sono profundo. Estão do mesmo jeito que os deixei da última vez que foram acionados. Quando mesmo? Ah sim: última sessão de psicanálise presencial, há noventa e três dias. De lá para cá, uma fina camada de pó se instalou sobre as tampas. Passo-lhes um paninho umedecido, penalizada. Por eles, por mim, pelos vivos, pelos UTIzados, pelos mortos. É tanta coisa que minha boca sem cor quer falar.

Não são só meus batons que sofrem o exílio compulsório. Anéis, colares, pulseiras, brincos. Parafernália de acessórios tão estimados que, de repente, perderam significado. Tenho medo de que os furos da minha orelha fechem. Não dá para usar brincos e máscara ao mesmo tempo. E seriam mais objetos a passar pelo banho da água sanitária. Melhor que todos permaneçam arquivados por tempo indeterminado.

Sem utilidade por não sei mais quanto tempo, só me resta usar os batons para escrever bilhetinhos ao marido no espelho do banheiro. Antes que percam a validade, estenderei as missivas aos que estão confinados comigo, nos espelhos da casa inteira. Tomarei as paredes todas também com escritos em vermelho-medo, malva-estupor, laranja-susto. Há em meu armário batom suficiente para redigir uma novela.

Não garanto o final feliz.

Mappin, venha correndo

violão

Anos 80, ganhei um violão. Cheguei no Conservatório Leopoldo Miguez e fui logo avisando o professor: “Quero tocar como o Paulinho Nogueira”. Ele deu um longo suspiro, e iniciou as aulas teóricas. Brevíssimas, pois abandonei o curso assim que ele me fez solfejar. Duvi-de-o-dó que o Paulinho Nogueira tenha começado solfejando.

O violão fora adquirido no Mappin. A maior loja de departamentos de São Paulo era um alucinante formigueiro de nove andares, especializado em financiar sonhos de todo tipo, com o mantra “crédito automático”. Nem precisava de promoção para viver cheio. E quando tinha, não havia quem não ficasse sabendo, pela TV ou pelo rádio.

Mappin, venha correndo

Mappin, chegou a hora

Mappin, até meia-noite

Mappin, é a liquidação

A cada andar, aboletado em seu banquinho redondo, o ascensorista anunciava, enquanto comandava o abre-e-fecha das portas do elevador: Eletrodomésticos… Moda feminina… Cama, mesa e banho… Crediário. Imagine falar isso o dia inteiro, subindo e descendo, sem saber se lá fora era sol ou chuva. Ascensorista, contudo, era profissão mais que necessária, para garantir a segurança dos fregueses e a ordem do estabelecimento. Praticamente extinta, quase não se vê mais.

Naquele dia, fomos eu, a Rô, minha melhor amiga, e o pai dela. Ela também estava adolescentemente determinada a aprender a tocar violão. Experimenta daqui, testa dali, elegemos o Giannini: cabia nos braços e nos bolsos dos nossos pais. Mil cruzeiros, em três vezes no carnê. Todo dia 10, íamos pessoalmente à Praça Ramos de Azevedo pagar as prestações. Os ascensoristas, infalíveis: Eletrodomésticos… Moda feminina… Cama, mesa e banho… Crediário…

Depois da minha frustrada experiência no conservatório, eu e a Rô descolamos um professor particular. Ele dava aulas em sua casa e tinha unhas compridíssimas – levemente asquerosas – , somente na mão direita. Temi precisar manter aquele layout também, cogitei abandonar o instrumento. Mas o método pedagógico dele era interessante, espécie de fast-food musical. Em pouco tempo aprendemos a dedilhar “Como é grande o meu amor por você”, a romântica açucarada do Rei. Treinei os acordes à exaustão, fiquei craque. Submetia todos em casa a longas e desafinadas audições. Família é pra essas coisas.

Com as noções básicas aprendidas, encerrei a temporada de aulas com o professor de unhas compridas e virei consumidora das revistinhas com cifras. Sem, no entanto, jamais chegar aos pés do Paulinho Nogueira. Minha versão de “Menina”, nem a família se dispôs a ouvir. Tudo tem limite.

Um dia, não sei por que, guardei o violão no armário. Para nunca mais. E não sei onde ele foi parar. O Mappin fechou as portas na virada do século, soube que agora é loja online. O que não tem a menor graça, cadê o formigueiro, as vitrines, o burburinho? A Rô partiu faz tempo. Seu pai, alguns anos depois. Foram, como se diz, para o “andar de cima”. Que tenham sido conduzidos por gentis ascensoristas.

A vida também é feita de departamentos. Só não sei em qual setor a gente paga o carnê da saudade. Acho que esse não se quita nunca.

O velho conservatório continua firme no mesmo endereço. E todos os dias um professor recebe um novo aluno, decidido a ser, não um Paulinho Nogueira, que essa turma não o conhece (e não sabe o que está perdendo), mas a próxima celebridade do Tik Tok.

Se me dissessem hoje que o Mappin, o velho Mappin, reabriu no mesmo lugar, do mesmo jeito, eu ia correndo. Ah, ia.

Sagu

sagu

Fiz sagu.

Enquanto despejava na panela cheia d’água os grãos crus, tão redondinhos e branquinhos, lembrei do presépio montado todo dezembro, quando eu era criança. Parecem as microbolinhas de isopor que a gente usava para decorá-lo, fazendo de conta que era neve. Presépio que se prezasse tinha que ter neve.

Minha mãe era craque no sagu. Usava o vinho mais barato que tinha. De vez em quando, colocava pedaços de abacaxi no meio. Foi um dos deleites gastronômicos da minha infância, ao lado do nhoque de batata e do bolo nega-maluca. Eu gostava de morder as bolinhas, uma a uma, adorando-as na boca como a um deus. Deus Sagu.

No doce pronto, as bolinhas cozidas ficam todas juntas, grudadas. E, ainda assim, mantêm-se separadas umas das outras. Deve haver alguma metáfora importante nisso, que eu não sei qual é.

Da primeira vez que fiz sagu em casa, meu filho perguntou, antes de provar: Que gosto tem?

Não sabia se respondia que, na verdade, sagu tem gosto de nada, que não passa de uma fécula boba, e que o vinho e o açúcar é que são o segredo, ou se contava que sagu tem gosto de assistir minha mãe, avó dele, fazendo casaquinhos de tricô na Lanofix, para vender. Ou que tem gosto de ouvir o LP da novela Selva de Pedra na vitrola, a Françoise Hardy murmurando lindamente “Je ne sais pas qui tu peux être, Je ne sais pas qui tu espères”. Tem gosto, talvez, do chão de caquinhos vermelhos do nosso quintal. Ou até gosto de encapar os cadernos novos da escola com plástico xadrez.

O importante é que ele gostou. Ele que faça suas próprias associações ao sabor do sagu, quando for mais velho. É isso que os doces nos ensinam, não?

Se a tradição do sagu está mantida, a do presépio, não. Talvez por medo de os gatos comerem ou quebrarem as peças. Talvez porque tenha perdido a graça, mesmo. Ou porque não há mais necessidade de inventar neve. Presépio bom é presépio dentro da gente.

Sagu é barato, ordinário. Porém, se vou a um restaurante e tem sagu de sobremesa, “de cortesia”, já colocado em potinhos de alumínio ou plástico, o self-service por quilo vira, na hora, fino bistrô. Sagu é um doce luxo memorial.

Já fiz sagu com vinho caro, não contei a ninguém. Gourmetizei a lembrança. Já errei a medida, deu um panelão que durou mais de uma semana.

É que sagu rende muito. Feito a saudade da gente.

Pijamas

pijama
ilustração: Karolina Pawelczyk

O dinheiro para roupas novas era curto. Solução: descolar um tecido aqui, outro ali, e inventar modelitos para minha mãe costurar. Vestido, blusa, calça, saia, conjunto.

Eu deixava Dona Angelina doidinha. Além dos modelos que via na TV e pedia para ela copiar, eu criava os meus. Alguns, irrealizáveis, davam uma trabalheira danada. Como se eu fosse uma arquiteta maluca, projetando estruturas que a engenharia jamais sonhara. Outros, ela tirava de letra. Não havia técnica que não dominasse. Era bom ter mãe costureira. Embora, adolescente, tudo que eu desejava era usar Pakalolo e Soft Machine.

Lembro da saia mídi de lãzinha marrom que usei com botas de caubói. Do vestido branco, igual ao da mocinha da novela das sete, com gola que abria de lado e faixa do mesmo tecido na cintura (usei-o em um casamento em Jacutinga). Da blusa azul-céu com pala frisada e golinha padre, desenhado em inédito desvario de recato. Da camisa amarela com ajuste de botão no quadril, que ficava subindo e era deveras irritante. Do macacão lilás de popeline, que passeou comigo por São Paulo inteira. Do colete feito de sacaria. O colete, meu Deus! Meus avós faziam panos de prato para vender. Vô Paschoal buscava no Bresser os sacos de algodão, aqueles de armazenar cereais, e os alvejava no tanque – o mesmo tanque onde minha avó, em passado tenebroso, afogava os filhotes recém-nascidos da nossa gata. Os sacos ficavam branquinhos da silva, uma beleza. Então, os dois passavam os dias cortando, fazendo bainha e bordando com linhas coloridas. Vendiam bem, na feira. Uma vez, pedi para minha mãe um colete de saco, na cor original, sem alvejar. Ela fez umas franjas no próprio tecido, dando à peça uma pegada riponga. Perfeito para a adolescente bicho-grilo que fui. Fiz relativo sucesso na escola.

Daria meu reino para ver, em algum arquivo perdido na memória, aquelas roupas todas. As imagens que guardo são difusas, sempre falta um pedaço. Talvez, hoje, eu me surpreendesse com os estilos que adotei ao longo da vida.

Em época de ficar em casa compulsoriamente, se viva Dona Angelina fosse, eu lhe pediria para fazer uns pijamas. De flanela, bem quentinhos. Não inventaria moda, só os básicos. Pijamas que me vestissem como um abraço dela. Pijamas mágicos, antivírus e antitristeza. Com botões de avançar no tempo. E que me fizessem sonhar, à noite, com dias melhores.

Eu não passo desta noite

Já que, vira e mexe, alguém na família desenterra essa história e, considerando que meus filhos sempre perguntam um ou outro detalhe dela, melhor registrá-la devidamente e de uma vez.

Meu primeiro pileque, aos doze, quase treze, foi assim.

Réveillon de 1979 para 1980. Família reunida, fartura na mesa: tender enfeitado com abacaxi, castanhas, uva Itália. Iguarias que só apareciam nessa época do ano. A casa 1 da vila era só alegria. Nas taças, a velha Sidra Cereser que a gente chamava de champanhe.

Durante os comes, não me contentei com a irrisória franquia do pseudoespumante a que eu, caçula, tive direito. Enchi a taça. Brinquei com meus irmãos, zanzei pelo quintal, catei algum gato, botei um LP na vitrola. Mais uma tacinha, que mal tem? Que gosto será que tem whisky? Meio forte. Tudo bem, é quase ano novo. Mais uma Sidra, mais um Drury’s. Drury’s! Diante da minha epifania alcóolica, Seu Tonico e Dona Angelina só observavam. Havia sabedoria na atitude deles.

Cinco, quatro, três, dois, um, adeus ano velho! Só mais um tiquinho de Sidra. Que tudo se realize no ano que vai nascer, muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender. Lá pelas tantas, a família se recolheu para merecido descanso. Eu dividia o beliche com minha irmã. Não me lembro como cheguei à cama de cima. Em meu desvario etílico, Morfeu me aguardava, com o Eno na mão.

Meu estômago adolescente, acostumado a Ki-Suco e Guaraná, estranhou as novidades. No meio da madrugada, a fatura chegou. Foi como a erupção de um furioso (e fétido) vulcão, vindo montanha, ou melhor, beliche abaixo.

Os Franco acordaram, assustados.

Acode a mini-ébria, traz pano de chão, pega desinfetante, limpa o rebosteio, troca o pijama. Enjoada, eu me revirava, agora, na cama de baixo. Cedida pela minha irmã que, por pouco, não fora atingida pelos meus, digamos, dejetos estomacais. Foi ali que cunhei o bordão que, segundo familiares, eu repetia de minuto em minuto, em profética gemedeira: “Eu não passo desta noite”.

Não só passei como, no dia seguinte, debutando na ressaca, fui obrigada a encarar o sintético sermão da minha mãe: “Agora você aprende”.

A pedagogia deu certo. Desde então, nunca mais coloquei uma gota de whisky na boca. Não que eu seja abstêmia. Mas é comum vinho sobrar em minha taça. Nos formulários médicos, nunca sei o que responder. Deveria existir uma zona intermediária entre “nunca bebo” e “bebo socialmente”. A verdade é que não vejo muita graça.

Já vi, porém. É mister anotar que o porre inaugural na infância não foi o único. Na juventude, contabilizei uns dois (três?). Em um deles, conta a lenda que, ao deixar um boteco com minha irmã e amigas, saí pelas ruas da Vila Madalena, virada no vinho, e sentei-me sobre um latão de lixo na calçada. Pedi para me deixarem ali, pois aquele era o meu lugar.

Sempre dramática.

Régua T

regua t

De adolescente, vivi inúmeros conflitos típicos da fase. Amores não correspondidos, absorventes que vazavam, vergonhas infinitas, medos diversos, dúvidas esparsas. Poucos, no entanto, se igualaram à tragédia de carregar uma régua T, diariamente.

Aos quatorze, cismei que seria arquiteta. Influência evidente da irmã, que já trilhava o caminho.

Achei por bem optar por um colegial técnico, para chegar à faculdade de arquitetura mais azeitada. Avaliei os cursos disponíveis e, determinada a ser a versão sardenta do Niemeyer, escolhi Edificações.

Uma das melhores escolas do ramo: Liceu de Artes e Ofícios, no bairro da Luz. Do outro lado da cidade. Encarei o vestibulinho. Passei, que felicidade! Eu estava razoavelmente familiarizada com os materiais que minha irmã usava em seus trabalhos, papel vegetal, escalímetro, caneta nanquim, normógrafo e a própria régua T. Não tinha ideia, porém, do que me aguardava.

A Wikipedia assim a define:

Régua T é um instrumento próprio para desenho técnico. Assim como a régua paralela, é utilizada para apoiar o esquadro ou para traçar linhas paralelas quando apoiada na mesa de desenhos. Possui em média 80 cm e normalmente é de madeira com detalhes em acrílico. É uma régua de forma da letra T, e tem como benefício ajudar o desenhador durante o desenho.

Em meu dicionário particular, o significado é outro:

Régua T é um instrumento de tortura, causador de sofrimento extremo. Não à toa, seu formato lembra uma cruz. Sua função, além de auxiliar na produção de desenho técnico, é fazer a pessoa que a carrega passar vergonha, onde quer que esteja.

Com oitenta centímetros de comprimento, praticamente metade da minha altura, não havia mochila ou pasta que a coubesse. O jeito era levá-la nas mãos. O que também não era simples. Seu formato de espada a transformava em uma quase arma. T de trambolho. T de troço. T de tranqueira. T de traumático. T de tridente – o Diabo, certamente, inspirou-se nela.

Da Mooca, eu tomava o 3104 que me deixaria na Praça da Sé. De lá, metrô até a Estação Tiradentes. Na volta, descobrira um ônibus direto, com percurso mais curto, porém mais lotado. Ao menos, a régua T só enroscaria em uma catraca.

Considerando que sou dotada de apenas duas mãos, e enquanto uma delas tratava de agarrar as barras para garantir minha estabilidade no coletivo chacoalhante, a outra eventualmente abraçava os livros (só fui ter mochila mais tarde). De modo que faltava a terceira mão para tourear minha cruz, digo, régua T, que insistia em esbarrar nos passageiros, alguns em pleno cochilo. E, eventualmente, uma quarta, para alcançar a cordinha e informar o motorista que eu desceria no próximo ponto. Depois de “com licença”, “desculpe” era meu vocábulo mais empregado durante o trajeto.

Então, eu compreendi o calvário de Jesus Cristo.

Junto à régua T, geralmente eu levava um canudo de papelão, do mesmo tamanho da régua, com os desenhos. Para facilitar o transporte, eu prendia os dois com elásticos. O que, aparentemente, parecia uma solução inteligente, apenas dobrava minha tragédia. O canudo escapava, os elásticos rompiam, a ponta da régua cutucava a cabeça dos passageiros sentados. Acabei ganhando uma espécie de bolsa de ombro, carinhosamente confeccionada por Dona Angelina, com modelagem customizada capaz de acondicionar, razoavelmente, a régua. Mesmo sendo levada no ombro,  o infortúnio continuava.

Foram três anos de flagelo.

Eis que, quando o curso estava prestes a ser concluído, comuniquei à família: não vou mais fazer arquitetura. Quiseram saber o porquê. Expliquei que já tínhamos uma arquiteta na família. Que eu flertava com a publicidade há algum tempo. Que me dedicaria a ser a versão sardenta do Washington Olivetto.

Só não contei tudo. A razão, claro, foi a régua T.

Água e sabão

bolha sabão
arte: Guenevere Schwien

A brincadeira consistia em 1) jogar bastante água no quintal, 2) espalhar um pouco de sabão em pó e 3) ficar escorregando pra lá e pra cá a manhã toda.

Diversão da qual eu, caçula, não era autorizada a participar. Minha irmã e meu irmão mais velhos, privilegiados pelo tempo, deslizavam pelo chão vermelho de caquinhos, felizes da vida. Eu só assistia. E desejava, com toda determinação que garotinhas de quatro anos são capazes, crescer logo para entrar naquela farra também.

O quintal, pequeno, tinha bom formato para a pista ensaboada. Na lateral estreita, quinze metros, no máximo, os tombos não importavam. Eram, aliás, a melhor parte. Com direito a adrenalina extra: ao final do corredor, havia uma bela escadaria que dava para o portão de entrada. Se mal calculada, a brincadeira poderia acabar em choro. Ou coisa pior. E quem se importava?

Um dia, enquanto meus irmãos capotavam, às gargalhadas, meu pai me chamou na porta da cozinha, que dava para o quintal. Abaixou-se um pouco e me olhou, sério. Pediu que eu tirasse a blusa. Era de botões, eu me lembro. Fiquei só de calcinha, já vislumbrando o anúncio. Ele desfranziu o cenho e, sorrindo, proclamou o tão sonhado alvará: “Vai!”.

Finalmente, eu estava liberada para a epifania aquática. Já não era mais criancinha, então. Joguei-me naquele pequeno parque de diversões caseiro. Imitei o quanto pude meus irmãos, veteranos do sabão. Acatei suas dicas, Ó, faz assim, Olha a escada!, e nunca me diverti tanto.

Era a água e o sabão, lavando a alma dos três filhos de Antonio e Angelina.

Nina, a neta caçula deles, lembrou esta semana de quando sua escola montou para a turminha do maternal uma lona ensaboada. Pediram até para levar biquíni. No fim da tarde, quando a busquei, vi em seus olhinhos castanhos e nos cabelos molhados: foi dos dias mais alegres que ela passara ali.

Será que transmiti a ela, em algum gene, a experiência do pequeno quintal? Hereditariedade é mesmo um barato.

Pandemia

virus

Doutor Fuad era o médico da família. Sisudo, tinha implante capilar e voz grave. Tratava de tudo e de todos. Da diabetes da minha avó à minha catapora. Seu consultório ficava na avenida Sapopemba, só indo de ônibus. A portinha na calçada, permanentemente aberta. Uma longa e reta escada dava acesso à pequena sala de espera. Sem recepcionista, nem TV ou revista velha. O atendimento era por ordem de chegada, em fila gerenciada pelos próprios pacientes. Diziam que aquele era seu consultório para os pobres, com consultas a preços módicos; os ricos eram tratados em um bairro chique, distante dali. Certamente, com recepcionista, TV e revistas novas. No da Sapopemba, nenhuma possibilidade de passatempo para crianças como eu que, dependendo do dia, aguardariam horas para serem examinadas.

Certa vez, reparei na plaquinha pendurada na parede, a pedir: “silêncio”. Naquela tarde, ela foi minha salvação. Silenciosamente, brinquei de formar palavras com aquelas letras. Sol, lince, sino, liso. E, como eu inventara a brincadeira, inventei também as regras; podia duplicar letras ou não utilizar alguma, se assim conviesse. Assim, conseguia formar mais palavras. Sócio, colo, leciono, sono. De repente, eu era uma fábrica de anagramas.

Nesta quarentena, é como se eu também me encontrasse num tipo de espera, mas pelo momento de retomar a vida normal (o que é normal?). Estou, não em uma sala de espera, mas em uma casa de espera. Nela, aguardo as boas notícias, enquanto recebo as más. Confinada, com TV na palma da mão e revistas virtuais do mundo inteiro e, graças!, café. Recorro, então, ao passatempo que um dia me salvou. Que anagramas possíveis existem para pandemia? Essa palavra que não é nova, mas se tornou mortalmente incluída no vocabulário do mundo inteiro? Essa, inscrita em uma plaquinha invisível, grudada em todas as paredes da minha casa, da sua, tatuada na minha pele, na máscara estranha que uso para ir ao supermercado, nos meus pensamentos e, eventualmente, meus sonhos também? (Sonhei que encontrara uma prima que não via há décadas, dei-lhe um abraço e pus-me agoniadamente a repetir, feito autômata, “Meu Deus, peguei!”.)

Da palavra pandemia, extraio “pai”. O meu, aos oitenta e oito anos, vive inédita situação de não poder visitar, nem ser visitado. Leitor de jornais, mantém-se informado e arrisca suas teorias conspiracionistas.

Sigo no passatempo e, em pandemia, encontro: “aipim”, “empada”, empada de aipim. Minhas horas na cozinha, em um mês, já superam as do ano passado inteiro. “Andaime”. Na volta do supermercado, passo pela obra na avenida e avisto homens trabalhando, rindo e conversando. Sem máscara! “Piedade”: peço a Deus por eles, por nós. Finalmente: “nada”. Eu sei, nada será como antes.

Esta não é uma crônica de Páscoa

P1020370 - Copia VÔ PASCHOAL NOV1958
Vô Paschoal – arquivo pessoal

Era grandinha, já, quando liguei os pontos: o nome do meu avô vinha do nome do feriado do coelhinho.

Cresci chamando e falando do Vô Paschoal, sem nunca juntar lé com cré. O que não fez, depois, a menor diferença. Uma coisa era o dia de ganhar ovos de chocolate; outra, completamente distinta, era meu avô. O filho de imigrantes italianos, de sorriso largo e gargalhada fácil. Torcedor inabalável do Palmeiras. Que mal sabia escrever, mas dominava os números. Que todo santo dia, depois da laranja finalizadora do almoço, tirava a sesta, sentado na poltrona, braços cruzados sobre o peito. Que inventava traquitanas, elétricas e mecânicas, para tudo em casa. Que perdeu parte do dedo em um acidente de trabalho nos Moinhos Minetti Gamba, na Mooca, e eu tinha certa aflição daquele toco sem unha. Que gostava de gato e cachorro, mas fazia de conta que não, porque minha avó detestava. Que ia em duas feiras diferentes, só para aproveitar os preços das frutas. Que pegava o carrinho de mão e saía para comprar tijolo e cimento e areia na Casa São Pedro, na rua Teresina. Que tinha um exército de santos num altar sobre o guarda-roupa, iluminado com um sistema que ele próprio instalara, e que eu morria de medo. Que nunca ficava doente. Que subia no telhado para verificar as calhas, mesmo depois do 90º aniversário, e nunca aconteceu nada, porque os anjos todos eram seus chapas. Que morreu numa véspera de Carnaval. E não de Páscoa.

Sendo assim, esta não é, nem de longe, uma história de Páscoa. Não deixa de ser, no entanto, pascoalina. A língua tem seus caprichos.

Meu avô tinha um armário cheio de ferramentas e uma pequena bancada de trabalho no nosso quintal. Eu era encantada com a morsa. Um dia, lhe pedi madeira, serrote, prego e martelo. Queria fazer uma cama para minha boneca Vivinha. Ele parou seus afazeres – ele sempre tinha afazeres, não parava quieto – e providenciou. Ensinou-me a usar os aparatos todos. Não sem algumas bufadas impacientes quando eu fazia algo errado, como entortar prego ou serrar fora da marcação.

Eu não tinha ideia da beleza daquilo: avô e neta martelando, serrando, construindo juntos. A gente nunca sabe direito a real importância das coisas. Só quando elas vão parar, feito quadro raro, na galeria da memória.

Depois da caminha, peguei gosto e o resto da mobília da boneca veio: armário, sofá, mesa, cadeira. Não podia ver um toco de madeira dando sopa. Tão fácil, a marcenaria! Não ficava perfeito, nem muito bonito, é verdade. Mas a Vivinha até que levava uma vida confortável.

Eu devia ser a única garota da escola que tinha, à disposição, um arsenal ferramenteiro daquele em casa. E um avô talentoso, apelidado pelas primas de Professor Pardal. Em paralelo às bonecas e coleção de papéis de carta decorados, eu também me divertia com porcas, parafusos, brocas, limas, colher de pedreiro, enxada, cal, cimento, brita, gesso. Sabia a diferença entre chave de fenda e de boca. Lugar de menina também é, por que não?, na oficina.

Meu avô me chamava de “joia rica”. Achava engraçado. Não era nem joia, tampouco rica. Carinhoso a seu modo, ele afagava meus cabelos e ria das minhas molecagens. Embora não fizesse questão de esconder: o preferido era meu irmão mais velho. Primeiro e único neto homem. Ganhou uniforme completo do Palmeiras quando pequenininho. Minha irmã e eu, não. Porque menina não jogava futebol. Mas podia brincar com serrote e plaina e parafuso à vontade. Pirraça inconsciente ou não, fui corintiana por alguns anos.

Seu Paschoal era dono de coração enorme, simpatia maior ainda. Religioso, era grato à vida simples que tinha. Onde quer que tenha renascido, está contando piada, ajudando alguém ou inventando alguma engenhoca.

Desconfio que o feriado é que leva o nome do meu avô, e não o contrário.

A salada de pepino do meu pai

pepino

Ninguém faz salada de pepino como meu pai. Ninguém. Não que Seu Tonico arrase nas artes culinárias. Ele é MasterChef de um sucesso só. Ao menos, para a caçula aqui.

Desde meus tempos de criança, ingredientes e modo de fazer são (ou eram) os mesmos, seguidos à risca. Eis a receita para criar um clássico.

Para começar, ele nunca usou tábua de cortar. O pepino caipira, nu, se encaixava em sua mão esquerda. A direita, munida de faquinha comum, tratava de fatiá-lo em finíssimas e consecutivas rodelas, que iam despencando harmoniosamente na bacia. Sempre sem casca. (Não me venham, nutricionistas de plantão, bradar a importância dos nutrientes da casca nos processos digestórios, nem adeptos do consumo consciente dizer que não pode desperdiçar comida. Pepino do Tonico é sem casca e zéfini.)

Por cima da multidão verde-clara, apenas a tríade mágica: sal, vinagre e azeite. Nada de pomposidades como azeite de primeira prensagem de azeitonas gregas, vinagre de uvas Trebbiano, flor de sal extraído da Normandia, ervas esquisitas ou outra coisa. O segredo ancestral era simples, bicho: o velho sal Cisne, vinagre Palhinha e azeite Maria, a mãe das saladas da minha infância. Que nem azeite era.

Algumas rodelas escapavam do padrão super fino e saíam levemente mais grossinhas. Quando eu encontrava uma, fazia de conta que era prêmio. Quem disse que comer legume é chato?

Também nunca entendi por que pepino é sinônimo de problema. Se dizem, “Rapaz, que pepino!”, certamente é de coisa boa que estão falando.

A salada de pepino do Seu Tonico é (ou era), em si, o cardápio inteiro: entrada, prato principal e sobremesa. Um espetáculo sensorial, arregimentando visão, olfato, paladar e felicidade. Felicidade também é um sentido, meu bem.

Jamais consegui reproduzi-la. Ora erro na espessura das rodelas, ora exagero no sal. Talvez isso não passe de autossabotagem, só para perpetuar a iguaria paterna no rol da fama. Importante que continue, portanto, incopiável.

Quis terminar dizendo que, assim que passar essa quarentena maluca (um “pepinaço” mundial, para os que preferem a conotação negativa do Cucumis sativus) e as coisas voltarem à alguma normalidade, vou trazer Seu Tonico aqui em casa. Para que reproduza, em almoço comemorativo, a tradicional salada, que não provo há tanto tempo. Mas, na verdade, eu não quero.

Receio que, se ele a fizer, o resultado não seja o mesmo que alimentou, tão saborosamente, minha criancice. E se ele mudou o jeito de fatiar? Se inventar de salgar menos? A preocupação com o sal é diretamente proporcional à idade. Se, lá no meio, eu não encontrar nenhuma mais grossinha? E, mais temível que tudo: se a primeira frase desta história não fizer mais sentido?

Melhor não arriscar, e manter a sagrada salada bem guardadinha na geladeira de conservar lembranças. Aquela, que não deixa nada estragar.

Quando a quarentena acabar, vou convidá-lo para almoçar aqui. Direi: “Pai, hoje eu faço a salada”.

Por garantia.

Wanda

casa antiga desenho

Chique era a Wanda. Longos cabelos estilo pantera, óculos escuros tipo Jackie Onassis. Bem vestida, a qualquer hora. Morava ao lado da nossa vila, na casa dos meus sonhos.

Acompanhe comigo, com olhos de Google Maps: rua, calçada, casa da frente da vila, área comum da vila, nossa casa na vila. Essa era a extensão da casa da Wanda, cujo limite coincidia com o da nossa. Cinquenta metros no total. Uns oito de largura. Casarão, para os modestos padrões da Mooca da minha infância. Nos fundos do terreno, exatamente ao lado da nossa casa, um pomar.

Completando a quimera, a Wanda. Moça bonitona e, na minha avaliação, rica. Moderna, tinha carro e dirigia. Nada lembro do marido. Nenhum registro sequer em minha memória. Se alto, baixo, feio, bonito. Nada. Não tinham filhos, mas cachorro: Gueibin. Não sei como se escreve. Gaybin? Gabin? Um cachorrão deste tamanho, alegre e saltitante. Eu os via e ouvia chamando o peludo para lá e para cá, Cuidado com o portão!, Para, Gueibin!, Não deixa ele sair! Da mesma forma, nunca soube: Wanda com W ou com V? Nunca conversamos.

Gueibin era da raça setter irlandês. Jamais brinquei com ele. Quando eu passava na rua, em frente ao seu portão, nunca o via. Não era cão autorizado a latir para carros e gentes. Pena.

Antes de eles se mudarem para essa casa, havia outra vizinha. Uma senhora, cujo nome não me recordo. Só sei que dava jabuticabas para nós, por cima do muro. Depois que ela se mudou, o muro cresceu, a Wanda veio. Adeus, jabuticabas.

Nossa casa da rua Natal era pequena, ampliada na base do puxadinho. Eu passava bastante tempo pensando nas casas do bairro onde eu gostaria de morar. A da Wanda era a campeã. Em segundo lugar, um sobrado bacana na rua Jaboticabal, com pomposa rampa ligando o portão à porta de entrada. A janela da sala era um espetáculo: de parede a parede, do teto até quase o chão. A da nossa sala era tão mirrada. Para piorar, dava para o tanque de lavar roupas, no quintal. Por isso, quase nunca ficava aberta. A porta, então, fazia as vezes de janela também. Somada a outras limitações, não é de admirar que eu tenha dedicado tanto tempo sonhando com as casas do pedaço.

A única janela que me conectava ao mundo externo – fator de grande frustração – era a do quarto da minha mãe, que dava para a vila. Meu observatório geral de fundos de casas e telhados e horizontes, em um bairro predominantemente térreo, ainda imune à especulação imobiliária. Apenas ouvia os ônibus, as motos, o vendedor de biju, o sorveteiro. Dali, via a Wanda saindo. A Wanda chegando. A Wanda ralhando com o pobre Gueibin, que devia aprontar as suas.

Se viva for, Wanda deve beirar os setenta anos. Mais, até. Será que ainda usa óculos escuros? Será que tiveram filhos, netos, bisnetos? O Gueibin, se foi papai naquela época, talvez esteja na centésima geração. Que centésima o quê; tricentésima. Quem sabe já não topei, por esse mundo e sem saber, com um descendente seu, rolando n’alguma grama, batizando poste?

Depois que Wanda, marido e Gueibin se mudaram de lá, um japonês comprou a casa. O homem não era sofisticado, não usava óculos escuros. Nem cachorro, tinha. Ainda por cima, trocou o delicado portão de madeira da frente por outro, feioso.

Namorei um rapaz que tinha um setter irlandês. Como gosto de inventar reencarnações para os bichos, não demorou para que eu estabelecesse a conexão. Nunca confessei ao namorado, mas houve vezes em que cochichei ao ouvido do cão, como se segredo nosso fosse: “Eu sei que você é o Gueibin”.

Passou “Um peixe chamado Wanda” no Telecine. Aquele, dos anos 1980. Eu poderia fazer um filme também, “Uma vizinha chamada Wanda”. Nele, uma garotinha sardenta narraria, em primeira pessoa, suas filosofações sobre janelas, memórias e jabuticabas. Seu melhor amigo seria um cachorro. Igualzinho ao Gueibin.

Wilson

O ano? Não me lembro. Estávamos no Primário, hoje Fundamental. Ao subir as escadas, estranhei os colegas no corredor, quando deveriam estar na sala de aula. Ninguém correndo ou fazendo bagunça, que seria o normal. Uns com olhar espantado, outros conversando baixinho. Perguntei o que havia acontecido. Um deles contou: O Wilson morreu.

Wilson era da nossa classe. Oito, nove anos? Fora atropelado na rua Florianópolis, onde morava, enquanto brincava. Caminhão, disseram.

Até então, nenhuma criança, que eu tivesse conhecimento, havia morrido naquele nosso pedaço da Mooca. Tão perto de mim. O ineditismo da morte pegou-me de jeito. Um estranhamento, uma tristeza recheada de susto.

Não fui ao seu enterro. A professora deve ter ido. As aulas continuaram sem ele. Seu nome era o último na chamada. Que ficou mais curta.

Daquele dia em diante, a cada vez que eu passava pela sua rua, pensava nele. (Ninguém sabe, mas até hoje, se acontece de eu passar por ali, penso.)

Não que fôssemos grandes amigos. Pouco sabia dele. Se assistia Família Dó-ré-mi ou se preferia Perdidos no Espaço. Para qual time torcia. O que gostava de pedir na cantina na hora do recreio. Não conhecia seus pais. Mas era alguém que eu via todo santo dia útil, entre cadernos e livros e provas de matemática e brincadeiras no pátio. De repente, nunca mais.

A morte, às vezes, pode marcar mais que a vida.

Não há uma fotografia dele sequer em minhas recordações da escola, já procurei. Para lembrar de seu rosto, preciso me concentrar. Então, ele surge por alguns segundos, para logo se misturar com os de outros colegas e desfazer-se em uma imagem difusa. De concreto, apenas isto: Wilson, meu colega de classe no Primário, morreu. Tinha oito, nove anos? Caminhão, disseram.

Nota: devo registrar, a título de assossego interno, que quando recebi a notícia dos colegas, ali no corredor, talvez por distração, ou por não ter ouvido direito, entendi outra coisa. Algo como o professor ter faltado, que não haveria aula. Soltei, para espanto geral, um infeliz “Graças a Deus!”. Só depois me dei conta do vexaminoso mal-entendido. Por instantes, e apenas por instantes, fui a sem-coração da turma.

Fritz

Anos 80. Meu irmão chegou em casa com o bichinho em uma caixa, todo feliz. Meu irmão, não o bichinho. Comprara de um rapaz no centro da cidade. Agora tínhamos um papagaio.

Vai se chamar Fritz. Providencia gaiola, põe no quintal, “para ele ver o movimento”, cuidado com os gatos, não é pra ensinar palavrão.

O tempo passava, e nada de Fritz falar.

Meu irmão lembrou que, durante a negociação, questionou o tamanho e a aparente mudez da ave. O vendedor justificou: “É novinho, ainda”.

A engabelação é uma arte. Anunciado como papagaio, Fritz era, na verdade, maritaca. Que fala, mas em maritaquês. Não foi, porém, empecilho para que tivéssemos altos papos, meu amigo verde e eu. Reclamava se a gente passasse por ele e não lhe desse bom dia, boa tarde, boa noite. Nós gostávamos dele. E arrisco dizer que Fritz gostava da gente, numa espécie de síndrome de Estocolmo.

Um dia, sem mais, nem menos, Fritz se mandou. Não se sabe como conseguiu abrir a gaiola. Diz meu irmão que estava perto, e nada percebeu. O fato é que, depois de anos, ele cansou-se dos Franco. Fugiu sozinho, sem ajuda. Por próprio mérito. ‘Maritocracia’.

Ontem as maritacas do bairro estavam particularmente barulhentas. São tão livres, tão felizes. Quando elas aparecem, não há como não lembrar do velho Fritz. E da nossa crueldade, ao mantê-lo em injusto cativeiro. Uma vergonha maior que a de comprar gato por lebre. A ignorância é um tipo de gaiola.

Desculpa, Fritz.

Quem me ensinou a nadar

De elemento água, não sou. Como autêntica taurina, meu negócio é terra firme. Nem wet, nem wild.

Reza a lenda que, em certo passeio a Santos, fui derrubada por monstruosa onda. Certamente, nada além de uma marola júnior. Para uma garotinha de dois anos, no entanto, devastador tsunami.

Costumo contar o episódio para justificar a paúra das águas. Eu, de costas para o mar, olhando minha mãe na areia. Vem a danada da onda e me dá um capote. O resto é história.

Não entro em barco, já empaquei atravessando pinguela, nunca enfio a cara no chuveirão. Houve uma vez, no entanto, em que o trauma pareceu arrefecer.

Tapiratiba, final dos anos 70. Visitando parentes do meu pai, a turma resolveu ir à cachoeira. A sardentinha aqui vestiu-se de coragem e foi no embalo. Afinal, não era possível que as águas fossem assim tão terríveis. Nem que nadar fosse coisa tremendamente difícil. Disposta a viver, ali, minha história pessoal de superação, entrei em suas águas calmas, onde as quedas se transformavam em piscinão. De roupa e tudo. A Isabel, esposa do Tião, quis certificar-se que eu sabia nadar. “Aham!” – respondi, determinada.

Quem me ensinou a nadar

Quem me ensinou a nadar

Foi, foi, Marinheiro

Foi os peixinhos do mar

Primeiro (único) tchibum e Oxum surgiu, rindo da minha esdrúxula performance aquática. Eu era uma espécie de peixe fora d’água – só que ao contrário. Afundei, me debati, engoli água. Avistei a Dona Morte se aproximando, metida em um maiô grafite estampado com foicezinhos em verde neon, querendo me levar para um rolê. Foi quando a Isabel percebeu que aquilo não estava indo muito bem.

“Tira a menina da água!”, “Puxa o braço!”, “Tião, ajuda aqui!”.

Salvamento realizado com sucesso. Minh’alma encharcada. O rolezinho ficou para depois. Quando, enfim, recuperei o fôlego, a Isabel estava inconformada: “Mas você não disse que sabia nadar?”.

Muita autoconfiança aos dez anos de idade dá nisso. Insisti que sim, eu sabia nadar. E completei, para incredulidade dos presentes: “Eu treino na cama”.

Foi assim que protagonizei, talvez, a melhor piada da família. Lembrada até hoje nos encontros e festinhas.

Minha sorte é que, naquela época, não existia internet.

Horóscopo

Minha avó gostava de ouvir o Omar Cardoso no rádio. Todo santo dia. Embora não fosse assim tão crente em previsões astrológicas, dona Josephina não perdia um programa. Ligava o aparelho na cozinha, bem alto, e ia cuidar da louça, da roupa, da casa.

Eu, por tabela, ouvia também. A voz empostada do radialista servia de trilha sonora para minhas manhãs, enquanto me divertia no quintal. A escola era só à tarde. Vez por outra, prestava atenção ao que ele dizia. Áries, seja mais assim. Câncer, seja menos assado. Peixes, dia propício para isso. Gêmeos, melhor evitar aquilo. Em minha meninice, achava que fazer horóscopo era um bocado divertido. Bastava inventar as coisas.

No quintal da minha infância, tão imenso, dava para brincar de balanço, esconde-esconde, de professora (dei muita aula para alunos imaginários; será que se formaram?), de casinha, andar de bicicleta, ter cachorro e gato e tartaruga, construir móveis para a boneca Susi com as ferramentas do meu avô. Cabia mesa e cadeiras, de vez em quando almoçávamos ali.

Não pode ser o mesmo quintal de quando me mudei de lá, quase duas décadas atrás. Tão estreito, tão apertado. Hoje, tão silencioso. Onde cabia a vida de todos nós, cabe nem meu choro. Algumas tralhas amontoadas, esperando o destino que nunca vem. Fechada há anos para morada dos vivos, agora a casa 1 da vila deve ser lar de almas que não podem pagar aluguel. Casa tem signo?

Éramos sete: meus avós, meus pais, meus irmãos e eu. Cinco signos diferentes. Toda família é uma salada zodiacal.

Certa vez, o Omar Cardoso anunciou uma tal pedra da lua. Que tinha poderes terapêuticos, energéticos e tal, uma beleza. Pois minha avó fez que fez, e só sossegou quando meu avô comprou a dita cuja. Deve ter custado uma fortuna. Que eu saiba, não serviu para nada.

Meu avô a chamava de Zéfina. Os parentes, de Pina. Eu achava ‘Josephina’ tremendamente feio. Ainda mais com ph. Só fui simpatizar com o nome depois de ler “Mulherzinhas” e saber que o nome da personagem principal, a porreta Jo March, era Josephine. E há quem diga que livros não são importantes.

Minha avó faria aniversário esta semana, dia 6 de novembro. Ela era de Escorpião. Um tantinho venenosa, feito o temido artrópode. Longeva, no entanto; viveu 81 anos. O que os astros lhe reservaram, no dia em que morreu? Omar Cardoso teria profetizado, “É hoje, Zéfina”.

De acordo com o horóscopo que acabo de estabelecer, hoje, sexta-feira, oito de novembro, passado e presente estão em harmoniosa conjunção. Bom dia para cavoucar as lembranças. Tenho uma constelação delas no céu do meu peito. Sou Touro com ascendente em saudade.

Olhe bem, preste atenção

Não falem mal da musiquinha do Fantástico. Ao contrário do que pregam os resmungadores convictos, ela não marca o velório do fim de semana amado, idolatrado, salve, salve. Nem o prenúncio da desgraçada segunda-feira.

“Olhe bem, preste atenção”

A musiquinha dominical é o lembrete tranquilizador de que semanas sempre terão fim, e começo, e fim, e começo, num implacável círculo de dias. Não estamos falando de musiquinha qualquer, mas de uma das mais longevas composições registradas na memória do povo. Um clássico da MPB, goste ou não.

Apesar das inúmeras regravações, até hoje é a mesma base melódica que ouvi na noite daquele cinco de agosto de mil novecentos e setenta e três, quando o programa estreou. Eu tinha seis anos. Como não gostar? Como ser capaz de maldizê-la? É quase meio século no ouvido, bicho. Suas notas estão tatuadas em meu DNA. Fazem parte da trilha sonora afetiva da minha vida. Por isso, rogo: não falem mal do Fantástico.

“Nada na mão, nesta também”

Naquele domingo, os Franco se reuniram em frente à Telefunken para assistir, em preto-e-branco, ao novo programa. Época em que apenas meia dúzia de canais faziam a alegria da gente. Eu, alfabetizanda, juntei as dez letras garrafais da vinheta e descobri seu significado. Nas semanas seguintes, decorei a musiquinha e passei a fazer coro com a Vanusa.

“Nós temos mágicas para fazer

Assim é a vida, olhe pra ver”

Não falem mal do Fantástico. Que é chato, que é da Globo, pipipi, popopó. Nada disso importa, nada disso o destrói. O Fantástico é aquele parente velho que você pode até não ir com a cara, mas precisa respeitar.

Um dia, demos adeus à Telefunken. Era o progresso, chegando à casa 1 da pequena vila da Mooca. Pudemos, então, ver tudo, tudinho em cores. O programa e eu crescemos juntos. Queria ser a Heloísa Millet, tão linda e brilhante. Gostava da Zebrinha dando os resultados da loteria esportiva, “Coluna do meio”... Suspirei de amores infanto-platônicos pelo Sergio Chapelin. Achei esquisito a Isadora Ribeiro emergindo da água com aquelas coisas na cabeça. Lamentei quando a musiquinha perdeu a letra.

Aos domingos, logo que anoitece, o Luca, meu filho, pergunta: “A gente vai ver Fantástico, né?”. Adolescente, sei que ele gosta mais do rito que do programa. Nossa TV é bem mais smart que a velha Telefunken. Aliás, nem precisaria de TV para assistir. Ele, então, senta-se ao meu lado. Nessa hora, sei direitinho o que minha mãe, sua avó, sentia quando eu fazia isso.

Tanta coisa mudou. Tanta coisa não mudou.

Deve ser esse, o show da vida.

Voltinha

“Fusca com família”, Gustavo Rosa

À noite, meu pai pegava a chave do Fusca, dava uma chacoalhadinha no chaveiro, olhava pra nós e já sabíamos: dia de dar voltinha! O destino? Nenhum. O programa era a voltinha. Breve ou longa, dependendo do nível no tanque e da disposição do Seu Tonico, único motorista da família. Ele e minha mãe na frente; nós três, os filhos, atrás. Rodar pelos bairros, só pelo prazer de andar de carro. Uma espécie de peregrinação a Santiago de Compostela sobre rodas, onde o caminho é mais importante que o fim.

Desde que me entendo por gente, tivemos carro em casa. Nem por isso o encantamento se esgotava; não era sempre que o usávamos. Matinê no Cine Comodoro, para assistir a “Uma janela para o céu”? Ônibus. Visitar a Vovó Carmela na Vila Diva? A pé. Tia Zinha, em Mauá? Trem. Passear de carro, para meus poucos anos de vida, ainda era acontecimento recheado de novidade e finesse, coisa de gente rica.

A discussão era sobre quem iria nas janelinhas. Geralmente, Seu Tonico e Dona Angelina ajudavam nos pitacos. Negociações feitas, lá íamos. Sem cinto de segurança, que nos anos 70 a gente mal sabia onde ficava. Era comum o item permanecer enroladinho em um elástico, tal qual saíra da fábrica. Acho até que o Fusca nem tinha. Nunca sofremos acidente. São Cristóvão era nosso chapa.

Sob o ronco das mil e trezentas cilindradas, a gente pedia para meu pai passar aqui e ali, ou seguia a esmo, guiados pelo nada. Eu gostava das avenidas, dava para correr mais. Quando era minha vez,  aproveitava a janelinha particular (para o céu?), decorando a cidade e treinando a leitura nas placas. Torcia para passar em frente à casa de alguma amiga. Quem sabe ela não me veria e, admirada, diria, “Olha, a Silmara!”. Ah, se nosso Fusca falasse.

Hoje, caso eu sugerisse um passeio assim aos meus filhos, acostumados ao carro desde o bebê-conforto, eu seria bombardeada por questionamentos incrédulos – Pra quê?, Mas aonde vamos?, Que graça tem? – e ganharia debochada recusa a tão besta convite.

São poucas as novidades para quem nasceu neste século, e os encantamentos, outros. Definição de simplicidade, para eles, é uma velha conexão 3G, o pacote básico da Net, pizza sem borda recheada.

Já meu pai, piloto-herói da minha infância, hoje se embanana todo na hora de entrar no carro, confunde as portas, não se entende com o cinto de segurança. Agora, sou eu que o levo passear. O destino, geralmente, é o médico. Para ouvir que está tudo bem com seu motor 8.7. O que não é para qualquer um.

Por pura nostalgia, hei de ter um Fusca. A caçula avisou: estou proibida de buscá-la na escola com ele. Em silêncio, penso: o mundo dá voltas. Deixa estar.

O pato

ilustração: Aimee Marie

Já tive um pato.

Não o que faz quém-quém. Patinho de brinquedo, do tamanho do meu dedão. Todo preto (cinza?), de plástico, desses que param em pé. Uma amiga do primário me dera, nem sei bem por que. Só sei que o brinquedinho simplório e, aparentemente, sem graça, estava sempre ao meu lado. Como um fiel animalzinho de estimação.

Batizei-o, em notório arroubo criativo, de Patolino. Patolino pra lá, Patolino pra cá. Ninguém podia pegá-lo, tampouco desdenhar dele. Eu virava fera, encarnava a pata-mãe furiosa.

Não que não houvesse, em casa, outros brinquedos à minha disposição. Apesar da vida apertada, eu tinha lá minhas bonecas, como a Susi (prima da Barbie, que ninguém conhecia), a Vivinha, a Fofolete, as de papel. Bichos de pelúcia e outros divertimentos, inventados com coisas comuns, como caixinhas de fósforos vazias, pedaços de madeira que sobravam na oficina improvisada do meu avô. Tive também bichos de verdade, muitos. Desde meu primeiro dia de vida neste planeta convivo com eles, em especial os gatos.

O fato é que me afeiçoei ao patinho de plástico, como poucas vezes o fiz a um brinquedo. E podia jurar que o Patolino, pelo teor dos nossos papos (sim, nós conversávamos), também gostava de mim. Fui dando corda a esse antropomorfismo afetivo, sabido e aceito pela família. Até que, um dia, o pior aconteceu.

Vô Paschoal, sem querer, pisou no Patolino. Quem mandou largar no meio do quintal? Quando o vi destruído no chão, e meu avô bufando (para piorar a situação), só consegui recolher o que restara do Patolino, e me recolher à cama para chorar.

Chorei copiosamente a ‘morte’ do patinho como fizera, por tantas vezes, pelos nossos gatos que se iam. Soluçava, lamentando não ter me despedido do Patolino. Condenei-me ao título de criança mais infeliz do mundo, que não sabia como ia viver dali em diante.

Então ganhei outro patinho de plástico. Parecido com o Patolino, só mudava a cor. Não me recordo se foi presente da mesma amiga ou se meu avô, redimindo-se do patocídio culposo e vendo a neta caçula inconsolável, tratou de providenciar. Batizei-o homonimamente em homenagem ao velho amigo, e dediquei sinceros esforços ao novo relacionamento.

Mas o Novo Patolino não era o Velho Patolino. Não se substitui um amigo assim, do dia para a noite. Talvez eu devesse ter dado outro nome. Além disso, faltava-lhe a ânima que o Patolino, em meu julgamento, tinha de sobra. Quem sabe, a diferença não estava nem no pato de plástico, mas em mim. Depois de viver a fundamental e necessária fase de ‘luto’, superei a perda e reconstruí a vida (os dramas infantis são tão imensos!), eventualmente me distraindo com alguma roupa nova, um dinheirinho ganho da madrinha, os passeios a Santos no velho Fusca, os bichos de verdade. E passou.

Patolino brotou na lembrança porque, dia desses, pisei, sem querer, em um pequeno brinquedo de plástico da Nina. Fui checar: um cachorrinho cor de rosa, menor que meu dedinho. Talvez da turma da Polly (neta da Vivinha). Recolhi os caquinhos e joguei fora. Lembrei com carinho do meu velho patinho querido, mas sequer cogitei se aquele cãozinho significava algo para minha filha. Se ela perguntar, jogo a culpa na gata. Ela que pague o pato.

Quem acredita, sempre alcança

– Vai, moço! Corre, que dá!

À nossa frente, o ônibus segue seu itinerário. Na calçada, o moço de mochila nas costas, em desabalada carreira (tão bonito, “desabalada carreira”), tenta alcançá-lo. Falta pouco. Mas pé não é roda, difícil competir. A distância entre os dois aumenta.

No jogo Passageiro Atrasado x Ônibus No Horário, sempre torci pelo passageiro. Testemunhei tantos. A mulher de salto que, sem hesitar, arrancou os sapatos para correr e chegar a tempo no ponto. O senhorzinho apertando o passo, segurando o bolso da camisa, cada passo um palavrão. A ruidosa galera do colégio, que mais parecia estar numa gincana. Eu, de nova, nunca corri atrás de ônibus. E o medo de me estatelar no chão? Fora a vergonha de não conseguir. As pessoas na rua olhando, penalizadas. Vergonha também caso fosse bem-sucedida; os passageiros olhando, curiosos, a menina esbaforida e desajeitada com aquela estranha régua T, apetrecho fundamental nas aulas de desenho técnico.

E o moço correndo, acenando ao motorista que não o vê. Meu carro, logo atrás do ônibus. A gente torcendo e sofrendo: “Vai, vai, vai!”. Só faltava a ola, que não dava pra fazer.

Ele desvia da menina toda fitness com o totó, dribla o buraco na calçada, pula o saco preto de lixo, quaaase!, ih não deu!

Dou sinal de farol para o motorista; ou ele não vê, ou finge que não vê. Prefiro acreditar na primeira opção. Colo no ônibus, buzinadinha de leve. O coletivo nada de diminuir, está quase na praça.

Como corre, o moço 2.0. Pés e fé inabaláveis.

No carro ao lado, quatro rapazes acompanham tudo e, como nós, torcem pelo moço. Resolvem encostar, um deles abre a porta e chama, “Vem!”. O moço, desfolegado, entra. O desespero promove súbita confiança. E se os quatro são frios e calculistas traficantes de órgãos, sedam o pobre antes que alcancem a Lagoa do Taquaral, onde sempre tem viatura da Guarda Municipal, retiram seus rins ali, no banco de trás mesmo, e abandonam seu corpo inerte em um fim de mundo qualquer?

Mas o plano dos rapazes, felizmente, é outro: ultrapassar o ônibus, que segue, alheio a tudo – embora já seja visível certo movimento de passageiros lá dentro. Conseguem! O carro para um pouquinho mais pra frente, o moço desce, vai dar!

Vai nada. O motorista do ônibus nem tchum, passa reto. “Não acredito!” – inconforma-se minha cunhada.

E o moço correndo. Obstinação? Prova na faculdade? Tem professor que não deixa entrar depois. O ônibus não era o trem das onze, mas se perdesse aquele… sabe lá quando viria o outro.

Nosso Usain Bolt parece que vai cortar caminho pela praça para chegar ao próximo ponto antes do ônibus, se é que vi direito. De repente, quedê? Perdemos de vista o velocista mochilão, e o coletivo desaparece avenida abaixo.

Nosso caminho, infelizmente, é outro. Jamais saberemos o desfecho da aventura, pois pequenos, mas não menos importantes, acontecimentos não são pauta para os jornais. Embora devessem. A manchete: “Universitário perde ônibus, sai em desabalada carreira (coisa linda!) e o alcança; comunidade vibra”. Pena, perdemos o final da história.

Perdemos nada.

Cruzamos o bairro. Quem emparelha conosco, por acaso, no sinal?

O carro dos rapazes, com o nosso herói. Pela sua expressão, seus rins estão intactos. E não é que eles vão levá-lo ao seu destino? É caminho, afinal. Não custa. Aposto como ficaram amigos, tiraram selfies, já estão se seguindo no Instagram, combinaram uma pelada para o fim de semana.

É como diz o ditado que acabei de inventar: quem acredita, nem sempre alcança o ônibus. Às vezes, alcança coisa melhor.

Saudade, 7 letras

arte: Ruth Eastman

A Madalena usava um salto deeeste tamanho. Entrava na sala, tec, tec, tec, subia no tablado (toda sala de aula tinha, para reforçar a hierarquia), colocava suas coisas sobre a mesa, apanhava o giz e anunciava, “Cruzadinha, pessoal!”.

Professora de Geografia, a mestre loura de sorriso largo era aficionada por palavras cruzadas. Dava a matéria toda assim. Canal que liga o Mar Vermelho ao Mar Mediterrâneo, 11 letras. Capital do Paraná, 8 letras. Até que era didático. Mas ela abusava do método. A turma virava cruzadista na marra.

Equilibrada em seus Luiz XV impossíveis, Madalena lançava o desafio no quadro-negro (que era verde) e a gente copiava no caderno. Era preciso atenção para não errar a quantidade de quadradinhos. Fiquei craque em desenhá-los, na horizontal e na vertical. Nem usava régua.

Em casa sempre tinha revistinha de palavras cruzadas. De pequena, eu gostava da Picolé, nível café-com-leite. Cresci, passei para as difíceis. Às vezes, dava uma espiadinha nas respostas na última página. Nunca admiti, porém. Trapacear nas palavras cruzadas é mais ou menos como colocar filtro no perfil do Instagram.

As revistas Coquetel seguem resistindo bravamente, mesmo em tempos de internet. São patrimônio do léxico brasileiro. Hoje dá para fazer palavra cruzada online. E qualquer pessoa pode, num clique, criar as suas próprias. Se tem o mesmo charme das antigas, não sei. Nostalgia, 9 letras?

Nostalgia é meu nome do meio. Sou feita de saudade não idealizada. Não é que eu queira reviver o passado. Adolescência, tirando meia dúzia de delícias, é fase esquisita. Não se é adulto, também não se é mais criança. O corpo indefinido, as ideias idem. Tantos medos esparsos, a maioria bobos. Meu desejo era poder, hoje, assistir às cenas vividas, feito espectadora. O filme da minha vida.

Rever os rostos dos antigos colegas de classe, e me ater aos dos que já partiram. Ver as velhas e pesadas carteiras de madeira do primário. O tampo da mesa era emendado ao assento do aluno da frente (quem foi o gênio que bolou isso?), motivo constante de problemas durante a aula, “Professora, fala pro Fulano parar de balançar, assim não consigo escrever!”. Ouvir o sinal do recreio, ver mais uma vez a cantina do Wanderley. O indefectível sanduíche de mortadela no pão francês com Guaraná Caçulinha de todo santo dia. O uniforme das aulas de educação física, meu pesadelo. O salto da Madalena era mesmo assim tão alto? E por onde ela andará? “Ô Ma… Ô Madá… Ô Madalê… Ô Madalelelelena, ô Ma”. Saudade, 7 letras.

Dizem que fazer palavras cruzadas rejuvenesce o cérebro, deixa o raciocínio mais rápido. Eu nunca mais fiz, ninguém aqui em casa tem o hábito. Mas vou montando as minhas, mentalmente. Organizando memórias num grande registro quadriculado, por vezes inexato. E não preciso mais olhar as respostas. Já estou nelas.

Ave, Neutrox

As vacas, em casa, eram magras. E os cabelos, fartos. Não seria o xampu Colorama Ovo que iria deixá-los desembaraçados – missão que cabia ao creme rinse (o avô do condicionador) e que não podíamos comprar. Sofríamos, minha irmã e eu, adeptas das melenas até a cintura. Como abrir mão da cabeleira estava fora de cogitação, o jeito era encarar longas batalhas com o pente.

Minha avó me penteava para ir à escola. Pequenina, eu subia no bidê do banheiro para facilitar seu trabalho. Ela, sem muita delicadeza, puxava meus cabelos com força. Eu reclamava, ela retrucava. Quem mandava ter assim, comprido? Cortasse, oras. Do alto de meus oito anos, eu nada podia fazer, exceto chorar as pitangas para minha mãe, à noite, quando ela chegava do serviço.

Eis que, no fim dos anos 70, a tecnologia nos brinda com algo revolucionário, mágico e, finalmente, acessível: o Neutrox. Botando para escanteio os velhos cremes rinses e inaugurando a era dos condicionadores. Creme amarelo com tampa vermelha. Bastava espalhá-lo nos cabelos depois do xampu e plim!, adeus, nós!

Passei a adorá-lo, como a uma entidade divino-cosmética. Deus Neutrox. Deixava a juba macia e brilhante. Era tão cheiroso que, um dia, comi. E aprendi: nem tudo que o nariz gosta, a língua aprova.

As coisas melhoraram um pouquinho, e em casa nunca mais faltou Neutrox. Outras marcas também chegaram ao nosso toucador. Não satisfeita com a primeira experiência, tratei de provar também o creme Yamasterol “de frutas”, aquele que formava um degradê colorido no frasco. Mas Neutrox era imbatível.

Com os cabelos desembaraçados e macios, faltava o acabamento. Sem secador de cabelos, eu e minha irmã resolvemos improvisar: conectamos a mangueira do aspirador de pó no bocal de saída do ar, em vez do de entrada, e voilá! Cabelos secos em um instante. Meio fedidos, no entanto. A gambiarra, obviamente, não prosseguiu.

Então, em um Natal (acho), ganhamos do Papai Noel um Braun Styler. A última palavra em secador de cabelos. Vinha com pente e escova modeladores, que se encaixavam no bocal. Super prático. Vermelho (ou cor de laranja?), potente, uma belezura. Agora, equipadas com Neutrox e secador, não tinha pra ninguém, meu bem.

Vi Neutrox outro dia, no supermercado. Ícone fundamental da minha biografia capilar. Não tive dúvida; abri um. Resisti à degustação, mas inspirei o quanto meus pulmões deram conta. Nada do cheirinho que um dia me encantou. Por que diabos mudam essas coisas? A fragrância do Neutrox deveria ser tombada pelo patrimônio histórico olfativo.

Três garotas se aproximaram, escolhendo seus produtos. Uma delas apanhou justamente o Neutrox e pôs-se a ler, em voz alta, o rótulo para as outras. Olhei-as e sorri. Duas – as ouvintes – sorriram de volta.

Elas não sabem de quê era feito meu sorriso. Não imaginam que houve um tempo em que aquele creme amarelo já fora o supra-sumo dos salões de beleza, objeto de desejo de dez entre dez cabeludas. Não fazem ideia de que aquele condicionador tem, provavelmente, a idade de suas mães. Nem suspeitam do significado que ele tem para mim, nas minhas longas, macias e penteadas histórias.

O calendário

Ines Hildur

Tinha em casa, quando eu era criança. Depois saiu de moda, nunca mais vi. Aqueles calendários que vêm com dois conjuntos de papeizinhos: um para os meses, com doze, e outro para os dias, com trinta e um. Era só ir trocando o papelzinho, conforme o dia. Um calendário eterno, válido para qualquer ano. O nosso era pequeno, feito em madeira. Se não me engano, havia algum desenho nele. Florzinha ou outra coisa mimosa. Fazia parte da decoração da cozinha.

Era necessário, no entanto, disciplina para mantê-lo atualizado. Alguém deveria, pontualmente, mudar o papelzinho do dia. E, quando chegasse ao trinta ou trinta e um (exceto fevereiro, o diferentão), trocar o do mês também.

O que nem sempre acontecia. Ficava dias sendo o mesmo dia. Meses, até. Março chegava, e ainda estávamos em janeiro. Já o sete de maio eu torcia para nada, nem ninguém, atualizar. Assim seria sempre meu aniversário.

Por outro lado, em meados de 1972, desejei pular direto para o ano seguinte, quando eu entraria no pré-primário. Queria saber como era esse negócio de ir à escola, meus irmãos iam e pareciam tão importantes com seus livros e cadernos e estojos e tarefas de casa. Mas tempo não é de papel. Tempo é de vento.

De tanto serem manuseados, os papeizinhos iam amarrotando e envelhecendo – o tempo também passava para eles. Curiosamente, ao tomar a dianteira no calendário, traziam sempre um dia inédito, um mês novinho em folha.

Não sei o destino que nosso calendário móvel teve. Sumiu. Ou acabou aposentado, substituído pela folhinha de parede, com fotos de gatinhos fofos ou bucólicas paisagens europeias (solares para os meses de verão e nevadas para os de inverno). Uma vez, ganhei de aniversário um relógio de pulso, com calendário automático. Eu não precisava fazer nada. Ele mudava seus papeizinhos sozinho.

Sei que na nossa velha casa o tempo, de certa forma, parou. Fechada há anos, ali o tempo não passa. É sempre o dia em que o último de nós saiu de lá.

Herança

“Under the cherry tree”, Majali

Uma tarde, visitei meu avô. Seguindo à risca seu ritual, ele passou café, serviu a mesa, lavou xícaras e pires, e colocou-os molhados sobre a toalha branca. A garrafa térmica, idem. Não enxugava nunca. Aquilo me dava gastura.

Em meio a histórias de quando trabalhava nos Moinhos Minetti Gamba, gols do Palestra e lembranças da minha avó, ele se levantou e foi até o quarto. Remexeu em seu guarda-roupa e voltou com uma dúzia de cabides. Pretos, de plástico, reforçados. Dos bons. “Fica pra você!”. Disse que não precisava de tantos.

Não era meu aniversário, nem nada. E Vô Paschoal , embora doce, nunca foi chegado a demonstrações explícitas de afeto. Tampouco eu era a neta preferida, posto eternizado pelo meu irmão mais velho. Naquele dia, no entanto, seu carinho estava ali. Multiplicado por doze. E onde quer que eu vá morar, lá estarão os velhos cabides. Não dou, não troco, não vendo, não empresto.

Noutra visita, não sei se antes ou depois, também voltei com presente. Desta vez, uma assadeira. Estava no armário, com algumas menores dentro. Uma matrioska de assadeiras, e eu ganhei a maior. “Sua avó usava muito!”. Por certo, ele considerou importante que eu tivesse uma peça daquela na cozinha. Fato: nela preparo torradas, minipizzas, tortas, pão de queijo. O antiaderente está ligeiramente comprometido. Pudera, são mais de vinte anos, só comigo. Às vezes, as coisas grudam. Às vezes, é a saudade que não desgruda. E onde quer que eu vá morar, lá estará ela. Não dou, não troco, não vendo, não empresto.

Além de uma assadeira e doze cabides, também herdei seu jeito de bufar, revirando os olhos, quando o sangue vêneto lhe fervia. Ah: e o colete cinza de seu terno. Que não me foi dado em vida; catei pra mim quando ele se foi.

Hoje, aliás, é um bom dia para vesti-lo. Pensando bem, hoje também pede pães de queijo para o lanche da tarde. E, de quebra, um legítimo bufar paschoalino pelas notícias dos jornais.

Os furinhos do arroz

Diminuo o fogo, tampo a panela. A superfície do arroz está cheia de furinhos. Lembrei: de criança, pedia para minha mãe fazer “arroz com furinhos”. O mais gostoso do mundo. Engana-se quem pensa que esses miniburacos são resultado de simples fenômeno físico. Há mais coisas nos furinhos do arroz cozido do que sonha nossa vã gastronomia.

Ao lado do fogão, eu vigiava a panela semitampada até que a água começasse a secar, dando lugar à mágica dos furinhos. Na ponta dos pés, espiava dentro deles, na tentativa de descobrir-lhes a razão. Nada via, além dos borbulhos. Se a visão não trazia resposta, o olfato se esbaldava: meu nariz era inundado pelo vapor perfumado do alho, da cebola e do cheiro verde temperando os grãos.

Logo eu me distraía com outra coisa. A gataiada brigando no telhado, a vizinha tocando a campainha, o mandrová na folha da comigo-ninguém-pode. Até ouvir o chamado, “Tá na mesa!”. Eu pedia e, com a escumadeira, minha mãe escavava apenas a primeira camada do arroz, capturando, assim, os furinhos. Que se desfaziam no encontro com o caldo do feijão. Tem comida que é pura oração.

Já o arroz da minha avó, que passou a cuidar dos netos quando meus pais abriram a venda e nela trabalhavam o dia todo, era empapado. Não continha furinhos. Nem sabor. Houve época em que reclamamos. Minha mãe resolveu fazer nosso arroz na venda, entre um freguês e outro, numa cozinha improvisada atrás do balcão, trazendo-o à noite para casa. Sei que ela se esforçou, mas não ficava o mesmo sabor. Quando ela ficou doente e parou de trabalhar, ganhamos o arroz de volta. Eu não sabia se ficava triste ou alegre. Quando ela morreu, perdemos de vez o arroz.

Desligo o fogo, aviso que o almoço está pronto. Meus filhos disputam a escumadeira para ver quem pega primeiro o arroz. Pergunto se está gostoso. Bocas ocupadas, seus olhinhos apertados dizem ‘sim’. Então concluo: os furinhos do ancestral cereal continuam mágicos. Dentro deles cabem presente e passado.

Lembrança é um prato cheio para a saudade.

Batom

Na loja, testei os batons no dorso da mão esquerda. Tão bonitos, assim, alinhados. Roxos, lilases, rosados, vermelhos, alaranjados. Verdadeiro festival cromático. Fui conferindo também o cheiro de cada um – coisa da maior relevância. Quatro sentidos ativados de uma só vez: tato, visão, paladar e olfato. Batom é troço muito sensorial, grudado no imaginário desde sempre.

De repente, um cheiro. Específico, único, arquivado nos confins da memória. O cheiro do batom da minha mãe. E eu não estava doida.

Dona Angelina, devota da cara limpa, por gosto ou falta de recursos, não era de muita maquiagem. Mas um batonzinho ia bem, para alguma ocasião especial. De criança, eu gostava de brincar com os dela. Ela, o desapego em pessoa, deixava. Lembro bem do estojinho, com um mecanismo diferente dos de hoje. Uma pequena saliência ao lado, bastava empurrá-la para cima e o batom brotava do tubinho. Talvez fossem mais baratos. Qual marca, meu Deus? E o indelével cheirinho de mãe arrumada para passear.

Fui apanhando os batons, um a um. De onde vinha aquele cheiro de tempo antigo, macio, quieto, cor de rosa? Numa saudade urgente, passei a abrir os blushes, as bases, as sombras, tudo. Onde, onde?

Então, me dei conta. Que tonta, eu. O cheiro não vinha da coisarada cosmética nas prateleiras da loja. Nem eu louca estava. Foi ela que, num voo etéreo, passou por ali e me deu um beijo.

Mapa

São Paulo, Avenida do Estado. Quase elegante em seu puído terno preto, ele expunha seus produtos no semáforo. Pendurados em seu braço, carregadores para celular. Nas mãos, um mapa colorido da cidade, que ele enrolava e desenrolava feito pergaminho, demonstrando aos fregueses. Era, ao mesmo tempo, vendedor e vitrine.

Mas quem, em tempos de GPS, compra mapa de papel? Quem, que com um clique pode descobrir, em segundos, onde fica a capital da Moldávia, podendo dar zoom e ver tudo em 3D, compraria um mapa de papel, limitado à pobre 2D, que facilmente pode se rasgar, sujar, pegar fogo, ser destroçado pelo cachorro?

Se ainda são feitos, é porque ainda se usam – uma lógica do mercado. Para mim, mistério.

Em casa, tínhamos um guia de ruas da cidade. Grosso, feito em papel bem fininho, mais de trezentas páginas. Para localizar uma rua, primeiro a gente a procurava na lista no começo do guia, com letras desafiadoramente miúdas. Na frente do nome, o número da página onde ela figurava, e uma coordenada alfanumérica, por exemplo, B8. Então, era só ir à página procurar na coluna vertical a letra B e, na horizontal, o número 8. Pronto! Como um tiro do jogo Batalha Naval, lá estava, no quadrante indicado no mapa, o logradouro desejado. Eu brincava de procurar ruas, ainda que não precisasse da informação. Visitava, com especial dedicação, a página onde a minha casa ficava. E via, encantada, o mundo de ruas que havia em torno de mim. Computadores ainda não existiam. Uns heróis, aquele pessoal que trabalhava nas editoras.

Nosso guia, por certo, foi parar no lixo em um dia de arrumação. Mesmo destino das pesadas listas telefônicas, que a Telesp entregava aos assinantes de tempos em tempos, devidamente atualizadas. Tinha a comercial e a residencial. Chegamos a acumular várias edições na estante da sala. Eu até que achava bonito, exibir aquele inventário de gente e negócios tão organizadinho.

No trânsito encalacrado daquela manhã de outono, que no GPS do meu carro aparecia em um desanimador tom de vermelho-raiva, observei as vendas do ambulante engravatado. Apesar da coreografia do abre-e-fecha do mapa, ninguém se interessou. Afinal, para quê mapa, se nesta cidade a população parece estar condenada a um eterno engarrafamento?

Ensaiei abaixar o vidro e perguntar-lhe quantos mapas ele vende em um dia bom – o que significa ruim para o motorista. Procuraria, também, saber o perfil do comprador. Novo? Velho? Homem ou mulher? Talvez, até comprasse um para mostrar aos meus filhos. Mas não deu. O sinal abriu, o ônibus atrás de mim buzinou e eu segui pela Avenida do Estado. Que eu não sei em qual página e coordenada alfanumérica figuraria, em nosso velho guia de papel.

Mocinha

Não gostava quando diziam: “Fulana ficou mocinha”. Ainda não gosto, embora compreenda. Tem palavra mais horrorosa que menstruada? Só genuflexório. Ou locupletar.
 
Também não entendia por que diabos as amigas falavam num tal de Chico para se referir à menstruação. Ainda se fosse Chica. Recusava-me a usar a expressão, antes mesmo de saber o significado.
 

Como eu ouvia as moças conversando sobre absorventes e quetais, ficava ansiosa para que chegasse minha vez. Um dia – já contei essa história – , eu era bem pequena e resolvi colocar um Modess da minha mãe. Os absorventes não eram como os de hoje, ultrafinos, diversos tamanhos, com abas, sem abas, com perfume, sem perfume. Coloquei calça comprida e fui dar um rolê. Voltei rapidinho. Senti-me usando fralda. Joguei no lixo e filosofei: eu era sortuda por não ter que usar aquilo.

Então, chegou o dia de usar aquilo.

Assim que menstruei, minha mãe tratou de me levar ao Dr. Fuad. Era o médico da família, e não ginecologista. Tinha rosto quadrado e implante nos cabelos, o que lhe dava ares de Frankenstein. Gente boa. Lembro de ele ter dito, polidamente, que precisava examinar minhas “partes baixas”. Melhor do que dizer que examinaria minhas “vergonhas”. Muita gente falava (fala) assim. Não à toa que o mundo, para as mulheres, é o que é.

Eu tinha doze anos e, sem saber que estava diante de inevitável suplício hematológico, cheguei a comemorar. Tolinha. Os tempos que se seguiram foram memoráveis. O que não quer dizer que foram bons.

Não sabia, por exemplo, calcular direito a hora de trocar o absorvente. E, para piorar, aquele período era como um rio que passava em minha vida, mensalmente.

Certa vez, na escola, senti que algo saíra do controle. Sem coragem de pedir ajuda à professora de Ciências, ou licença para ir ao banheiro, tentei permanecer imóvel na carteira. A cada movimento, uma respirada mais profunda que fosse, o estrago ficava maior. Era a última aula. Rezei para que a professora não me chamasse à lousa, e Deus, compadecido de minha miséria, atendeu. Enquanto ela discorria sobre os estados da matéria (o líquido eu já sentia, na pele), tive a brilhante ideia de me sentar sobre uma de minhas pernas, para que o fundo da calça não tocasse a cadeira, que era verde-água. Naquele dia, eu usava um mocassim de couro da minha irmã, bem clarinho, pelo qual ela tinha certo xodó. Não sei se o fiz à época, mas revelo agora a razão daquela mancha escura em um deles, que jamais saiu, nem com água oxigenada. Quando o sinal bateu, levantei-me e estiquei, com a força do pensamento, o comprimento do avental branco que usávamos por cima da roupa. Desci a rua de casa correndo, me sentindo o próprio Mar Vermelho.

Eu andava de ônibus para cima e para baixo, em São Paulo. O que, naqueles dias, se transformava em experiências pra lá de constrangedoras. Quando me levantava do banco e dava sinal ao motorista de que eu desceria no próximo ponto, eu tinha cer-te-za de que uma imensa e colorida mancha decorava meus fundilhos, e que todos os passageiros olhavam para mim e cochichavam entre si, caçoando ou com dó da garota com absorvente vencido. Suava frio, sentia o rosto queimar, queria desaparecer. Depois, quase sempre, via que havia sofrido em vão e tudo estava sob controle. Sem controle era minha imaginação. E minha insegurança.

Em compensação à minha inabilidade para, na prática, lidar com a natureza, na família não rolava obscurantismo. Nunca me proibiram de lavar os cabelos, andar descalça ou outras crendices, enquanto estivesse menstruada. Algumas amigas não tinham a mesma sorte.

Aquela “mocinha” dos anos 70 se transformou em senhora. E hoje me pego novamente ansiosa, mas por outro marco biológico: a menopausa. Que, ainda bem, é uma palavra mais bonitinha.

Farofa

Se o tempo amanhecesse bom no domingo, meu pai anunciava: “Vamos!”.

Pega a esteira, o chapéu, não esquece o bronzeador Bozzano, “Mãe, já vou com o biquíni por baixo?”, as toalhas, os sanduíches, o refrigerante, o guarda-sol, a prancha – de madeira, não existia de isopor.

Fusca cheio, vambora. O programa: farofar em Santos. Seu Tonico no volante, Dona Angelina ao lado, eu e meus irmãos atrás. Todos sem cinto de segurança. Deus existe, meu bem.

O Google diz que da Mooca até o litoral são setenta quilômetros. Bom para um bate-e-volta. Como não existia GPS nos anos 70, eu perguntava de quinze em quinze minutos se a gente já estava chegando. Era minha maneira de calcular o tempo e a distância da viagem.

No caminho pela Estrada Velha de Santos, ou Via Anchieta, tinha Cubatão. Ouvia tanta história sobre a cidade, as chaminés das indústrias lançando fumaça preta no ar, dia e noite, crianças nascendo sem cérebro, que esse nome – Cubatão – já havia, para mim, virado metonímia para poluição. Lembro-me também de achar graça no nome de uma rodovia no pedaço, a Pedro Taques, que eu acreditava ser Pedro Táxi. Por certo, um taxista muito famoso.

Ao mesmo tempo que amava passar o dia na praia, comendo salgadinho, brincando com meu baldinho e fazendo castelos na areia, eu também sofria; o sol mandava a fatura. Vermelha como a roupa do Papai Noel, logo eu me encheria de bolhas doloridíssimas. Minha mãe tinha lá suas panaceias para essas horas e, quando a dor passava, eu gostava quando ela – que nenhum pediatra me ouça – as furava com agulha de costura e linha. Era meio nojento quando vazavam. Depois vinha a fase de descascar; uma coceira dos diabos, mas a despelação era divertida. Não existia protetor solar naquela época, só bronzeador – um veneno para minha tez de Branca de Neve. Fui uma criança sardenta, não por acaso.

Certa vez, Seu Tonico estacionou, como sempre, em uma rua próximo à orla. Passamos a manhã na praia e, na hora do almoço, voltamos ao carro. Surpresa: o Fusca havia sido arrombado. Lembro-me da expressão preocupada dos meus pais, contando os trocados que haviam sobrado num cantinho do porta-luvas que passara despercebido pelo ladrão. Se a farofada já estava em andamento, o frango assado estava garantido.

Então, quando fiz seis anos e entrei na escola, meus pais compraram a venda. Como o batente era de segunda a segunda, o fim dos passeios a Santos foi decretado.

Tanta coisa mudou. O advento do protetor solar com fator 50 cancelou as queimaduras e as bolhas. Moro a mais de setenta quilômetros da praia, não entro num Fusca há décadas (suspiro). Na Estrada Velha, agora, só gente e bicicleta. Cubatão, vejam só, deixou para trás o estigma de “Vale da Morte”. O sanduíche da minha mãe é só saudade, e meu pai mal sabe em que dia da semana estamos. Meus filhos não sabem o que é andar de carro sem cinto de segurança, não conhecem Santos, tampouco o prazer da legítima farofagem. E, apesar da minha atual pouca disposição para a dupla mar & areia, minhas lembranças daquele tempo continuam ensolaradas. Arrisco dizer que foram as farofas mais bem temperadas da vida.

Caneta

A professora Genoveva Lé anunciou: “Hoje vocês vão usar caneta para fazer a lição.” Terceiro ano do primário, só dava lápis nos livros e cadernos. A caneta, portanto, representava um upgrade na minha vida escolar.

Fiquei secretamente eufórica. Estava, oficialmente, autorizada a usar a ferramenta de escrita dos adultos – como se meus rabiscos à caneta, em casa, não contassem. Olhei ao redor, os colegas também se sentiam assim? Não importava. Então pronto, eu já era grande. Isso bastava. Quando bateu o sinal da saída e eu cruzei o portão, devo ter descido a rua com expressão igual à da garota do comercial do primeiro sutiã.

A primeira lição à caneta é uma espécie de primeiro sutiã.

Sobre a máquina de costura da minha mãe, onde eu fazia o dever de casa (uma Singer com gabinete, quando fechava virava uma mesa), ajeitei caderno, livro, lápis e borracha para apoio moral, e a Bic azul. E se eu errasse?

O lápis era o cara legal, condescendente com meus erros. A caneta bancava a impiedosa. Com ela, sem o recurso do “branquinho”, que também estava proibido, era como gravar na pedra. Manejá-la demandava certeza. E alguma autoconfiança.

A professora ensinara a fazer tracinhos verticais, paralelos e levemente inclinados sobre a palavra errada, escrevendo a certa em seguida. O que era desvantajoso, pois revelava o erro. Se escrevesse ‘giboia’, ou confundisse um tempo verbal, ela ficaria sabendo. Para disfarçar, o jeito era encher de tracinhos, até que o erro se tornasse ilegível. Quem preferisse, poderia fazer a lição a lápis, e depois passar a caneta por cima. O que levava duas vezes mais tempo e não me parecia um bom negócio.

Nos dias seguintes, quando havia ditado ou problemas de matemática, a turma, na dúvida, perguntava com qual, lápis ou caneta, era para fazer. Crescer, às vezes, carece de confirmação.

Logo depois, fomos liberados para usar as borrachas bicolores, que prometiam resolver o problema das palavras riscadas, enfeiando a lição. A parte vermelha apagava lápis, e a azul, tinta esferográfica. Foi minha primeira decepção como consumidora. Além de não apagar direito, borrava o papel e, às vezes, o rasgava. Mas o importante é que eu havia sido promovida na hierarquia estudantil, deixando para trás o universo das criancinhas dos primeiro e segundo ano. Eu já tinha nove anos, oras.

Depois da caneta azul, pudemos introduzir a verde e a preta. Vermelha não, que essa era reservada à professora. Uma paleta bastante restrita, comparada ao arco-íris infinito das Stabilos de agora.

Hoje, quando digito no smartphone ou no notebook, é como se eu escrevesse a lápis o tempo todo. Escrevo, apago, reescrevo. Tenho à disposição uma borracha mágica, invisível e eficaz, que nunca acaba. E o melhor: não deixo rastro. Isso quando não sou corrigida automaticamente – o que pode ser tanto o céu como o inferno, mas essa é outra história.

Tecnologias à parte, a verdade é que as canetas seguirão registrando o mundo. E sempre haverá uma garotinha secretamente eufórica usando uma pela primeira vez.

Mãos ao alto

Como havia vinte e cinco anos que eu não era assaltada, a vida achou que estava na hora de quebrar esse jejum.

Estacionei na rua, para quê pagar estacionamento, não é mesmo?, fui fazer o que eu tinha que fazer, voltei, abri a porta do carro, entrei, ajeitei a bolsa no banco, afivelei o cinto de segurança, apanhei o celular, conectei-o ao carregador, estava mais tranquila que buda em feriado prolongado, o homem encostou o carão na janela do passageiro, por um segundo achei que fosse pedir informação, ele abriu facilmente a porta, entrou, sentou-se ao meu lado, praticamente sobre minha bolsa, que, aliás, é nova, mandou eu ficar quietinha e não fazer nada, que era para passar o celular, obedeci, que não sou besta de reagir, entreguei meu aparelho com mil e quinhentas fotografias que não estavam salvas na nuvem, dos últimos aniversários dos meninos, das viagens, dos gatos, então ele quis dinheiro, eu pedi licença para pegar a bolsa sob seu bumbum, abri a carteira, tinha quarenta contos, ele reclamou, “Só isso?”, pensei, “É agora que morro e vão rir da minha calcinha de bolinhas no IML”, que ousadia, a minha, andar com esse miserê financeiro!, mas ele foi bacana, Síndrome de Estocolmo, versão campineira, catou meus trocados, guardou o meu celular (dele, daquele instante em diante) no bolso da calça, confesso que não sei se ele estava armado; eu que não ia perguntar, o homem desceu do carro, e antes de fechar a porta e ir embora tranquilamente, ainda ordenou que eu continuasse quietinha, claro, sim, senhor.

Quando eu era pequena, gostava de desenhar. Um dia, não sei por que cargas d’água resolvi ilustrar uma cena de assalto. Nela, um homem empunhava sua arma, anunciando o assalto à vítima. No balãozinho, escrevi com letra caprichada a fala do meliante: “Monzoalto!”. Para mim, pequena alfabetizanda atenta à oralidade, era assim que se escrevia “Mãos ao alto”. Acho até que escrevi com S, o que, nesse caso, seria completamente incorreto, todo mundo sabe que monzoalto se escreve com Z.

Naquela tarde ensolarada de segunda-feira, o homem do carão na janela não disse “Mãos ao alto”, tampouco “Monzoalto”. Não se usa mais. Agora é o rude “Fica quieto(a) e não faz nada” ou o vago “Perdeu, perdeu!”. Considero “Mãos ao alto”, no entanto, bem mais elegante e educado.

Voltei para casa, fiz B.O. pela internet, chorei, passou. Dias depois, celular novo, contatos restaurados, dados recuperados, inclusive algumas fotografias. Já o meu desenho de criança… ah, esse está arquivado, permanentemente, na memória. Que é minha grande nuvem particular. Essa, meu chapa, ninguém tasca.

Vergonha e orgulho

1981. Cerimônia de formatura do ginásio, a 8ª série A se despediria da escola. Seria na Paróquia São Pedro Apóstolo, na Mooca. Avisei meus pais, “Vai ser tal dia, tal hora”. Eu sabia que dificilmente eles compareceriam.

Meus pais tinham uma venda. Eu, seis anos, entrei no pré-primário e eles compraram o ponto. Com a caçula na escola, ficaria mais fácil tocar o negócio. E meus avós tomariam conta dos três netos.

A rotina no pequeno armazém era puxada. Segunda a segunda, sem direito a férias. O expediente começava antes de o sol raiar, quando inventaram de vender pão e leite fresco, e se estendia até a noite, com a homarada entornando seus cinzanos no balcão. Treze horas por dia pesando arroz e feijão para as donas de casa do bairro, fatiando queijo e presunto, moendo um quarto de café, contando dois cruzeiros de bala Juquinha para freguês-mirim que chegava cheio de moedinhas.

No dia da cerimônia, arrumei-me e fui. Espalhados nos compridos bancos de madeira na igreja, os fiéis pais, mães e parentes dos meus colegas de classe. Eu já estava acostumada a não ter meus pais nos eventos escolares, por causa dos horários da venda. Nas reuniões com os professores, meus irmãos faziam as vezes de responsáveis. Eles, que também eram tão novos.

Foi quando, perto do fim da cerimônia, avistei Seu Tonico e Dona Angelina atrás de um dos pilares (buscando a invisibilidade, talvez), espichando o olhar para me localizar em meio aos colegas organizados em frente ao altar, para as últimas palavras do padre. Se conseguiram me ver, não sei. Mas eu os vi bem.

Em nada se pareciam com a plateia presente, todos tão arrumados. As mães com vestidos bonitos, penteados, unhas feitas, brincos, colares. Os pais de camisa passada, sapatos engraxados.

Sem tempo de passar em casa antes, meus pais foram para a igreja do jeito que estavam: vestidos de cansaço.

Ainda que eu tenha ficado contente ao vê-los – fecharam mais cedo! –, senti-me encolher feito a Alice, depois de beber do vidro sobre a mesa, no país das maravilhas. Desejei sumir no buraco do coelho branco, enfiar-me no confessionário; precisava admitir ao invisível padre que senti, sim, um fio de vergonha.

De quantos quilos de batata era feito meu vestido branco? Quantas doses de conhaque valiam meus sapatos novos? Quanto pesariam, na velha balança Filizola vermelha, os livros e cadernos que me levaram até minha formatura?

Quando a cerimônia terminou, fui ao encontro deles. Com o coração fatiado feito queijo e presunto, abracei-os. Senti em meu pai, jamais fumante, a fumaça de Minister e Hollywood dos fregueses. Impregnado nas roupas da minha mãe, o indelével cheiro do pó de café, invadindo a casa de Deus. Agora, todos os fiados do mundo cabiam no sorriso deles quando mostrei o canudo vermelho. Viva o velho armazém de secos e molhados e olhos úmidos.

Então a vergonha, talvez por obra dos santos presentes, transmutou-se em orgulho. “Pai e mãe, ouro de mina”, alguém já disse. E contar esta história hoje quita, de certa forma, a antiga pendência com o confessionário.

Formatura Sil Gallicho 8a A 1981 com Rosemeire de Lucca e Simone Cristina Augusto Rosa
eu (direita), arquivo pessoal

A moça e as rosas

flor amarela

Deixei o Luca no portão da casa do amigo, tinham trabalho da escola para entregar no dia seguinte. Ela estava na calçada e aproveitou a campainha. O amigo veio recebê-lo, tratando logo de dispensá-la. Os dois entraram, Tchau, Manda Whats quando terminarem, Tá bom, Beijo. Ela me viu estacionada, o vidro aberto. Caminhou em minha direção e, com a vergonha dos que vivem nas ruas, ofereceu:

– A senhora quer comprar flores? – disse, mostrando três rosas amarelas enroladas em celofane transparente. Tão murchas, pobrezinhas. Nem elas aguentam o verão daqui.

Eu não tinha nem um real na carteira. Moedinha, nada. Ela insistiu:

– Alguma coisa pra comer, a senhora tem?

Também não.

Ela começou a lenga-lenga: que não comera nada aquele dia. Que era HIV-positiva. Que isso, que aquilo. Reparei: era magra, fina, comprida e murcha. Feito as rosas.

E se fosse golpe? Olhei ao redor. Um comparsa do outro lado da rua, talvez. E se ela tivesse uma faca? Caco de vidro? Seringa contaminada? Parte de mim queria voar dali, outra parte era pura compaixão. Meu pé direito se preparava para chispar dali, mas a boca anunciou:

– Me dá dez minutos? Vou procurar alguma coisa pra você.

Domingo, tudo fechado no bairro. Rodei meia dúzia de quarteirões. Uma padaria! Pedi logo quatro salgados para viagem, que lanche demoraria mais. Apanhei da geladeira uma latinha de suco de laranja, com o cuidado de não ser zero açúcar; a moça precisava de energia. No caixa, acrescentei à marmita um Sonho de Valsa. Dois, vai.

Voltei à rua. Lá estavam a moça com suas rosas amarelas desmaiadas. Sempre achei engraçado rosa ter outra cor, que não rosa. Ela veio até o carro. Eu, de olho. Sabe como é, comparsa, faca, caco, injeção. Desci o vidro, entreguei-lhe a sacolinha de plástico biodegradável escrito Volte sempre. Ela abriu o sorriso maltratado, Deus te abençoe, Você tambémAmém, Se cuida.

Antes de dobrar a esquina, pelo retrovisor, a vi conferindo a comida. Começaria pela coxinha ou pelo kibe? Lembrei: poxa vida, poderia ter levado um copo d’água para as rosas.

À noite, fui buscar o Luca. Enquanto o aguardava notei um brilho no chão, um pouco adiante da casa do amigo. Eram as rosas, ainda embrulhadinhas. Largadas na rua, sem viço. Feito a moça.

As cartas

Não sei jogar cartas.

Nada. Nem buraco, nem cacheta, nem rouba-monte. Por sinal, nunca ouvi alguém falar “rouba-monte” com ô fechado (embora seja o certo). Sempre foi “róba-monte”, com ó. Então, é róba-monte e cefiní.

Não que nunca tenha curtido um baralhinho, ao contrário; na juventude, passei tardes e noites jogando com irmãos, amigos. Nada contra, também: admiro pessoas que se reúnem alegremente em torno de uma mesa feltrada, registram os resultados, fazem apostas. Invejo quem embaralha as cartas sem amassá-las. Acho lindo quem grita “Truco!”, sabendo o que está fazendo.

Meu problema: esqueço todas as regras de todos os jogos. Esqueço tudinho. Se jogo no sábado, no domingo preciso relembrar. Se passar um mês, já era. Preciso contar com a boa vontade de algum jogador para me reexplicar as regras. Como se eu nunca as tivesse aprendido. Como se fosse a primeira vez. Nessa hora, eu testo o amor da família, a lealdade dos amigos, a compaixão de desconhecidos. A paciência, além de batizar o famoso jogo, é uma virtude.

Por isso a confissão: não sei jogar cartas.

Cheguei a acreditar que sou vítima de alguma maldição: “Jogarás, e depois não lembrarás como se joga”, teria proclamado a feiticeira má. Ou seria a Rainha de Copas? Pode ser, também, que eu padeça de grave disfunção cognitiva, onde uma área do meu cérebro bloqueia, ignora e não processa direito assuntos relacionados aos quatro naipes. Confundo Ouro com Copas. Qual é o coraçãozinho?

Afinal, como nascem os jogos de cartas? Quem inventa tanta regra? É tudo tão sem sentido.

O máximo que compreendo, razoavelmente, são os curingas: servem para qualquer situação. Como um bom vestidinho preto. Vestidinho preto é curinga. Disso, eu manjo.

Há vezes, no entanto, que tenho um déjà vu quando estou prestes a encarar o carteado. Uma pequena fagulha em minha memória faz algo soar familiar: “Tem que formar trincas em sequência”, “Ganha quem bater com as dez”.

E, mesmo com as regras rememoradas, não jogo direito. Distraio-me, invento uma DR entre o rei e a dama, imagino o valete liderando uma revolução do proletariado baralhístico. Deixo os outros ganharem, desejo que o jogo acabe logo.

Amigos e parentes chegados numa jogatina que me perdoem. Em matéria de cartas, só gosto de escrevê-las. Essas não têm regras. Podem ser de amor, lamento, fúria, saudade. E podem não ter resposta. Podem até – por que não? – virar um jogo.

Atende!

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arte: Alanna Cavanagh

Peço o livro ao atendente, ele consulta o sistema, tem. “Um minuto, vou buscar”. Assim que o Alexander – li no crachá – vira a esquina da seção de gastronomia, o telefone do pequeno balcão toca.

Olho ao redor. Ninguém com crachá. E agora?

Sofro quando um telefone toca e ninguém atende. Tenho urgência de alôs.

Não devo me meter, não sou funcionária da livraria. Mas a pessoa do outro lado da linha não tem culpa de o Alexander ter ido buscar o meu livro, e não ter mais nenhum atendente por perto. E se é um pai que precisa, com urgência, de um livro para a filha fazer o trabalho de Ciências, que não tem em lugar nenhum, quem sabe ali?

O ring-ring nervoso me deixa nervosa. Só eu ouço? Um telefone invisível, um tilintar (meu pai que fala tilintar) inaudível, captado apenas pelos meus, agora angustiadíssimos, ouvidos. Olho os fregueses. Nenhum parece ter – e, na verdade, não tem – nada com isso. Quem tem é o Alexander, que deve ter ido à editora a pé buscar meu livro, só pode. E os colegas dele resolveram todos sumir. Esse negócio de megastore é lindo, mas duvi-de-o-dó que um telefone toca mais de cinco vezes em uma livraria pequena.

É pegadinha. Sempre acho que estou em uma. Atendo; a pessoa procura por um título escalafobético qualquer, entabula uma conversa sem pé nem cabeça, difícil de se desvencilhar; peço, toda educada, que aguarde, vou chamar um atendente; a pessoa diz, então, para eu olhar para trás; eu olho e tcharam! Estou na TV. Todos os funcionários, inclusive o sacana do Alexander, mais dezenas de fregueses curiosos, morrem de rir.

Nem morta que vou atender.

Mas e se, do outro lado da linha, for um senhorzinho, desses que usa cachecol xadrez e gosta de ir à livraria encomendar livro, para depois ir de novo buscá-lo, querendo saber se sua encomenda chegou? Quer tanto aproveitar o feriadão de Páscoa para reler os contos reunidos da Lygia Fagundes Telles, dizem que a nova edição ficou supimpa. Senhorzinhos que usam cachecol xadrez falam supimpa.

O telefone segue se esgoelando. É um pobre solitário na ilha do pequeno balcão, cercada por um mar de leitores, não de ouvidores. O Alexander escafedeu-se. Deve ter infartado na seção de auto-ajuda e não há ali ninguém para socorrê-lo. Só ele, com uma atitude positiva e pensamento focado, pode se salvar.

Aliás, pode ser um parente da moça do caixa, avisando que o avô está no hospital, que o caso é grave, que estão pedindo a presença de todos da família. AVC, igual ao bisavô, que sina! É o tipo de telefonema que não pode não ser atendido. Um minuto faz toda diferença em uma despedida.

Pronto, está decidido. Pelo trabalho de ciências da garota, pelo senhorzinho de cachecol xadrez, pelo avô da moça do caixa, pela memória de Graham Bell, vou atender.

Seja o que Deus quiser.

Mãos cruzadas

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arte: Kenyon Cox

Se me deito de costas e, instintivamente, cruzo as mãos sobre o peito, trato rapidinho de mudar. Que essa é, sempre foi e será posição de quem partiu desta para melhor, esticou as canelas, bateu as botas.

O manual dos bons modos dos mortos – que só é lido pelos vivos – diz que defunto que se preze deve permanecer assim em seu derradeiro leito. Quem será que inventou isso?

Só sei que disfarço, desentrelaço os dedos, ponho a mão no travesseiro, me viro de lado. Qualquer coisa que desfaça em mim a pose mortis. Vai que Dona Morte está pelo bairro, resolve aparecer e não confere direito. É risco que não se pode correr.

Quando criança eu ia (obrigada) aos velórios dos parentes, e ao me despedir deles no caixão (de novo, obrigada) meu olhar se demorava nos dedos entrelaçados sob o véu, num tom funesto de azul-frio com cinza-pedra. Minha avó. Meu avô. Minha bisavó (queriam que eu a beijasse; fugi). Que coisa, de minha mãe não me lembro. Não me lembro, aliás, de nada dela no dia em que foi cremada. Apenas que eu vestia, e isso me recordo bem, um macacão de popeline lilás costurado por mim, sob suas doces e pacientes instruções.

Até hoje, não gosto de ver ninguém dormindo, nem cochilando, de barriga para cima e mãos cruzadas no peito. Como se essa postura não pudesse pertencer ao mundo dos vivos. E justo essa posição vem ser das mais confortáveis. Quando o corpo repousa plenamente na horizontal, cabeça e mente alinhadas. Cotovelos apoiados, uma mão abraça a outra, quase em prece. (Será por isso?)

Se vou dar beijo de boa noite nos meus filhos e, por acaso, estão assim… Não chego a tentar mudar; vão perguntar o porquê. E não quero perpetuar a crendice. Resignada, sigo para minha cama, repetindo: “Deixa de ser besta, Silmara”.

Porque eu sou mesmo muito besta. Paciência.

A rua

“Street”, Lea Vervoort

As casas perfeitas eram sempre de frente para a rua. Onde, da calçada, já se entrava na garagem, e da garagem, na sala. Nessa sala, idealmente, a janela tomava a parede frontal toda, nada de janelica. E dela se podia ver o movimento lá fora: quem vinha pela calçada, quem passava de moto, de carro, os vendedores de tudo, os ônibus, os vizinhos. Glória, então, se fosse sobrado: além da escada, que eu considerava chique, o quarto da frente, sobre a sala, virava camarote.

Não fui criança de desejar viver em mansões, palacetes, nada disso. Modesta, bastava-me um sobrado geminado de frente para a rua – típico da Mooca, meu universo natal e então única referência arquitetônica – e eu estaria realizada.

Quis o destino, esse fanfarrão de marca maior, que eu fosse viver em uma pequena vila, de onde não se via absolutamente nada da rua, nem uma nesga de calçada. Ainda se fosse a casa 4, da Dona Antonia, que era a última e única alinhada ao corredor de entrada da vila. Mas não: a vida colocou-me justo na casa 1, a do canto, a mais distante de tudo e de todos. Quando o moço do biju passava com sua matraca, teleq-teleq-teleq, era preciso sair correndo para alcançá-lo já quase na esquina, pois nem sempre ele adentrava a vila para oferecer seu quitute. Quem morava de frente para a rua não passava esse apuro.

Suspirava quando ia à casa das amigas. Em frente às suas salas, seus quartos, suas garagens, se dava a adorável e mágica dinâmica da rua. Como elas deviam ser felizes! Era como pertencer à grande festa cotidiana, fazer parte do filme urbano, viver, enfim. Na vila, eu me sentia fora do cenário, do enredo, do baile.

Não que detestasse a vida na vila; ela acabava sendo uma extensão do nosso diminuto quintal, onde se podia brincar à vontade, andar de bicicleta e skate, sentar no chão e ficar conversando até tardão.

O problema surgiu à medida em que a adolescência chegava. A rua era o cosmos onde circulavam os amigos, os inimigos, os paqueras. E, da janela da nossa sala, eu não avistava nada, além do tanque onde meus avós lavavam roupa. Do quarto dos meus pais, que dava para a vila, só os fundos das casas da frente. E alguns telhados do quarteirão, com eventuais gatos zanzando. Pouco, para minha sede juvenil de acontecimentos (e pertencimento).

Movida pela quimera da moradia ideal, punha-me a desenhar, obsessivamente, casas imaginárias sob medida para a minha felicidade. Caprichava na planta, me dedicava às fachadas. Talvez tenha escolhido Técnico em Edificações no segundo grau por conta disso. Ainda bem que a opção mostrou-se, a tempo, puro delírio.

Mudei-me da vila já adulta. Outros lares vieram, e a vista para a rua nunca mais foi requisito. Os sonhos envelhecem.

Há anos moro em um condomínio horizontal, que nada mais é que uma vila grande. Retornei às origens, por deliberada vontade. Nossa casa é uma das últimas, escolhida a dedo. Quanto mais longe da rua, dos barulhos, dos ônibus, das fumaças, das buzinas, das motos, dos escapamentos adulterados, melhor. Não que tenha deixado de gostar da rua; agora, eu decido quando quero vê-la. Passei a apreciar, sem sofrimento algum, o silêncio e o sossego. A melhor coisa de se ver ao acordar, descobri, não é a rua. É um bem-te-vi carregando um galhinho no bico.

Sinto falta, porém, do moço do biju. Em compensação, tem o sorveteiro. Aos sábados, ele passa na rua de trás, anunciando no alto-falante sabores de creme e de frutas. Que eu nunca comprei.

Ailili-ailou

Minha mãe adorava a canção “Hi-Lili, Hi-Lo”. Aquela, do filme. Cantarolava do seu jeito, ailili, ailili, ailou. Não sei se ela assistiu ao clássico de 1953, nem se compreendia a letra. A melodia a encantava, e isso bastava.

Dona Angelina nasceu nos anos 30. Sua playlist era feita, basicamente, de composições suaves, ternas, doces. Como ela. Quando, na vitrola, a agulha acordava um Led Zeppelin nervoso, sacudindo a pequena vila em que morávamos, invariavelmente ela ironizava: “Isso é música?”.

Mais ou menos o que eu disse à Nina, sua neta, quando me apareceu cantando um tal MC Kevinho. “Ai, mãe. Você não sabe de nada. Só ouve música velha”. O que não é totalmente inverdade, mas argumentar com adolescente, às vezes, é monologar em um deserto.

Nos anos 70, quando estreou a novela Estúpido Cupido, reproduzindo os anos 60, eu quis, fervorosamente, o LP com a trilha sonora. Velhas canções, tão novas para mim. Lembro-me do dia em que, finalmente, meus pais chegaram em casa com ele. (Ou será que nesse dia ganhamos só o compacto, com a canção-título e “Banho de Lua” no lado B? Minha memória é meio riscada.) Desta vez, consenso na vitrola: ao reviver seus dias de glória, aquela trilha foi capaz de unir duas gerações.

O que a avó de minha filha ouviria hoje? Que toadas a embalariam? Talvez, ela ainda pedisse para tocar – não mais na fita K7, mas no Spotify – uma de suas preferidas: “Valsa para uma menininha”, de Toquinho e Vinicius:

Menininha do meu coração

Eu só quero você

A três palmos do chão

Essa eu cantei tanto para a Nina, quando era bebê. Primeiro, porque também gosto. Segundo, era um jeito de reinventar a presença da minha mãe; ela não conheceu nenhum neto. Por fim, eu queria acostumar seus miniouvidos à boa música. Porém, ao contrário dos versos, nunca desejei congelar em três palmos a menininha do meu coração. Quero-a gigante, do tamanho do mundo. Como a mãe de sua mãe também gostaria. E como tem sido.

Mas poxa vida. MC Kevinho?

As piscinas

Dos meus sonhos de adolescente, ser sócia do Juventus foi dos mais acalentados. Afinal, todas as minhas amigas eram. A Mooca inteira, aliás, era sócia do clube. Menos a gente.

A carteirinha de sócio representava uma espécie de credencial para o olimpo mooquense. Passaporte para o paraíso. Pura ostentação. Imaginava-me passando com ela pelas catracas, desfrutando aquelas piscinas imensas com um milhão de amigos nos finais de semana, voltando para casa só à tarde, bronzeadíssima. Coisa de rico.

Porém, a realidade era outra. Segunda-feira, na escola, os que haviam se encontrado por lá engatavam conversas acerca dos babados piscínicos, dos quais eu não participara. “Te vi no Juventus!” era a senha para que eu me sentisse aquaticamente excluída.

O Atlético Juventus é o clube de futebol queridão da Mooca. Nunca dei bola para jogo; em esportes, pratico o ateísmo. Jamais pisei no antológico estádio da rua Javari – mas já provei o igualmente memorável cannoli do Seu Antonio, o que me livra da fogueira da inquisição. Só as piscinas (na sede social, em outro endereço do bairro) me interessavam. A felicidade, meu bem, era líquida e cheirava a cloro.

O título custava uma fortuna. Mensalidade, idem. Eu nem pedia aos meus pais, sabedora da resposta. Secretamente, afogava minhas tristezas no chuveiro e tratava de fazer outra coisa nos sábados, domingos e feriados.

Apesar disso, frequentei o clube, nos eventos abertos ao público. Fui das matinês de Carnaval regadas a lança-perfume aos shows do Roupa Nova e Fábio Jr., quando este era um jovem galã. Não que fosse fã. Mas o que a gente não faz para pertencer ao bando? As piscinas, no entanto, continuavam proibidíssimas para não-sócios. Não eram para o meu bico.

Eis que cresço e viro adulta. Minha irmã, mais velha que eu, decidiu que o Juventus agora cabia no orçamento. Ela, que também viveu a angústia de ter cem por cento dos amigos donos da carteirinha encantada. Lá fomos nós, finalmente, debutar nas piscinas.

Como nativa do bairro, vos digo: meu, que chatice!

Deus ajuda quem cedo madruga, e isso vale para as piscinas dos clubes. Quem chegava depois das dez – como nós – tinha que se contentar em torrar nas arquibancadas perto da piscina olímpica, muito mais quentes e disputadas a tapa com outros banhistas. Além disso, nem sombra dos amigos do passado. Onde foram parar todos?

Aos poucos, deixei de frequentar. Sonho vivido com atraso, às vezes, não tem mais efeito. Meu clube hoje é a rua.

Eis que cresço um pouco mais. Nossa caçula vive pedindo para ficarmos sócios de algum clube. Ela tem a idade que eu tinha, quando desejava a mesma coisa. Costumo enrolar, tenho preguiça, invento falta de tempo, deixo escapar o desinteresse.

Sei que não é justo agir assim. Ou tomo uma atitude ou, se a história se repete, já sei a primeira coisa que ela fará quando crescer.

Chico Churrasco

Senhoras e senhores, esta é a história do Chico Churrasco. Que pode ser uma história sobre gratidão. Ou só mais uma história de gato, mesmo.

Era comum termos muitos gatos em casa. Um é pouco, dois também. A gente ia logo tendo seis, sete. Tudo deve ter começado com minha mãe. Diz que Dona Angelina, gateira que só, viu um garoto na rua com uma gatinha branca, muito bonita. Ofereceu-lhe figurinhas em troca da bichana. O menino topou e Branquinha, um olho azul e outro verde, viveu feliz conosco por anos. Desde então, nunca mais fomos uma família “desgatada”. Sempre aparecia alguém doando gatinho – quem resistia? A maioria, no entanto, vinha (ainda vem) da rua. Andarilhos abandonados e resgatados em geral. Uns na iminência de atropelamento, outros retirados do motor de carro, e assim por diante.

Certa vez, apareceu em nosso telhado um gatinho preto, bastante machucado. Mancava e miava, como se pedisse ajuda. Uma das patas dianteiras tinha um grave ferimento, em carne viva. Seu pelo parecia chamuscado. Concluímos que alguém havia ateado fogo nele. Por maldade ou ignorância, ou as duas coisas juntas. Ainda mais preto. Batizamos na hora: Chico. Chico Churrasco.

O problema: já tínhamos muitos gatos “próprios”. Decidimos cuidar dele no próprio telhado. A escadinha que levava à casa de meus avós, nos fundos, também dava acesso fácil ao telhado. Era só por o pé perto do vitrô da cozinha, apoiar as mãos nas paredes, dar impulso e zás! Eu gostava de subir no telhado, era um dos passatempos de criança sem internet, celular, TV a cabo, Netflix. Aprendera o jeito certo de pisar nas telhas, para não quebrar. De vez em quando, quebrava. Do telhado, novas paisagens do bairro, que as janelas não ofereciam. (Ali, eu também me arriscava em inúteis sessões de bronzeamento, mas essa é outra história.)

Providenciamos uma caixinha forrada para o Chico, em local protegido da chuva. Nem cachorro, nem gente ruim, o incomodariam. Eu e minha irmã nos revezávamos para levar comida e água. Os tempos eram de vacas magras e não tinha como ficar levando bicho em veterinário. Remédio, só caseiro. Éramos, muitas vezes, bem-sucedidos. Em outras, nem tanto. Shazan que o diga. Nosso pequinês, que ganhara o nome em homenagem ao seriado Shazan, Xerife & Cia, teve sarna. Alguém disse que enxofre era bom. Então, dá-lhe banho de enxofre. Além de não curá-lo, o pobrezinho vivia com um esquisito tom amarelo-esverdeado. Se os cães merecem o céu, Shazan certamente ganhou uma confortável almofada bem ao lado da poltrona de Deus.

No início, Chico mal saía de sua caixinha. No entanto, erguia a cabecinha e miava de satisfação, quando aparecíamos.

Valendo-se do adiantamento das sete vidas que lhe foram concedidas, milagrosamente, ele foi se recuperando. Comida, amor e tempo foram seu tratamento. Cheguei a pensar que ele perderia a pata. Nada. Ficou manco, é verdade. E gato liga pra isso?

Curado, Chico ganhou o mundo novamente. Mas vinha sempre nos visitar. Para dar um alô, filar a boia e ganhar afagos. Entendia que não poderia ficar de vez, para dormir na nossa cama, ver TV na sala com a gente. Talvez nem quisesse. Como diz a canção: gatos já nascem pobres, porém, livres.

Após um longo intervalo sem aparecer, eis que Chico Churrasco surge no telhado. Desta vez, não estava só. Ao seu lado, uma gata e dois (ou três?) filhotes. Conclusão: ele viera nos apresentar sua família. Deve ter-lhes dito: “Vamos lá na vila, quero que vocês conheçam uns humanos bacanas.”

Depois dessa visita, não lembro de tê-los visto mais.

E assim termina a história do Chico Churrasco, um gato grato. Porque a maldade não tem fim. Ainda bem que o amor também não.

A tônica do Tonico

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Em nove, de dez vezes que meu pai vai a um restaurante, ele pede água tônica. Limão espremido e gelo completam o ritual. Embora, ultimamente, venha deixando o gelo; reclama que tem lhe feito mal à garganta. O refrigerante, ao lado do molho de pimenta, é dos seus hábitos mais antigos. Seu nome bem que podia ser Tonico da Tônica.

A lata diz que é feita de quinino. Que diabos é quinino, menino?

With a little help from my friend Google, aprendo: é uma substância que se tira da casca da árvore cinchona, que nunca vi. Um pó branco, tecnicamente batizado de hidrocloreto de quinina. Como esse título não faria o menor sucesso, pelo contrário, resolveram chamá-la simplesmente de água tônica de quinino. Mais bonito e poético. Perguntar qual a sílaba tônica de tônica é mais ou menos como perguntar qual é o doce mais doce que o doce de batata doce.

Gramática e trocadilho à parte, a água tônica deve funcionar como uma espécie de tônico da longevidade. Seu Tonico acaba de completar oitenta e sete anos, nos trinques. Um dos médicos que o acompanha brinca que ele está tão bem, que podemos vendê-lo. Ele acha graça.

O garçom traz o pedido à mesa, meu pai faz uma piadinha qualquer. O garçom entra na onda (ou não), e todos riem (ou não). Ele quebra o lacre, plec, e a vira no copo. Do encontro do amargo da bebida com o azedo do limão dá-se a química da felicidade do meu pai, traduzida no primeiro gole e o quase onomatopeico “Aaah” de prazer.

Falando em química, na tabela periódica, oitenta e sete é o número atômico do Frâncio. O sobrenome do meu pai é Franco. Uma coincidência dessa, bicho.

O slogan impresso na latinha afirma: “o amargo transforma”. O quê em quê, nunca soube ao certo. Mas desconfio. Olho meu pai partindo o quiabo ao meio e juntando-o, metodicamente, ao arroz e feijão. O rosto enrugado de mundo, os cabelos branquinhos, a indefectível boina. Meu pai soube transformar sua vida. Viúvo aos cinquenta e cinco, era do tipo que não se servia sozinho à mesa – tarefa exclusiva de minha mãe. Quando ela se foi, inventou sua autonomia e entendeu-se com a solidão. Amargura? Se sentiu, metamorfoseou-a em poesias e músicas dedicadas à Dona Angelina. Apropriou-se da casa e suas domesticidades, aprendeu a cozinhar e a preparar suas gororobas. (Algumas tornaram-se lendárias: sua vitamina matinal, por exemplo, costumava levar leite, óleo, ovo, banana, mandioquinha, beterraba, vinho, Sonho de Valsa e o que mais estivesse dando sopa na bancada da pia, tudo no liquidificador. Praticamente um suco atômico. Melhor: um tônico.)

Com a poção acre-doce no copo, meu pai acessa a memória que lhe resta e se põe, com genuíno entusiasmo, a contar causos. Os mesmos de sempre, de novo e de novo. O pisão que levou da vaca Beleza, quando criança. O orgulho dos dons oratórios e literários do meu avô, seu pai. O primeiro emprego quando chegou a São Paulo, na fábrica de sapatos, aos dezesseis anos. O dia em que conheceu minha mãe, em pleno Finados. Sua saudade é líquida. Eu, que antes me chateava, aprendi a ouvi-los como se fosse a primeira vez.

Bendito quinino. Transformou até a mim.

O baleiro

baleiro

Da venda dos meus pais, não é da balança Filizola vermelha ou do cheiro do café moído na hora que mais me lembro. Nem da máquina de cortar frios que quase decepou meu dedo. É do baleiro.

Eu tinha seis anos quando meus pais resolveram empreender e compraram o ponto. Fiquei triste porque Dona Angelina não ficaria mais em casa o dia todo comigo, e sim pesando arroz, feijão e batata para a freguesia do bairro, com Seu Tonico ao lado, servindo Velho Barreiro aos homens do pedaço. Em compensação, quando eu fosse na venda, poderia comer doces à vontade e, no meu entendimento, de graça.

Roda, roda,

Roda baleiro, atenção

Quando o baleiro parar

Ponha a mão

De vidro, três andares, o baleiro estava sempre abastecido. Bala Juquinha, 7 Belo, bala de goma, delicados e caramelos, numa profusão de cores e sabores, tão ao alcance das minhas pequenas mãos. “Só mais um!”, eu pedia. Queria morar naquele baleiro.

Havia também uma vitrine de madeira com portinhas de correr, espécie de portal para outra dimensão, feita de glicose. Maria-mole, pé-de-moleque, doce de batata-doce, chiclete Ping Pong e suas tatuagens fajutas, chocolate de guarda-chuvinha, Dadinho, paçoca Amor. Eu não sabia por onde começar.

Pegue a bala mais gostosa do planeta

Não deixe que a sorte se intrometa

Por dezoito anos, o baleiro fez parte do negócio de secos e molhados da família. Girando feito planeta, ora num sentido, ora noutro. Mas o sentido não estava na boca? Já grande, suas balas não me encantavam mais. Continuavam, no entanto, fazendo a alegria das novas gerações de fregueses-mirins.

Quando meu pai se desfez da venda, anos depois de enviuvar e cansado de tocar o barco sozinho, alguém perguntou, E o baleiro?”. Ninguém quis. Uma velharia, candidata a estorvo.

Perguntei aos irmãos esta semana, “Que foi feito dele?”. Não se lembram. Eu deveria tê-lo guardado, nem que fosse no porão. O arrependimento não é doce.

Vi um para vender, dia desses. Novinho em folha, réplica dos originais. Prestei atenção em suas tampas, tão perfeitas e lustrosas. Não havia nelas nenhum amassadinho, ou qualquer outra cicatriz deixada pelo uso. Que graça tem baleiro sem história?

Queria tanto uma bala Juquinha agora.

A sesta do meu avô

gato na poltrona
arte: Angie Rozelaar

Todo dia ele fazia tudo sempre igual: almoçava, escovava os dentes, se ajeitava na poltrona da sala e tirava um cochilo. Sentado, sempre. Por meia hora, meu avô se desconectava deste mundo – em um tempo onde desconectar-se tinha outra acepção – e fazia seus minipasseios astrais. Fizesse chuva ou sol, a sesta era sagrada. A vida inteira, até Deus convocá-lo.

Mas sentado, vô? Que jeito de fazer sesta. Por que não se deitava na cama de uma vez, fechava as cortinas, afofava o travesseiro? Oras, porque o sono na horizontal é reservado à noite, depois de um dia cheio de afazeres. Ele nunca disse isso, mas eu sabia. Em sua filosofia, cochilar deitado seria outra coisa, completamente distinta. Cheiraria a vadiagem, palavra não encontrada no léxico do Seu Paschoal.

Semana passada, resolvi imitá-lo. Se o hábito o fez completar noventa e sete primaveras inteirão, e alguns anos antes de partir ele subia no telhado para fazer reparos com a desenvoltura de um garoto, por certo essa é a receita da longevidade. Após o almoço, levei os meninos à aula de inglês, voltei, escovei os dentes. Sentei-me na poltrona da sala, seguindo à risca o modo de fazer. Fechei os olhos. Pronto.

Meu avô tinha um despertador interno que não o deixava passar de trinta minutos. Eu não vim equipada com tão útil dispositivo. Levantei-me, apanhei o celular na mesa de jantar, configurei o alarme para o mesmo tempo. Voltei à posição inicial. “Pensando bem, é pouco. Dez minutos só para pegar no sono”. Ajustei para quarenta. Agora vai. A cabeça pendeu um pouco para a frente, segurei. Como relaxar assim? Reclinei a poltrona um tantinho só, descaracterizando levemente o ritual original. Lembrei-me que ele cruzava os braços, talvez isso proporcionasse alguma firmeza extra. Poltrona um tiquinho reclinada, braços cruzados, despertador ajustado, cerrei os olhos, vamos lá. Já havia perdido tempo. Paciência.

Morfeu enfim acenou-me, com uma piscadela safada. Mal retribuí o flerte, o celular tocou. Não era o alarme. Consultório da dentista, para confirmar horário. Meu avô, que só viu telefone em casa aos setenta e cinco anos, nunca fora interrompido em sua soneca por conta de uma ligação. Até porque, não ouviria. A surdez pode ser uma bênção.

Postura retomada, poltrona um tantinho reclinada, braços cruzados, pestanas grudadas. Àquela altura, me restavam parcos vinte minutos. Bufei feito Vô Paschoal quando o Palestra tomava gol. Mexi de novo na porcaria do alarme e espalhei-me no sofá, feito geleia no pão. Dormi divinamente até a hora de ir buscar os meninos no inglês, sepultando de vez a esperança de viver até os noventa e sete.

 

Museu

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Quando era criança, inventei de montar um museu. Com o tema para a curadoria da primeira exposição em mente, saí catando coisas – aparentemente aleatórias – pela casa. Uns chumaços de algodão, um pente velho, uma moldura de espelho, sem o espelho (daqueles cor de laranja, que vendiam nas feiras) e o que mais estivesse dando sopa.

Nossa casa na vila tinha um pequeno quintal na lateral. Quintal é sempre território de imaginar. Foi ali que instalei meu museu de coisas. Distribuí, com rigor técnico, as peças da exposição ao lado do tanque, na prateleira onde meu avô guardava a cândida e onde mais considerei adequado.

Cuidei, também, de garantir ao público as informações necessárias. Escrevi num papelzinho do que se tratava cada item do precioso acervo.

E, assim, fui identificando os objetos de altíssima relevância histórica e cultural para o país: “algodão do travesseiro de Pedro Álvares Cabral”, “pente de José Bonifácio”, “moldura do espelho da princesa Isabel”. Não lembro de todos os objetos do inventário imaginário. Só sei que deu uma curiosa exposição. Temporária, porém; no dia seguinte tudo teria que sair de lá, minha avó tinha que lavar roupa.

A única visitante foi minha irmã. Eu fui sua guia. Disse ela que estava tudo muito bonito. Nada como ter alguém para reconhecer nosso talento. Pena que não há, na família, um registro sequer. Tirar fotografia naquela época não era algo corriqueiro, como hoje. Só em eventos especiais. Tinha que ter a máquina fotográfica, filme (12, 24 ou 36 poses), dinheiro para mandar revelar e paciência de aguardar. Levava quase uma semana para voltarem do laboratório. E não dava para editar nada. Compartilhar com alguém, só entregando em mãos ou pelos Correios.

Quis o destino que, mais tarde, já na faculdade, meu primeiro emprego fosse em um… museu. Museu Paulista. Museu do Ipiranga, para os chegados. Eu era estagiária de comunicação visual. Fui alocada na sala da numismática, em uma das torres laterais (a direita, para quem olha o prédio de frente), e para chegar até ela era preciso – acredite se quiser – cruzar uma parte pelo telhado, já que não havia acesso direto por escada, nem elevador. Havia um caminhozinho partindo da torre central, devidamente protegido por uma pequena grade para que ninguém rolasse telhado abaixo. Só complicava em dia de chuva.

Primeiro job: uma exposição intitulada “Ser negro hoje”, comemorativa do centenário da abolição da escravatura nesta Pindorama. Era 1988 e eu tinha 21 anos. Ali, tudo novidade para mim: trabalhar, ter salário, o tema abordado em si. Em minha jovem vida, nunca havia parado para atinar, pra valer, sobre o tema. Piada de preto era normal. Eu, confesso, ria. Dei minha contribuição, desenhando em madeira, à mão livre, a silhueta de vários bonecos em tamanho natural, representando negros e brancos. O chefe ficou bem satisfeito.

Lembrei da minha pequena exposição no quintal. Se a filha de Dom Pedro II tivesse um espelho com moldura cor de laranja, que teria visto refletido nele no dia em que assinou a Lei Áurea?

Ainda bem que trago um museu de histórias, sons e imagens dentro da cabeça (levemente falho, às vezes). A vida tem essa mania de ligar tudo o tempo todo, por um fio compridíssimo e invisível chamado memória.

Melissices

melissa

Todas as meninas tinham. Eu não. Acordava e ia dormir sonhando com o dia em que eu teria a minha. Custou, mas ganhei. E então fui para a escola, altiva e radiante, de Melissa nos pés.

Desfilei-as quanto pude, para que todos notassem a novidade. Passada a euforia, as sandálias de plástico transparente (“fumê” era o nome da cor) se tornaram fiéis companheiras. Em casa, na escola, nos passeios. Na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Não me recordo direito que fim tiveram, se ficaram pequenas ou se arrebentaram. Eram de tiras, fechadas atrás e na frente.

Quando surgiu, no finalzinho dos anos 70, não havia esse mar de cores e modelos de hoje, loja própria, nada disso. Era um só, objeto de desejo de dez entre dez garotas. Somente há pouco descobri que se chama “aranha”. Talvez porque o desenho das tiras lembrasse um artrópode. Podia ser usada no inverno ou no verão, com ou sem meia; o chulé era o mesmo.

Melissa, ao lado das Havaianas, é patrimônio histórico e afetivo brasileiro. Calçada por mulheres de oito meses (agora tem para bebê) a oitenta anos. Homem também usa. Democráticas, transitam por todos os ambientes sem fazer feio. São cult e cheiram deliciosamente. Está certo que, se não são recicladas depois, é um problemão para o meio ambiente. Nada é perfeito.

Nina, a caçula, gosta de Melissa. Quando a gente passa em frente a uma loja, ela fica ouriçada. Também fico. Cada uma com suas motivações. Ela, talvez porque ache os modelos bonitos, simplesmente. A isso eu acrescento a indelével carga memorial. Ela gosta de cheirar suas Melissas. Eu também. Será genético?

Ontem eu estava de Melissa. Sapatilhas da edição especial d’O Pequeno Príncipe. Dei-me conta de que, desde a primeira, tive tantas ao longo das últimas quatro décadas! Com salto, sem salto, aberta, fechada, de amarrar, de abotoar. Até tênis. Uma vez, quase comprei um par de botas, de cano longo. Desisti quando imaginei o suadouro a que me submeteria, mesmo em dias invernais. Fora o peso extra nos pés – embora Melissa valha quanto pese. Se tudo der certo, serei dessas vovozinhas sacudidas, de bengala e Melissa, dirigindo um Fusca.

Melissa e eu crescemos juntas. É parte da minha biografia. Sou, seguramente, uma das clientes mais antigas. Ah, se essa fidelidade fosse premiada. A relação é tal, que usá-la hoje causa em mim praticamente as mesmas reações de quase quarenta anos atrás, como sair da loja com aquele sorrisinho bobo. Ela ainda me dá prazer, alegria e satisfação. Chulé também.

Se, como diz a canção, as flores de plástico não morrem, as lembranças feitas dele também não.