Ilustração: "Pendulum", Cindy Woods/Flickr.com
Da primeira vez que fui a um motel – e vou logo avisando: esta história não é aquilo que você está pensando –, guardo algumas lembranças, e nem todas são óbvias. A primeira: não fui de bolsa, como se espera de qualquer mulher. Fui com a mochila azul e verde da escola mesmo (mas tirei os livros). A segunda é ter engasgado na hora de falar para minha mãe aonde eu ia. Não me lembro o que inventei, só sei que colou. A terceira, mais significativa e menos óbvia de todas – também não é o que você está imaginando –, foi o documento que R. arrumou, sabe-se lá onde e como, autorizando-me a entrar ali. Eu não tinha dezoito anos.
Ele saca da carteira sua identidade e, em seguida, a “minha”. Peço para ver. Lá está: a dona. Sisuda, cabelos presos num coque démodé. O preto-e-branco da foto lhe dá ares de século passado. E a devastadora informação, constatada após breve cálculo: ela tem trinta e dois anos. TRINTA E DOIS. Quinze a mais que eu, naquele dia – agora você deve estar fazendo as contas, para liquidar a sua humana e previsível curiosidade. Na minha então adolescente opinião, a dona era uma velha senhora. Afinal, mulher de trinta e dois não faz mais isso. Já se aposentou. Uma ingenuidade incompatível com as minhas intenções naquele local.
Armei um bico deste tamanho. Onde já se viu? A dona sequer era parecida comigo, a recepcionista perceberia tudo, o programa romântico havia ido para o espaço. Em instantes, eu me tornaria uma impostora. E a falsidade ideológica, onde entrava? Sobretudo, quem era aquela mulher? Saberia ela o paradeiro de seu RG? R., macaco velho (eu não passava dum filhote de sagui), lascou uma gargalhada. Naquela noite, eu perderia muito mais do que um resto de inocência. Ali, comecei a entender como um documento pode não ter a menor importância, de vez em quando. O que explica tanta coisa neste mundo de meu Deus.
Quando, ainda criança, passei a fazer reflexões sobre as gerações, determinei: meus pais eram velhos. Muito velhos. Antes mesmo de eles terem a idade que tenho agora. Aos dez anos, qualquer pessoa acima dos vinte ganha automaticamente uma tenebrosa classificação: velha. Para quem tem dezessete, os trinta não passam de uma vaga projeção da vida, um esboço sem contornos definidos, jamais chegarão. Hoje, diante da notícia de alguém que infartou aos cinquenta, encho-me de consternação, Ah, tão novo! Foi apenas o ponto de referência que mudou. E isso não altera a órbita do planeta. Quando minha filha tiver dezessete, eu terei cinquenta e seis. Será que, assumindo que as coisas serão mais ou menos como são hoje, no dia D ela engasgará ao me dizer aonde vai? Por via das dúvidas, prestarei atenção à bolsa que ela estiver usando.
Se viva (nunca se sabe), a moça do coque tem hoje cinquenta e nove anos. Poderíamos ser amigas, trocar receitas e aflições – o gap já não seria tão abissal. Idade só é idade para quem a tem. Ponto final.
Quis o destino que, quinze anos mais tarde, eu me casasse. Aos trinta e dois. E não foi com R., que eu não lembro quantos anos tinha.
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Nota: o título desta crônica foi inspirado na música “Com mais de trinta“, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, um dos hits de 1971, quando eu tinha quatro anos. No link, a clássica interpretação da cantora Claudia, na época com 23 anos. Uma velha, claro.