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As cartas

Não sei jogar cartas.

Nada. Nem buraco, nem cacheta, nem rouba-monte. Por sinal, nunca ouvi alguém falar “rouba-monte” com ô fechado (embora seja o certo). Sempre foi “róba-monte”, com ó. Então, é róba-monte e cefiní.

Não que nunca tenha curtido um baralhinho, ao contrário; na juventude, passei tardes e noites jogando com irmãos, amigos. Nada contra, também: admiro pessoas que se reúnem alegremente em torno de uma mesa feltrada, registram os resultados, fazem apostas. Invejo quem embaralha as cartas sem amassá-las. Acho lindo quem grita “Truco!”, sabendo o que está fazendo.

Meu problema: esqueço todas as regras de todos os jogos. Esqueço tudinho. Se jogo no sábado, no domingo preciso relembrar. Se passar um mês, já era. Preciso contar com a boa vontade de algum jogador para me reexplicar as regras. Como se eu nunca as tivesse aprendido. Como se fosse a primeira vez. Nessa hora, eu testo o amor da família, a lealdade dos amigos, a compaixão de desconhecidos. A paciência, além de batizar o famoso jogo, é uma virtude.

Por isso a confissão: não sei jogar cartas.

Cheguei a acreditar que sou vítima de alguma maldição: “Jogarás, e depois não lembrarás como se joga”, teria proclamado a feiticeira má. Ou seria a Rainha de Copas? Pode ser, também, que eu padeça de grave disfunção cognitiva, onde uma área do meu cérebro bloqueia, ignora e não processa direito assuntos relacionados aos quatro naipes. Confundo Ouro com Copas. Qual é o coraçãozinho?

Afinal, como nascem os jogos de cartas? Quem inventa tanta regra? É tudo tão sem sentido.

O máximo que compreendo, razoavelmente, são os curingas: servem para qualquer situação. Como um bom vestidinho preto. Vestidinho preto é curinga. Disso, eu manjo.

Há vezes, no entanto, que tenho um déjà vu quando estou prestes a encarar o carteado. Uma pequena fagulha em minha memória faz algo soar familiar: “Tem que formar trincas em sequência”, “Ganha quem bater com as dez”.

E, mesmo com as regras rememoradas, não jogo direito. Distraio-me, invento uma DR entre o rei e a dama, imagino o valete liderando uma revolução do proletariado baralhístico. Deixo os outros ganharem, desejo que o jogo acabe logo.

Amigos e parentes chegados numa jogatina que me perdoem. Em matéria de cartas, só gosto de escrevê-las. Essas não têm regras. Podem ser de amor, lamento, fúria, saudade. E podem não ter resposta. Podem até – por que não? – virar um jogo.