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A mão que passa o esmalte

Foto: Eva the Weaver

E eu, que julgava ser uma mulher autossuficiente?

Que jurava por Deus ser capaz de me cuidar sem precisar de ninguém?

Que acreditava ter despontado no século XXI cônscia da máxima cabalista que garante estar em mim o poder para tudo?

Enganei-me bonito: não consigo pintar minhas próprias unhas. Logo, pouco ou nada disso é verdade. Caí do cavalo.

Havia decidido não mais gastar dezenove (dezenove!) reais por semana na manicure para tê-las feitas. É que fiz as contas do investimento, de hoje até o presumido fim dos meus dias, e tomei um susto. Considerando que também tenho pés com o mesmo direito (sem trocadilho) e fazê-los custa mais caro e nunca entendi o porquê, posto ser idêntica a quantidade de dedos.

Tudo pronto: ajeito, com rigor profissional, a parafernália sobre a mesa da sala de jantar. Alicate, lixa, algodão, palito de laranjeira, arsenal multicolorido de esmaltes, acetona, toalhinha, água morna. Trinta e cinco exaustivos minutos de trabalho: acho que tirei cutícula demais, pega mal ir à reunião com Band-Aid do Ben 10? Não domino o pincel, que aparenta ter vida própria. Extrapolo os limites geográficos de noventa por cento das unhas, tento corrigir. Será que acetona estraga a madeira da mesa? O palitinho escapa, derrubo o vidro de esmalte, apanho-o com a unha molhada, pronto, lá se foi mais uma. Esse algodão não presta, gruda em tudo. Alcanço o iPad no canto da mesa, vou no Google, “como remover esmalte de jeans”. Afinal, o que são dezenove reais? Apanho o telefone, Fulana tem horário para hoje?

Eis aqui, à revelia, minha declaração de dependência da manicure.

A manchete futura, no jornal: Dona Silmara Franco, 128 anos, vai ao salão fazer as unhas antes de receber a homenagem do Guiness Book como mulher mais velha do mundo. Não sei como serão os jornais em 2095, nem se ainda existirá o Guiness Book, muito menos se haverá manicures. Só sei que continuarei sendo uma mulher incapaz de esmaltar, decentemente, as próprias unhas.

Meu reino para saber se Angela Merkel consegue fazer, minimamente bem, sua manicure. Ainda que não precise; o ponto aqui é talento.

Com algum ensinamento e algum chão, sou capaz de produzir, processar e preparar meu próprio alimento. Costuro e tricoto minhas vestes, passo roupa com a mão esquerda, desenho um gato com os olhos vendados, tudo com relativa facilidade. Já pintar as unhas… É uma incapacidade definitiva, impassível de evolução. Falta em mim o gene responsável pela valiosa habilidade. Teria meu caso indicação médica para uma ressonância magnética, regressão, terapia de unhas passadas?

Que ninguém venha com coleção de frases do tipo “Querer é poder”, “Supere seus limites”, “Quem acredita sempre alcança”. Nenhuma delas se aplica à automanicure.

Que ninguém questione o hábito, também. Uma mulher de unhas (bem) feitas pode dominar o mundo. Assim que o esmalte secar, claro.

A cada tentativa de virar o jogo – na verdade, apenas três ou quatro, ao longo de quase três décadas de esmaltação – a história se repete. Diante do kit manicure sinto-me como uma criança de três anos apresentada ao mundo maravilhoso da tinta guache. Uma artista plástica pós-abstracionismo com referências no movimento punk e sob efeito de alucinógenos. Uma garotinha brincando de cabra-cega no terreno acidentado do parquinho da escola. A ideia de fazer uma poupança com os valores deixados semanalmente nos cofres dos salões vai, invariavelmente, para as cucuias.

Bem que queria, mas não estou nas mãos de Deus, como diz aquele adesivo de carro. Estou, irremediável e eternamente, na mão de quem passa o esmalte.