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Modo avião

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Se as crianças se estapeiam porque um chamou o outro de “burro” e o outro revidou com um eloquente “idiota” batendo a porta do quarto e quem levou a pior foi o gato que viu seu rabo por um fio, lanço mão da providência divina: entro em modo avião. E encarno os Três Macacos Sábios, em livre adaptação: não ouço, não falo, não vejo.

Se flagro, involuntariamente, o discurso gentefóbico da mocinha atrás de mim na fila do supermercado sobre o penteado diferentão do rapaz do caixa, permaneço serena com minha linhaça e minhas bananas, e entro em modo avião.

Em modo avião, estou presente, pero no mucho. Não recebo chamadas de pai, filho, espírito santo ou espírito danadinho. Não apitam notificações do espertalhão no trânsito, crente que ninguém o vê trafegando pelo acostamento. Não sou acessada por nada e ninguém, não quero saber quem pintou a mula preta e, ao contrário dos versos de Torquato Neto na voz dos Titãs, não quero saber nem do que pode dar certo.

Em modo avião, posiciono-me alheia aos dissabores, mantenho-me à parte de pepinos, abacaxis e enrascadas em geral. Em sincero offline, declaro que não estou. Deixe sua mensagem. Eu respondo depois. Ou não.

É preciso cuidado, porém, para não ativar, por engano, o modo avião de guerra. Aquele que solta bombas, lança torpedos, dá rasantes e toca o terror.

Criado para as máquinas, se bem aplicado à humanidade, o modo avião mental é tão poderoso quanto a meditação. É atalho para o nirvana, um “nem tchum” planejado e consciente. Uma bênção para tempos tão bicudos.

Ative o seu. E boa viagem.

Admirável (des)mundo novo

Ilustração: Ade McO-Campbell/Flickr.com

Eu envelheço e o mundo vai ficando cheio de novidade. Meus espelhos estão mais sinceros, e as propagandas, mais mentirosas. Às vezes, eu queria me trocar, me devolver; acho que vim com defeito. Minha translação é lenta, ando atrasada para viver. Parece que o sol se põe dum lado diferente a cada dia, brincando de ser e não ser. Confundo-me toda nessa giração. De quantas rotações somos feitos, afinal, no admirável (des)mundo novo?

Tenho Gmail, Whatsapp, Facebook, Instagram, Twitter e o diabo a quatro ponto zero. Com quem ou o quê, exatamente, isso tudo me conecta? Agora tudo é descobrível, decifrável. (Exceto o coração de quem (des)ama.) Os segredos de Fátima só permanecem ocultos para quem não tem WiFi, nem banda larga. As teias sociais capturam até os avisados. E longe, de fato, é um lugar que não existe. Só sei que dependo de água e fibra óptica para viver. Tem dias que preciso mais de uma que da outra. Não conto qual.

Vivo, com expansões em vez de contrações, num parto incessante de ideias desvairadas. Algumas já nascem mortas. Outras vingam e me dão tanto trabalho. Tento escrever meu diário, mas o presente vira memória num piscar de olhos. Sei que a cabeça está cheia quando passo a me procurar, o tempo todo, para conversar. Qualquer hora, mando dizer que não estou.

Alimento-me de atualizações, bebo a pressa, sempre com pressa, e arroto posts aleatórios. Embanano-me diante de tantas opções, no infinito self-service do admirável (des)mundo novo. No entanto, recuso o adoçante, o light, o diet. A vida precisa ser integral.

Dei frutos. Eles continuam rentes ao meu tronco, lambendo minha seiva diária. Eu os protejo e lhes dou sombra. São meus admiráveis filhos novos. Vou imprimindo em meu corpo cicatrizes em forma de tatuagem, enquanto a da cesárea vai desaparecendo. É um recado.

Na admirável (des)ordem nova, os pecados são mais complexos. Os dez mandamentos já se multiplicaram: “Não compartilharás em vão”. Desobedeço ao menos um, todos os dias. Deus, eternamente online, nem liga. Testo sua onisciência, imito sua onipresença e não espero pelo castigo. Ele é moderno. Eu, não.