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Crônica de minuto #59

Quando eu era pequena, meu pai nunca mandava a gente colocar o cinto de segurança no carro. Porque ninguém usava cinto de segurança naquela época. Os carros vinham equipados com o acessório, condenado a permanecer intacto, enroladinho sob o banco, exatamente como saíra da fábrica. O quanto viajamos no Fusquinha! Todos tão soltos quanto minha imaginação a cada curva da estrada de Santos.

Hoje, quando meu pai entra no carro eu preciso, invariavelmente, pedir para ele colocar o cinto de segurança. Ele, que já foi motorista de táxi, nunca se lembra. Porque nunca usou. Ele sempre se atrapalha. Eu sempre fico irritada e tenho de ajudá-lo na tarefa banal. Ele sempre reclama que o cinto deve estar com problema. Eu sempre peço a Deus que me dê paciência com quem tantas vezes me levou passear de carro.

Eu sei o real significado dos três pontos dos cintos de segurança. Pai, filha e Espírito Santo.

Amém.

Deus salve os stewards

Steward: profissional que cuida da segurança interna dos estádios. Ficam de plantão nos pontos nervosos, como entradas de vestiários e acessos às arquibancadas. No campo, postam-se de costas para o jogo, em constante vigilância da torcida. Missão: apaziguar os mais invocados, garantir que nenhum engraçadinho tente beijar o Messi. Colaborar, enfim, para que tudo saia nos conformes.

Deus salve os stewards.

Stewards não se distraem ou olham para os lados. Para trás, o campo, nem pensar. (Penso nos cavalos obrigados a usar anteolhos, para que enxerguem somente o caminho à frente.) Stewards não estão ali para torcer. Não assistem um minuto sequer dos noventa. Sentem que tem gol a caminho pelo crescendo da galera. Sabem do lance perigoso porque a arquibancada treme. Veem refletidas no convexo coletivo dos olhos dos torcedores cada bola na trave, cada pênalti cobrado e pago à vista.

Stewards dispensam qualquer emoção, perdem os melhores lances, não acompanham a engenharia da partida. Sou eu que vejo, pela tela HD, a gota de suor na testa do jogador da Bélgica. Eu que decifro a tatuagem do Sneijder. Eu que testemunho a L3 do Neymar ir para o beleléu. Stewards vão à Roma e veem o Papa pelo replay.

Stewards são impávidos. Stewards não comemoram. Stewards não tiram selfies. Stewards não paqueram as musas. Stewards são os excluídos da festa. Foram convidados mas não podem dançar, nem tomar umas. Estão de castigo. Lembram? Antigamente, colocavam-se as crianças de castigo viradas para a parede. A torcida é a parede do steward.

Stewards não roem as unhas, não agitam bandeiras, não xingam, não rezam. Mas também não infartam. O que os olhos não veem, o coração não sente.

Stewards são muitos, uniformizados, mas é como se não estivessem ali. A invisibilidade é verde e laranja.

Deus salve os stewards.

O dersubu das amensons

arte: Károly Kiripolszky
arte: Károly Kiripolszky

Tente concluir alguma operação na internet – qualquer uma: deixar comentário no blog da comadre, comprar um livro ou enviar um simples email – e lá estarão elas. Implacáveis, desafiadoras da sua acuidade visual, insensíveis à sua pressa e, sobretudo, descrentes de que você é você. São as palavras de verificação, remédio amargo inventado para combater a doença do spam. Prescrito a todos, sem exceção. Até para quem não apresenta sintoma algum. Prevenção pura. É assim nas epidemias.

Como num jogo eletrônico, a função da palavra de verificação é impedir que você passe de fase. Um malévolo programa tentará lhe confundir: é um “i” maiúsculo ou um “L” minúsculo? A letra ó ou o número zero? Ele borrará o fundo, enfiará rabiscos no meio, distorcerá as letras. Sacaneará você, sem cerimônias. Um carrasco virtual, inexplicavelmente piedoso: serão-lhe concedidas quantas chances, ou vidas, você precisar. Ao detectar seu erro, outra palavra se apresentará e, diante do segundo equívoco, nova mistura alfanumérica, igualmente incopiável. E assim sucessivamente. O verdadeiro intuito não é auxiliá-lo, e sim testar seus brios. Checar até onde você está determinado na sua intenção. Até a hora em que seu chefe se planta ao seu lado, o telefone toca ou seu filho prende o gato no armário, e você deixa a verificação para lá. Não era nada tão importante assim. Depois você telefona para a comadre. Vai até a livraria e compra o dito cujo. Manda uma carta pelo Sedex. Mais fácil.

As palavras de verificação não são exatamente palavras. Oficialmente, são “imagens”. Para livrar dos tribunais quem as inventou, evidentemente. No entanto, se o objetivo é detectar se tem gente do lado de cá do computador, é incompreensível que não surjam de forma simples como banana, arara, cogumelo, casa. Não: tem que ser o indecifrável dersubu. As enigmáticas obvent e pargampu. A etérea amensons e a indizível muthst. Para não errar, você se concentra e, usando apenas o indicador, digita uma letra de cada vez. Confere na tela e, estando tudo correto, parte para a próxima letra. Sensação idêntica, para os mais velhos, a da primeira vez a sós com uma Olivetti.

Você fica na dúvida se a tecnologia está, de fato, a seu favor. Ou se é um movimento organizado em prol do idioma da nova era, conduzido por extraterrestres detentores de alta tecnologia, infiltrados em nosso planeta. Justo agora, que você aprendeu a se expressar em cento e quarenta caracteres e já havia se conformado com o huashuashua das mensagens instantâneas.

O futuro é incerto. Melhor se preparar.