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O pesadelo da ambulância

r8r, óleo sobre canvas, 16x20/Flickr.com

Sei que é hora de renovar a lingerie não quando o marido dá indireta, mas se imagino a sequência de cenas: bato o carro e preciso ser levada ao hospital; na ambulância do SAMU, os paramédicos fazem os primeiros socorros; rasgam tudo e, enquanto conferem meu coração, flagram meu sutiã, um dia alvíssimo, convertido num estranho off-white; as alças, semirretorcidas, a denunciar a terceira idade da peça; em seguida, apalpam meu abdome em busca de algum sinal de hemorragia; assombrados, descobrem a imensidão de microbolinhas em torno do esgarçado elástico da calcinha, cujo lacinho frontal há tempos foi para as cucuias, e em seu lugar há apenas a marca do ponto feito à máquina. Fosse real, o melhor a fazer seria fingir-me de inconsciente.

Não é desprezo pelas roupas íntimas. É uma justificável resistência a investir nessa categoria de vestuário – apesar de eu reconhecer sua beleza e, digamos, importância. Ao contrário do que parece, tenho disposição para adquirir novas roupas de dormir e sonhar e amar. Porém, na hora do vamos ver, entre dispender um salário mínimo em peças de baixo (as boas custam uma fortuna) e a mesma quantia nas de cima, eu vacilo. O íntimo que me perdoe, mas o público é fundamental. As de baixo ficarão, como o próprio nome diz, por baixo. Ocultas. Nem eu as vejo direito, quando estou vestida. E o que os olhos não veem, o coração ignora. Volto para casa com vestido novo. Sapatos e bolsa também. Sempre acho que fiz um bom negócio. O arrependimento vem quando lembro da ambulância do SAMU. Tarde demais. Agora, só mês que vem.

Talvez a síndrome não atinja apenas as minhas roupas íntimas. Outras seções do meu guarda-roupa também costumam ser afetadas, e não é de hoje. Nos tempos de faculdade, por exemplo, certa madrugada dei carona à amiga, depois de uma noite inteira estudando em casa. A ida se deu sem novidades. A volta, nem tanto. A garoa caía fina. E havia uma curva no meio do caminho, no meio do caminho havia uma curva. Resultado: engavetei no Minhocão. Fomos todos – eu, minha irmã (que estava no banco do passageiro) e demais motoristas envolvidos – à delegacia providenciar o boletim de ocorrência. E eu, com o pior pijama do meu prejudicado acervo. Como nesses lugares há de tudo, passei despercebida.

Um lento assassinato do casamento, três ou quatro amigas insistem em profetizar quando o assunto vem à tona. Que mentira, que lorota boa! O que destrói um relacionamento não é lingerie velha. São outras velharias, escondidas nas entranhas do dia-a-dia. Ideias, ilusões e desejos frouxos, um dia tão firmes como os elásticos da charmosa meia sete-oitavos. Um olhar desbotado para a paisagem do quarto. Sorrisos amarelados no café-da-manhã. O ‘eu te amo’ surrado e sem brilho, dito às pressas para encerrar a ligação. É o amor sem laço, nem fita, nem bordado. E nenhum atendimento de urgência resolve. São coisas mais danosas que qualquer desfile de calcinhas e sutiãs acostumados a máquina de lavar, alvejante e varal.

Melhor eu redobrar a atenção no trânsito.