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Biometria

“Passé/Futur”, an untrained eye, 2008

Eu não gosto do leitor biométrico do caixa eletrônico. Ele duvida da palma da minha mão. Pacientemente, reinicio o procedimento, já hesitante acerca da própria identidade. Será meu destino tão nebuloso assim?

Após cinco tentativas, ele cospe meu cartão e diz que não pode realizar a operação. Tenho garantias de RG a oferecer, nome de pai e mãe, data de nascimento. Ele desdenha. É a quiromancia digital, com previsões nada animadoras acerca do meu saldo.

A praça da Sé era meu caminho na volta do colégio. Ao sair da estação do metrô, era preciso fugir do assédio das ciganas, legítimas ou falsificadas, espalhadas ao longo do calçadão, seduzindo os ingênuos com a promessa de revelar-lhes o futuro através das linhas das suas mãos. Aquele negócio de adivinhação, pensava, não devia pagar bem. Eram todas maltrapilhas, geralmente descabeladas e invariavelmente desdentadas. Pegavam pesado na maquiagem, quase sempre nos mesmos tons dos seus vestidos multicoloridos e de suas bijuterias ordinárias. Eu andava apressada, mas havia tempo de observar os que caíam nos seus contos. Às vezes, um resto de previsão chegava aos meus ouvidos, “Você vai se casar no ano que vem”.

Bancos e ciganas são semelhantes. A cigana pega seu dinheiro e depois lê sua mão. O banco lê sua mão e depois lhe dá o dinheiro. Os dois querem sua grana. Ambos lhe enganam, e com a sua autorização.

Eu dispensava as ciganas da praça, já sabia meu futuro: dali trinta minutos, devoraria um pratão de arroz, feijão e “mistura” em frente à TV da sala. Era hora do almoço e eu chegava em casa faminta, depois de cinco horas de aula. Também sabia meu futuro, logo após a sobremesa: descansar um bocadinho e pegar os livros. Preparar-me, enfim, para o futuro que parecia tão distante. Eu que li errado; o futuro era logo ali. Às vezes, penso que ele já passou.

Faço nova tentativa. Posiciono minha mão, dedos estatelados como mostra o desenho no painel. Seguro o ar para não movimentar nenhuma impressão digital. Tenho a impressão de que a máquina me olha com olhos de big brother, e também analisa meu penteado, confere minha roupa, será que gosta da minha echarpe de bolinhas? Eu confiro o tempo lá fora, vem chuva.

Que revelações o leitor biométrico do caixa eletrônico, esse cigano de lata e plástico, me reserva? Terei sorte no amor? Farei uma grande viagem? Viverei feliz para todo sempre? Ou serei assaltada na saída?

A biometria diz que eu sou única. Mas só a cigana fala de amor.

Previsão vencida

Arte: D.Boyarrin
Arte: D.Boyarrin

Gosto de folhear revista velha. Há várias, em casa. Umas, por distração, outras por puro apego – um artigo, uma fotografia, um insight que merece ficar. Mantê-las por perto é quase uma garantia.

Alcanço um exemplar que jaz no revisteiro do banheiro. Nossos revisteiros são os mais desatualizados da paróquia, praticamente museus da imprensa. Abro-a aleatoriamente, não busco nada especial. Igual quando entro em uma loja e a vendedora vem perguntar se pode ajudar e eu digo “Estou só dando uma olhadinha”. Então, eu estou só dando uma olhadinha na revista.

Chego na parte do horóscopo, que quase sempre não me atrai. Não é endereçado a uma pessoa que nasceu no dia sete de maio de mil novecentos e sessenta e sete, às vinte horas e trinta minutos, na capital paulista, no bairro da Mooca. Mesmo assim, procuro meu signo. Tem coisa que a gente não bota fé, não dá bola, nem assina embaixo, mas tem curiosidade. O texto começa mal: “Muitas pessoas viajam em agosto”. Não me diga! Frase válida para os outros onze meses também. Sempre vai acertar. Continua: “Três dias antes ou depois do dia 31 de agosto, planeje uma tarde encantadora com os amigos”. Combinado: enviarei agora mesmo um e-mail às minhas amigas, convidando-as para um chá. Mas avisarei que a data fica em aberto, podendo ser nos dias 28 ou 3 de setembro. Elas que se virem com suas agendas.

Mais adiante, epa. O que está escrito ali bem que tem a ver. Acomodo-me, tomo gosto no que leio. Num súbito, busco a capa: agosto de 2012. É agosto de 2013. Estou um ano atrasada.

Se a tendência astrológica deu uma volta completa em torno do sol, significa que suas causas e condições retornaram ao ponto de partida e a previsão pode ser considerada fresquinha?

Não, claro que não. Assim fosse, a vida seria uma eterna repetição de acontecimentos, com data e hora marcadas.

Tirante o negócio da viagem e o chá com as amigas, busco na memória se a previsão que me interessou faria sentido, doze meses atrás. Não, não faria.

E nem faz hoje – apesar de que não seria nada mal. Mas não como comida fora do prazo de validade, não tomo remédio expirado. Por que haveria de dar ouvidos a uma previsão vencida? Por mais que sua, digamos, aparência esteja boa?

Previsão não tem conservante, também fica velha. Estraga. Se insistir, é dor de barriga na certa.