Arquivo da tag: veículo

O banco da frente

fusca

Nina, a caçula, completou dez anos. Já pode ir na frente. Fez valer seu direito nas primeiras horas da nova idade, apropriando-se do banco dianteiro do carro. Sentiu-se, enfim, mais gente do que no dia anterior.

Eu não lembro de quando fui autorizada a andar na frente no carro do meu pai – se é que houve, um dia, a permissão oficial. Mãe moderna que sou, sei de cor idade e altura mínimas exigidas pela lei, as regras das cadeirinhas. Nada disso habitava o mundo dos meus adultos. Era comum o cinto de segurança permanecer, por toda a existência, enroladinho como viera da fábrica (quando tinha). Sarampo no passado; WhatsApp no presente… As preocupações dos pais são como o comprimento das saias: mudam de uma época para outra.

Luca, treze anos, usufruiu o monopólio por quase três anos. Veterano, e ligeiramente a contragosto, cedeu o posto. Também recordo-me de seu estado de graça quando pôde ir na frente e passou a controlar o som. Foi preciso repartir as memórias disponíveis no aparelho, para acomodar as minhas estações de rádio e as deles. Há duas semanas, na qualidade de mãe e prevendo confusão na hora de ir para a escola, fui rápida na sentença: “Na primeira briga, os dois vão atrás por tempo indeterminado”. A intervenção materna encerrou-se ali e o consenso foi celebrado: uma semana de cada um. Uma decisão salomônica em relação ao pobre banco do passageiro não foi cogitada, para meu alívio.

As conquistas da mobilidade humana nas primeiras fases da vida são: engatinhar. Andar. Ir sozinho à padaria. Viajar com a turma da escola. Tomar um ônibus até o centro. Para todas, há o correspondente veicular, representando a hierarquia dos assentos: tudo começa no bebê-conforto. Depois, a cadeirinha. Assento elevado. Diretamente no banco de trás, sem cadeirinha – a glória. Pré-ápice com gostinho de apogeu: o banco do passageiro e o horizonte das ruas, agora desnudado e sem interferências. E para coroar, mais adiante, o banco do motorista. A validação simbólica da maioridade, a consagração da independência.

Por ora, Nina segue igualmente encantada com o recém poder sobre o som, assim como Luca o foi, há alguns anos. Ele agora tem nova meta: a minha posição de motorista. Conta os anos que faltam para a habilitação. Quer entender cada controle do painel, saber como se sai na ladeira usando o freio de mão.

Eu, que não só ando no banco da frente do carro, como o conduzo há três décadas, confesso: às vezes, tudo que desejo é um banco de trás para chamar de meu. Porque no imaginário da mulher cansada é o assento que melhor representa a tranquilidade de não estar nem aí com horários, rotas ou pessoas esquisitas que surgem nos sinais. Quem dera poder, de vez em quando, instalar-me numa espécie de bebê-conforto gigante e ser apenas levada e trazida. Com o direito de dormir na ida e na volta e ser prontamente atendida em caso de fome. E onde meu campo de visão abarcasse, pela janela, apenas um pedaço de céu azul.

Andar a pé eu vou (que o pé não costuma falhar)

Arte: TataliaL

De casa até o próximo compromisso são três quilômetros. Tenho a opção de ir de carro, como de costume. E posso também rodar dois quilômetros e quatrocentos metros, deixar o carro lavando no posto de combustível (necessário, após sessão de biscoitos e chicletes no banco de trás) e fazer o restante do trajeto de seiscentos metros a pé.

Verifico os calçados: sapatilhas. Conforto garantido, lá vou eu, ineditamente, de segunda opção. Eu, que não tenho vocação para andarilha. Sou feita de rodas. E meu motor, no quesito exercício, não é flex.

“Lavagem simples, por favor. Não, não precisa de jet cera”. Apanho o canhoto onde a placa do bólido está escrita num garrancho e me despeço, “Volto lá pelas tantas”. Estreio a calçada fervente e meus neurônios se agitam em divertidas sinapses. Para conferir as novidades do velho trajeto, nada como mudar a posição e a velocidade do observador. A pé, tudo fica em câmera normal. Lenta, não.

E em câmera normal, observo o inobservável a sessenta por hora. Dez vezes mais rápido do que as coisas, de fato, acontecem. Não te contaram?

A pé, sou autorizada a seguir pela contramão e dou de cara com vistas nunca dantes vistas. Vejo, de frente, meu caminho ao contrário. É a vida em ré maior.

Passo pelo balão e sua dinâmica circular. Estou no centro de um carrossel urbano. Ao meu redor, cavalos de cento e vinte motores.

Desço a rua, vejo a placa cravada em frente à uma casa, anunciando a panaceia milagrosa à base de babosa que promete tratar tudo. A cura do câncer, quem diria, está num jardim!

Continuo.

A pé, as casas parecem maiores no close do olhar, da audição e do olfato. Maximizo os sentidos para decupar outra dimensão da rua, aquela que normalmente não acesso do meu aquário 1.4 com oxigênio-condicionado.

Vejo meus filhos na porta de uma escola em horário de saída. Mas não são os paridos; são os filhos dos outros. No trânsito de mochilas de rodinhas, um chama “mãe” e eu atendo, instintivamente, com olhar e ouvido atentos. O timbre infantil é coletivo. Uma vez mãe de um, mãe de todos.

Continuo. Sou a versão feminina de Johnny Walker.

Tanto lixo, vontade de sair varrendo tudo. A cidade também é minha casa. Minha casa grande e minha senzala. Sou dona e escrava da rotina urbana. Quero alforria sem açoite.

Atravesso. Meu GPS interior avisa: “Você chegou ao seu destino”.

Três horas depois, tomo o rumo do posto. Para concluir a round trip, escolho o outro lado da calçada para imprimir minhas próximas pegadas. Novo ângulo, novas fotografias: trilhas de formigas apressadas, ipês amarelos batendo papo, gente falando sozinha, restos de construção, um edifício-cadáver, minha sombra no muro.

Por trinta minutos – quinze para descer a rua na ida, quinze para subir na volta – , fui uma recém-chegada à cidade. Meus olhos de migrante-por-um-dia viram o que o cidadão motorizado não vê. O que, ao lado de ter o carro limpo novamente, não deixa de ser uma vantagem.

Nota: comecei esta crônica crente que estava abafando com o título. Porém, depois de uma rápida busca no Google, percebi que há nada menos que 4.470 ocorrências dessa expressão. Ou seja: mais difícil que me por para caminhar é ser criativa na internet.