O que quer o homem que ultrapassa

Da série “Veículo curto”, 2012 – Simone Huck

Só ele ouviu o disparo imaginário do tiro de partida: engatou a primeira, a segunda, costurou, ziguezagueou. A lanterna traseira de seu bólido acendeu cinco vezes em menos de vinte segundos. Tanto esforço para nada: acabou em penúltimo lugar na prova dos cem metros nada rasos do quarteirão encalacrado. Conquistou morno segundo lugar na pole position do sinal fechado.

Afinal, o que quer o homem que ultrapassa? Salvar o planeta, pegar a padaria aberta ou fazer xixi?

A ultrapassagem rápida e feroz preenche sua rotina de ideias lerdas e inócuas. A descoberta da velocidade lhe é soberana à da roda. Missão: ultrapassar o impossível. Quebrar recordes invisíveis. Nascer a cada esquina, parido pelo motor dos duzentos cavalos selvagens e esfomiados. Chegar primeiro ao infinito e além, mais conhecido como nada.

O homem que ultrapassa participa da corrida sem prêmio, encara desafio sem competidor, vive da glória sem devoção, da fama sem fã. Viciado em tempo, tem fantasias com o podium, delira com a linha de chegada que teima em lhe escapar. Morre na praia.

Estamos, ele e eu, sob o mesmo céu, sobre o mesmo asfalto a nos sustentar. Todos de passagem.

Talvez seja um homem sem quereres, feito de estares: à frente, ao alto, avante, em eterna vantagem. Para construir, em prazo recorde, a breve história de seu dia. O que você quer, homem de Deus, ao deixar o mundo para trás? Se nem conhece o que vem pela frente.

Perco de vista o homem que ultrapassa. Apressado, se foi no sumidouro da avenida, desapareceu da minha crônica.

Talvez, no fundo, ele tenha a valentia que me falta, a ousadia que não me pertence. A coragem de que não sou feita. Sou o seu veículo longo. Freio é medo.

Ultrapassada estou.

4 comentários em “O que quer o homem que ultrapassa

  1. Sempre me pergunto o que pensa aquele que ultrapassa e dias desses, vi uma cena que levei algum tempo para assimilar. Parecia um filme e eu a espera de um replay. O carro em que estava foi ultrapassado por um outro veículo cujo ocupante reclamou, esbravejou e usou todo o seu armamento de palavras indóceis. Mais a frente. Vinte e três de maio. Quase nove horas da noite, ele havia se chocado com um daqueles pilares. Perdeu o controle do carro. Tudo isso a minha frente. Não sei o que houve com ele, mas isso ficou comigo durante dias…

    Agora, quanto ao final da sua crônica, eu me acho ultrapassada desde sempre. rs
    bacio

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  2. Eu vejo uma explicação entre várias possíveis: existem pessoas que não são capazes de ver ninguém à sua frente! Bjs, Tereza

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  3. Silmara, certamente que há de ter uma explicação para as atitudes desses loucos ao volante. Uma pressa que não leva a lugar nenhum. Não economiza tempo, antes desperdiça a vida, com a adrenalina à solta, o stress à mostra. Sei não. Só sei que, no fundo, são pessoas problemáticas. Por que se adoram a velocidade, simplesmente, uma rua ou avenida ou estrada não é seu lugar. Melhor procurar uma pista para corridas. Beijo!

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  4. Eu sempre achei que este homem que ultrapassa deveria ser preso por porte ilegal de arma …. porque neste caso, o carro é uma arma!

    Nunca pensei que esta atitude “preenche sua rotina de ideias lerdas e inócuas.”
    Fantástico!!!!!

    Bjs
    Rose

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