Regras

cafe

Meu irmão implica comigo.

Diz que tenho que tomar a água, aquela que vem no copinho acompanhando o espresso, antes. E depois, só depois, o café. “Para limpar as papilas gustativas e apreciar melhor o sabor do café”, ensina. Eu sempre tomo a tal água do copinho depois. Às vezes, nem tomo. Gosto das minhas papilas gustativas sujas, mesmo.

Assim, o sabor do café se mistura ao sabor de tudo que comi antes de encontrá-lo à tarde na padoca – o pão com manteiga na chapa e o suco de uva e a banana prata com Nutella no desjejum, eventualmente um teco do bolo que deu sopa na bancada da cozinha no meio da manhã, o arroz, o feijão, a salada, a berinjela gratinada, a couve no alho do almoço – e então construo o gosto da minha vida. Que nem sempre é doce.

Meu irmão pode estar certo, tecnicamente falando. Alguém, um dia, pensou nisso, testou, provou cientificamente, estabeleceu a regra que se espalhou, foi parar nos livros, teses e tratados sobre o tema.

Como já sou desregradamente apaixonada por café, se seguir o preceito talvez eu alcance o nirvana. Talvez desenvolva a paciência, atraia a prosperidade, perca a barriga, cresça dez centímetros, me transforme em uma nova mulher. Enfim, talvez tenha a autêntica experiência do bom café, e tudo graças a uma simples inversão na ordem das coisas.

Balela.

Regra boa é aquela validada pela alma. A que faz sentido, desde antes de fazer sentido. Quem pensam que são os cafeólogos, para se meter nas minhas papilas gustativas?

E meu irmão vem encher meu saco. Logo ele. Que a vida inteira, antes de aprender isso, fez o contrário (água pré, café pós) e, asseguro, era feliz. (Nem vou relatar meu sofrimento quando o assunto é vinho.)

Eu, pura maldade, faço questão de provocá-lo.

Nossos cafés chegam. Ignoro o pobre copinho de água borbulhante ao lado. Abro o saquinho de açúcar, despejo-o na xícara, mexo, apoio a colherinha no pires e sorvo a bebida. A essa altura, as papilas gustativas dele já tomaram banho, seu copinho de água jaz vazio e ele se prepara para sua experiência lisérgico-cafeística conforme o manual. Finge serenidade, apesar da desaprovação à minha blasfêmia cafeeira.

Mas eu reparo; ele está desconfortável, se remexe na cadeira. Seus dedos tamborilam nervosamente sobre o jogo americano de ráfia amarela. Ele mira o horizonte, coça a cabeça, suspira. Puxa assunto. Respondo e meu bafo mescla resíduos do grand cru e da berinjela gratinada. Ele, silenciosamente, começa a rezar por minha alma.

Dou o último gole no café. Apanho o copinho de água.

Seus lábios inferiores tremem.

Bebo a água.

Ele enxuga a testa.

Eu estraguei tudo.

Ele desistiu de mim.

5 comentários em “Regras

  1. Sorvi sua crônica em doses pequenas pra saborear cada parágrafo devidamente. Assim como tomo café, que como você, também adooooro. Só que sem açúcar desde os 13 anos. Dois dos meus filhos tomam sem açúcar há uns dois anos e passaram a ser apreciadores de bons grãos à partir de então. Quanto à água eu também tomo (quando tomo…), depois do café. Pra terminar, quero dizer que gosto dos seus escritos tanto quanto de café. Beijos!

    Curtir

  2. Nem digo nada, só aplaudo. Como sempre, delícia de crônica.
    Também sempre bebi a água depois do café.
    Sobre o comentário da Rosana, tenho ouvido demais que café sem açúcar é que é café. Meu marido bebe, meu filho, minhas filhas, mas eu não me “arrisquei” ainda. E em casa só passo o café já com a água adoçada. Colocar açúcar depois não me apetece.
    Clodovil sempre servia café em seus programas e dizia que o verdadeiro apreciador de café bebe-o sem açúcar.
    Aí vem outra crônica, pode ser? rsrs
    Beijo, Silmara.

    Curtir

  3. Ai que delícia de crônica!! Altamente degustativa e repleta de aromas e sensações. Café é bom de qualquer jeito. Cada um saboreia como quer e gosta. Agora… Seus textos têm sabor único Silmara!! Sempre saio daqui satisfeita. Bjs

    Curtir

  4. Essa Rosaninha aí sou eu, viu? E de café eu entendo. Te contar um trem: o dia que você provar – por cinco vezes seguidas, sem desistir, e aí se acostumar com o café sem açúcar vai entender que o que toma e gosta até agora é só algo parecido com café.

    Curtir

Quer comentar?