Sentado à beira do caminho

Ilustração: Nerosunero/Flickr.com

Não gosto de ver sofá abandonado. Aqueles, rejeitados em seus lares e despejados anonimamente nas avenidas, canteiros, praças, terrenos baldios. Exilados de suas salas, condenados às intempéries da solidão urbana. Separados do abajur, distantes do tapete. Alguns em razoável estado, até. Nunca há alguém neles, lendo jornal enquanto o ônibus não vem, tirando uma soneca ou simplesmente sentado à beira do caminho. Em vez do living room, por que não a rua de estar? Nem o gato vadio precisa dele para afiar suas unhas. O vira-lata não quer trepar nele. Descontextualizado, o sofá na rua é o inusitado que passa batido, a travessura impune do anticidadão.

Ele, que já fez bonito nas lojas. Ele, entregue por rapazes uniformizados e recebido em casa com festa. Ele, zelado diariamente pela dona do lar com paninho e multiuso, onde o caçula era proibido de traçar um bife. Ele, cujo plástico da embalagem foi mantido até dois meses (ou mais) após a compra. Ele.

Culpa do tempo, esse implacável. A espuma, carcomida, já não sustenta a família. Aparecem as primeiras manchas de senilidade. As molas falham, surgem os nhecs. Com a chegada do Natal, o decreto: perda total. Não vale a pena reformar, é o preço de um novo (e ainda dá para dividir no cheque). A instituição de caridade não manifestou interesse, teriam que consertar para oferecer no bazar. O negócio é substituir. Sem ideia melhor, as vias públicas acenam com a única e possível solução. “Alguém passa e leva”. Lá vai ele, viver ao ar livre. Fazer sala para ninguém. Assistir a TV aberta das ruas. Quem mudou o canal?

Como ele vai parar ali é mistério. Sofá, cá entre nós, não é objeto de fácil descarte, como latinha de cerveja, embalagem de biscoito, bituca de cigarro. A menos que origem e destino estejam num raio de trinta metros, o transporte de um exemplar, de dois ou três lugares, requer planejamento e algum muque. A caminhonete do namorado da filha. A Kombi do vizinho. A calada da noite?

Há quem se compadeça e o retire do abandono, enxergando nele a serventia do passado. São os sofás adotados. No novo lar, ele ganha revestimento bacana, espuma da boa. Igual cachorro andarilho recolhido por alma caridosa, fica tinindo, late de alegria. E é fiel ao seu novo dono. Até que a chaise longue, aquela da novela, os separe.

3 comentários em “Sentado à beira do caminho

  1. Vc falando dos sofás me fez pensar nos velhos. Em nós, velhos. Ai, que dor…descartáveis… Tomara o tempo ajude a me preparar para tal dia, quando como o sofá de rua, sofá de ninguém, eu seja abocanhada pelas horas do dia…
    Triste mas filosófico teu texto…
    Bjs

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  2. Nada dura pra sempre. O amor tem prazo de validade, até mesmo pelo sofá. Pra que correr atrás das coisas? Quero sentar num desses, esquecidos que ninguém nota, e que assim seja só meu. Me abandonar ali, cúmplice, assistindo ao canal aberto da vida.

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  3. Descartável!!
    Nossa, isso deixou um vácuo no meu pensamento…
    Pensando, pensando, pensando…
    Sociedade de consumo…
    Seres humanos de plástico…
    Objetos tão parecido com pessoas…
    O sofá: o outro humano…
    Sinapses mil aqui.
    Obrigada por isso!
    Bjs
    Si

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