A tatuagem

Ilustração: r8r/Flickr.com

Sonho dos mais esquisitos, aquele. Ele brincava com um garoto que não conhecia, numa casa que não era a sua. Vivia uma vida que não era a dele, num tempo que não era agora. Na casa, a escada, muito alta, não o deixava ver aonde ela ia dar. Vinha do andar de cima, porém, a música que embalava a brincadeira dos dois. E alguém cantava junto. O menino montava cavalinho em seus ombros, ele dava um pinote e lá iam ao chão, entre almofadas gigantes e coloridas, acabando-se em gargalhadas. Foi numa das piruetas que reparou. Em seu antebraço direito, um desenho que ele não sabia como fora parar ali. Que diabos, uma flor? Esfregou-a com os dedos, não saía. Era uma tatuagem.

Acordou banhado, os lençóis ensopados, sensação de não estar só. Acendeu o abajur e, desesperado, verificou o braço. Nada havia ali, além da fitinha de Nosso Senhor do Bonfim, puída e desbotada. A fé cabe num trapo. Mais intrigado que surpreso, tentou dormir de novo. E o medo de continuar a sonhar, viver o próximo capítulo, ter a flor impressa em seu braço, quem era o menino, que música era aquela, meu Deus? Melhor ficar acordado. Sentou-se na cama, cobriu-se com o edredom – era inverno – e pôs-se a contar os trens que chegavam à estação do metrô, vizinha ao seu prédio. Noventa e oito trens depois, hora de levantar.

Passou a semana incomodado. A urgência em enxergar o que (ainda) era invisível. A toda hora dobrava a manga da camisa: sentia-se tatuado. Na sexta-feira não foi trabalhar. Ligou para o escritório, deu uma desculpa qualquer. Apanhou a lista telefônica. Tatuagens artísticas, página trezentos e trinta e seis.

Seu avô, pai de seu pai, ensinara: “Os conselhos dos sonhos são os melhores”. Dizia que era através deles que os anjos falavam com a gente. Ele sempre achara que os anjos eram mudos. Ou que não queriam papo. Até aquela vez. Tem lição que a gente aprende, mas fica dormindo dentro de nós. Como urso hibernando. Um dia, ela acorda, ou brota. Não é preciso temê-la. Urso, sim.

No estúdio, acharam estranho homem tatuar flor. Ele também. Mas lembrou-se de outra do avô: “Um homem deve sempre ter uma flor à mão”. Quis, então, que fosse igualzinha à do sonho. Mostrava o antebraço ao tatuador, “Aqui, assim…”. Enquanto o moço imprimia o desenho em sua pele, transpirava como naquela noite. O ruído dos cinzentos trens elétricos agora era substituído pelo zunido – também elétrico – da agulha.

Segunda-feira. Da plataforma onde aguardava o trem, avistou seu apartamento. Com o dedo indicador no ar contou os andares, até chegar ao décimo segundo. Terceira janela da direita para a esquerda, seu quarto. Era dali que seus sonhos saíam para passear. Espantou-se com a quantidade de gente que dormia sobre ele, ao lado, embaixo. Imaginou todos sonhando ao mesmo tempo.

Como sempre fazia, aguardou no lugar onde, sabia, as portas do quinto vagão se abririam. Este o deixava em frente à escada rolante na estação onde descia. Assim ganhava tempo. Viu os faróis do trem surgirem ao longe, miúdos. Ajeitou a gravata. Não deu bola ao primeiro nem ao segundo vagão. Mas o terceiro, ah! O terceiro trouxe a moça. Sentada, rosto recostado à janela, uma tristeza no olhar do tamanho de um bonde. Ou de um trem. Ele nunca havia sonhado com ela. Mas agora, passando à sua frente, ela parecia um sonho. Apressou-se em alcançar seu vagão, a escada rolante poderia ficar mais longe desta vez. As portas se abriram, “Com licença, com licença”, foi pedindo. Na confusão, a fitinha do Bonfim caiu. O banco ao lado dela acabara de desocupar. Não perdeu tempo: sentou-se, desabotoou o punho e dobrou a manga da camisa até o cotovelo. Colheu a flor do braço e lhe ofereceu. Mais intrigada que surpresa, ela tirou os fones do ouvido e o encarou. Ele, então, reconheceu a música.

O avô estava certo.

12 comentários em “A tatuagem

  1. (Com bejuca delicada do Mano)

    Cruza por mim o dia e, juro, sem querer, a cada olhada que dou pro portalzinho no canto da praça, penso se devo explicar o que é “aquilo”.

    Sempre que passa alguém, na mirada, que pode ser de soslaio, quase vergonha, percebo a curiosidade. Mas há quem pare e, corajosamente, pergunte.

    – O que é isso?

    Já houve quem perguntasse:

    – Pra que isso?

    Peguei 4 esteios velhos de eucalipto serrado no pátio da prefeitura. Uma grade velha de ferro, coisas que pro “prefeito” não servia.

    Um funcionário, que chamam de Ninja e anda com um imenso chapéu de palha, um trapo escondendo o rosto como aqueles de motoqueiros assaltantes, duas luvas de couro grosso e todo limpinho, me ajudou. Cavou os buracos.

    A grade de ferro foi pra cima dos eucaliptos com os pés tratados com óleo queimado. Dos lados, bem juntos, plantamos Bamboozas que crescem pouco pra, com o tempo, fazerem uma parede verde entre os 4 esteios. Estiquei arames entre os paus e, com eles, forcei um pouco os bambúzinhos para dentro. As pontas, cruzaram pela grade de ferro a dois e meio de altura. Deitadas, lá em cima, formaram um xis.

    No solo, sobras de telhados, pontas de vigas de madeira de lei, foram colocadas como tacos enterrados na terra. Entre elas, terra e grama catada na praça feia, foram socadas.

    No alinhamento dos pés de eucalipto ao lado do alinhamento dos bambuzinhos, seis lágrimas de cristo já florindo, esticadas com barbante e subindo até os arames amarrados.

    Ao fundo, pra quem passar por dentro da estrutura, um círculo cercado por pedras de granito que sobraram da casa do Paulo.

    Arremedo de um sol recheado com onze horas vermelhas, amarelas, brancas e violeta. No centro, mais altinha, uma moita de cambará multi colorido.

    No dia seguinte, veio o Macarrão. Sorridente e bem humorado, juntou-se ao Ninja.

    Daqui dali, mais um pouco e “aquilo” ficou quase pronto.

    – O que é isso?

    – Um cantinho pra namorar escondido.

    – Pra que serve isso?

    – Pra quem for de fora e passar pela praça, achar que aqui mora gente caprichosa e colorida, alegre. É como se fosse um buquê de boas vindas… com corredor e tudo… pra ver um sol.

    Mas faltava a chuva. As torneiras da praça estão quebradas.

    Mesmo assim. arrisquei e plantei mais onze horas das amarelas. Depois, dois phoenix.

    O dia abafou e eu suava. Pensei em parar. Fumei um cigarro.

    Me perguntei pra quem estava fazendo “aquilo”?

    Pensei se, amanhã, as mudas seriam roubadas como ante-ontem.

    Se o velhinho de família intocável, mas patusquela, voltaria com o facão na noite calada pra cortar as guias das palmeiras de dois metros.

    Se a senhora da casa ao lado, pediria pra tirarem “aquilo” que atrapalhava sua visão da praça mal cuidada e cheia de inço.

    Agora, só faltava um pouco de tempo pra que “aquilo” se transformasse em alguma “coisa”.

    Um tempo para que as Lágrimas de Cristo caissem pela grade de ferro, uma cascata de cores entre o verde dos bambuzinhos.

    Pra quem eu fazia aquilo?

    Descobri: Pra mim, pro Ninja, pro Macarrão, e pro tempo que custa a passar pra quem vê novela.

    E o fiz, pricipalmente, pra chuva que choveu forte as 4 da tarde.

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  2. Um jovem solitário, típico das metrópoles, em busca de seu sonho.
    A flor me encantou.
    Adoro desenhar suas histórias (estórias) em minha cabeça!!
    Ele, seu apartamento, a estação, a moça… tudo toma forma conforme vou lendo seu texto.
    Amazing…
    bjs,

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  3. Que texto mais fofo e inspirador!
    Agora eu quero um homem e sonhador (com uma flor, mesmo que tatuada) para mim.
    beijos,

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  4. Sil, a gente viaja em seus textos…querendo saber o final…rsrsrs Mas, no meio da conversa é que estão as conclusões mais saborosas: “a fé cabe num trapo”…rsrsrs bjão, ótimo final de semana.

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