A mulher dos travesseiros (ainda sobre a confiança)

Foto: The Funky Man/Flickr.com

A esperança e sua prima, a confiança, tentam, todos os dias e de várias formas, nos mostrar coisas que precisamos ver. Elas são boas nisso. Nós é que fingimos não ver. Estamos ocupados demais.

Quando eu era criança, a mulher das cocadas apareceu na minha vida. Só mais tarde – algumas décadas depois – eu entenderia a lição. Agora é a vez da mulher dos travesseiros me mostrar coisas sobre a confiança, mesmo tema da mulher do passado. Embora na lição do presente a protagonista tenha sido justamente a falta dela.

Ontem fui ao shopping center. Visitar a gata de minha irmã, internada na clínica veterinária que existe lá. Gatos gostam de visitas. De volta ao estacionamento, uma mulher em um carro parou ao lado do meu e me chamou. Condicionada no medo urbano das ameaças visíveis e invisíveis, tive certeza: assalto. Ou, na melhor das hipóteses, estaria prestes a cair em um golpe. Tentei me lembrar dos avisos recebidos por email sobre as novas táticas dos bandidos, quem sabe eu não descobriria tudo de imediato e me livraria? (Shoppings são microuniversos. Tudo que acontece nas cidades se reproduz ali dentro. O que, às vezes, não é uma boa notícia.)

A mulher desculpou-se pela abordagem e começou uma história lamuriante. Estava sem um centavo e sem combustível para voltar para casa. Paralisada, eu não sabia se entrava correndo no carro, se lhe dava ouvidos, ou se gritava pelo rapaz da segurança que passava ali perto. Inconscientemente, escolhi ouvi-la. Como quem aguardasse a “ação”, olhei em volta para saber de onde viriam os meus algozes. Ou a que horas seria anunciado o golpe.

Fico sabendo que a mulher mora em Americana, cidade vizinha de Campinas. Embora eu tenha achado sua história meio estranha – como se todos no planeta tivessem talão de cheques e cartão de crédito –, continuei a ouvi-la. Ela contou ainda, claramente envergonhada e constrangida, que vendia travesseiros e me ofereceu um em troca de ajuda.

Foi quando o medo, num súbito, se instalou. Cortei a conversa: não poderia ajudá-la. Entrei em meu carro, travei as portas e saí. Quando avistei a mulher indo em direção à saída do shopping, percebi: não havia assalto nem golpe algum. Pus-me em seu lugar. A que ponto chegamos, meu Deus.

Tive pressa: será que haveria tempo de consertar a injusta desconfiança? Abri a bolsa, apanhei a carteira, conferi quanto havia ali. Segui a mulher. Buzinei, ela não me ouviu. Ela saiu do shopping, continuei a segui-la. Consegui alcançá-la, abri o vidro, fiz sinal e pedi que ela parasse. Ela me reconheceu. Perguntei: “Quinze reais ajudam?”. Ela abriu um sorriso, como quem estivesse na iminência de ganhar mil vezes aquilo. (O valor dado ao dinheiro depende do que vamos fazer com ele. E é proporcional ao quanto precisamos dele.)

Acabei ganhando um bonito travesseiro. Estampado com borboletas, num claro sinal de que a vida se renova e as primas – esperança e confiança – jamais desistirão de nós. Dormirei com ele hoje. Quem sabe não é um travesseiro mágico, que transforma em realidade os sonhos sonhados sobre ele? Além dele, e mais importante, levei para casa um dos agradecimentos mais sinceros de toda minha vida. E, assim como a mulher das cocadas, provavelmente não verei mais a mulher dos travesseiros. (Por que será que essas pessoas aparecem e desaparecem?)

Poderia ter sido um assalto, um golpe? Sim, poderia. Afinal, quantas pessoas não caem, todo santo dia, nas armadilhas?

Ainda não sei responder à minha própria pergunta lá no finalzinho da história das cocadas. Mas é preciso acreditar que é possível, sim, resolver a parada sobre a pós-moderna falta de confiança entre as pessoas. Ouvir mais o coração ajuda. Ele sabe o que diz. Nós é que não entendemos mais sua língua. Hora de reaprender a conversar com ele.

10 comentários em “A mulher dos travesseiros (ainda sobre a confiança)

  1. Dá uma sensação chata quando a gente se sente enganado por quem nos pede ajuda, com uma história de fazer chorar. Realmente fico sem paciência, não gosto.

    Mas aí… Sempre lembro de uma fala na peça “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, em que a Compadecida diz que “a esperteza é a coragem do pobre”. Não é que eu acredite que esse tipo de comportamento deve ser aplaudido ou encorajado, mas me parece que nós, que não precisamos sair por aí vendendo travesseiros por 15 reais, não temos a real dimensão das dificuldades que essas pessoas enfrentam.

    Então uma historinha triste para ganhar 15 reais, a meu ver, está longe de ser um golpe… Tá mais pra uma propaganda enganosa. 😉

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  2. Fico chateada em desaponta-la, afinal o texto está muito bem escrito e comovente, mas diante da descoberta de que outra pessoa passou pelo que passei, confirma-se que não passa de um golpe. Quem já não ouviu falar das jaquetas de couro? Ciente deste golpe é que mantive-me fria e até indiferente as palavras da moça que me abordará inclusive de forma nada convincente. Estava com minas filhas e tive receio do que pudesse acontecer a elas, estava escuro e o lugar com pouco movimentação de pessoas. Pois bem, ontem a noite, saindo do posto Graal na Roidovia Bandeirantes passei pelo mesmo apuro. Por um instante, depoios de negar ajuda, bateu o sentimento de culpa: ” e se for verdade?” “e se ela realmente não tiver dinheiro para colocar combustível?”.
    Porém, hj lendo sua mensagem, sinto-me aliviada porque tirei de meu coração aquele sentimento de culpa e tive a certeza que este é mais um golpe entre outros. Obrigada!

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  3. Lindo texto, como todos os que tenho lido por aqui. Fico com muitas questões para responder dentro de mim. Adoro isso! obrigada. Um beijo.

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  4. Terminei o texto com lágrimas nos olhos. Precisamos mesmo resgatar a confiança como um valor essencial e básico pra convivência humana. Há pouco mais de 3 anos, moro numa vilinha na Vila Mariana. Aqui, provo todos os dias como a vida pode ser um pouco diferente. Toda semana, tem o rapaz que vende pão, o moço do mel e tantos outros. Em algumas noites, somos surpreendidos com a campainha tocando, é alguém em busca de comida, roupa ou dinheiro.

    Até na SP desvairada e com o medo que nos cerca, é possível olhar o outro como um igual. Bate um receio? É claro que sim, mas acredito que antes de sair correndo, podemos tentar ouvir o nosso coração. Até deixá-lo treinadinho pra que soe o alerta na hora do alerta e a compaixão e a confiança nos momentos em que elas possam entrar em ação.

    Num mundo de golpes cada vez mais sofisticados, a intuição vale mais do que o temor, até porque não há esperteza racional pra tanta criatividade e novidade. Se afinarmos o nosso sentimento e o nosso olhar, aí sim temos chance de viver por aqui, e não apenas de sobreviver.

    obrigada pelos textos, estou AMANDO O BLOG.

    beijo,

    Ludmila

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  5. Isso é algo que sempre tá na minha cabeça. Quando alguém pede dinheiro pra completar uma passagem de ônibus e eu não dou (pra passagem, é? sei). Ou quando o carro para num sinal tarde da noite e tem dois limpadores de vidro e eu fico morrendo de medo e travo as portas (de vidro fechado sempre estamos).

    Lembro de um episódio engraçado, um homem uma vez pediu dinheiro pra comer (visivelmente bêbado) pra o meu padastro. E ele se ofereceu pra ir num self-service com o cara e pagar o almoço dele. Bem, ele recusou.

    É triste essa falta de confiança, mas ela é necessária no mundo de hoje. ;~

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  6. Lindo o texto Sil…
    estou de volta!
    a Flip foi ótima!
    muuuuiiiiiittttttaaaaa gente, como eu nem imaginava que seria… imaginava muita gente mas nem tanto!
    mando mais notícias no blog… e por e-mail.
    um beijão
    Josi

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  7. Sabe Silmara, um dia eu estava pulando de blog em blog, e descobri o seu por indicação em um destes que li. E ao ler sobre a feiúra, pensei, eu preciso adicionar esse blog. Você conversa comigo quando escreve, admiro isso porque não sei falar pros outros quando escrevo, dificuldade minha, só escrevo pra mim.(Egoista, né?!) Enfim, escrevo há anos, tenho blog há mais de 10 anos, tive outros, e esse é o mais sinto introspectivo, meu momento é esse. Parabéns pela arte que você exerce ao escrever. Meus dias ainda não foram tingidos, mas serão, acredite, nada como o tempo pra acalmar tudo.

    Obrigada pelo carinho,

    Erika Sousa.

    Obs.: Que passarinho? rs

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  8. Sobre cocadas e travesseiros…
    Silmara, eu sou da região do Vale do Paraíba (já contei no meu blog), e sempre que vou visitar meu pai, um dos meus passeios preferidos é passear por aquelas cidadezinhas onde a gente pode encontrar o pipoqueiro vendendo pipoca com queijo na pracinha em frente à igreja matriz; o vendedor de leite numa charrete, e atrás um monte de garrafas de vidro com leite tirado na hora (ou quase) batendo de casa em casa e gritando: “olha o leite!”; vendinhas que ainda marcam a conta do freguês na caderneta; e aqueles sorrisos de gente que guarda a pureza que a gente não vê mais em outras paragens. Sigo com meu pai que tem 80 anos e uma lucidez que resgata ótimas histórias de coisas de um passado que hoje chegam acompanhadas do medo. Aqui na maior cidade do Brasil, onde moro, eu sigo apertando o botãozinho do vidro para ele subir rapidinho toda vez que alguém vem na direção do meu carro (sem meu pai que preferiu viver no passado). É! Eu acho que preciso relembrar o gosto da cocada da D. Joana da minha infância e reaprender a leveza da vida para repousar minha cabeça num travesseiro feito de esperança.
    p.s.: acabei de dizer para o meu marido e filho que eles PRECISAM ler os seus textos.
    Um abraço bem apertado minha querida.

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  9. Que lindo o texto!
    Eu não sei se teria ouvido meu coração nessa hora. O coitado anda calejado pelo medo… E você tem razão, desaprendi a falar a língua dele.
    Mas espero que a gente possa reaprender todos os dias a conviver com a esperança e a confiança. Porque sem elas a vida fica tão triste e cinza, né não…

    Tenha uma ótima semana!
    Bjo.

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