Na marra

Arte: Gustavo Peres

Nasci à fórceps.

Cresci ouvindo a história. Eu não queria – ou não conseguia – vir ao mundo. Estava em posição complicada, ninguém notara. Não tinha isso de três ultrassons durante a gestação. E não colaborei quando chegou a hora. (Queria ficar mais tempo com minha mãe. Por certo, eu já sabia que seria breve.) Veio o fórceps para ajudar. Era o que os médicos tinham à mão. Se o que vale é a intenção, devo agradecê-los. Apesar de não ter feito uma boa viagem naquele sete de maio, cheguei ao meu destino: o lado de fora. No entanto, não quis saber de respirar ou chorar, o que pôs a equipe em alerta. É a primeira e única vez que uma mãe gosta do choro do filho. Fui arroxeando, levaram-me voando para outra sala. Dona Angelina chorava, crente que sua caçula não vingara. Mas eu vim, taurina e teimosa. Longos minutos depois, voltei ao seu colo. Tudo estava bem. Era só cuidar dos meus arranhões e hematomas que, contam, não eram poucos.

Minha irmã, então com cinco anos, ficou razoavelmente desapontada quando fomos apresentadas. Primeiro, porque eu era pequena demais para brincar com ela. Segundo: por conta da tintura de iodo passada em meu recém-nascido corpinho, fiquei amarela. Dias depois, quando vieram buscar mamãe e eu na maternidade, ela respirou aliviada. Eu ainda não podia brincar, mas já tinha cor de gente.

Todo mundo enfrenta seu fórceps particular, ao menos uma vez na vida. Ele vem para nos tirar do sossego, expulsar do paraíso. É o impulso vital – ainda que resistamos a ele bravamente. Por um lado, o instrumento bruto e feroz que nos arranca à força, sem dó ou compaixão, do aconchego e do enganoso nada que chamamos de conforto. Por outro, o que nos acorda, move e garante que a missão suprema seja cumprida. Ficar é bom. Ir também.

Há quem, com idade suficiente, não saia da casa dos pais de jeito nenhum. Quem troque um emprego ruim apenas quando a empresa fecha as portas. Quem vire a página só na marra. Quem viva de um passado doce, azedando o presente. Preferem o útero conhecido, ainda que estreito, ao imprevisível parto em direção ao amplo e não-sabido.

Há os que adiem, indefinidamente, seus projetos e desejos, deixando para parir as ideias depois, depois, depois. Esses encaram diariamente o Grande Fórceps a berrar: “Nasce, porra!”.

Passei a infância exibindo aos amigos, orgulhosa, a pequena veia diferente no supercílio que, de acordo com a minha imaginação (ou relato de alguém), era a marca do fórceps. Ela sumiu; a sombra da lenda, não. Demoro-me nos lugares, nasci e vivi na mesma casa por décadas. Embora tenha súbitas urgências por movimentos e novidades, geralmente não sou afeita a mudanças e também adio, quase de modo crônico, empreendimentos pessoais fundamentais e eventos banais, como encerrar a conta num banco. Contei a história do meu nascimento ao marido. Ele sorriu. E disse que isso explica muita coisa. Rimos.

5 comentários em “Na marra

  1. Curto tudo que vc escreve! Verdades traduzidas em simples frases. Conheço uma pessoa assim: meu marido. Descobri depois de 10 anos de casada que ele havia nascido com a ajuda do fórceps. E disse a mesma coisa:
    -Isso explica muita coisa!
    No caso dele, bipolaridade, síndrome do pânico, epilepsia.
    Parabéns pelo texto!!!

    Curtir

  2. Sil, que lindo!!!! Me fez pensar em um monte de coisas que acontece na vida da gente….. E me fez também agradecer a Deus,aos médicos e a Dona Angelina por ter colocado essa cunhada tão querida em minha vida.Bjus.

    Curtir

  3. O fórceps chega inevitavelmente pra qq um de nós. Só nos resta chorar ou não, resistir ou não, fazer ou não a necessária travessia.
    Uma coisa aprendi nesses últimos doloridos meses: EU NÃO MORRO MAIS!!!! Tô pronta pra viver qq viagem e qq travessia e vou pra qq direção. Ufa!!! Dolorido. Necessário. Vida em movimento.

    Amei, Franco. Amei!!!
    Bjs admirados,
    Huck

    Curtir

Quer comentar?