Portão da esperança

Arte: Shelly/Flickr.com

Seis da tarde, o carro azul emparelha com o meu, obedecendo a um resto de sinal amarelo. Pelo insulfilm vejo o motorista gesticulando, sorrindo, rindo. Na maior prosa, pelo retrovisor, com o passageiro no banco de trás. É um pai, eu sei. Do meu posto de vizinha temporária de trânsito, busco a identidade do segundo passageiro e avisto metade de uma cabecinha. É um filho, eu sei.

A história se faz pronta: um pai acabara de apanhar o filho na escola. A conversa dos dois, até em casa, será sua melhor reunião do dia. A mais produtiva.

Pais e mães que buscam sua cria nos portões das escolas têm sempre a esperança – cotidiana e automática – de que os filhos surjam, inteiros, n’algum ponto da colméia de alunos. Esperam levá-los para casa, como fizeram no dia anterior. Esperam saber, de novo, como foi a aula e o que teve no lanche. A cria também tem suas esperanças: de que a pessoa especial surgida na colméia de pais deixe o amigo dormir em casa e permita pular o banho. Portão de escola é uma ilha cercada de esperanças por todos os lados.

No programa Sílvio Santos havia um quadro chamado “Porta da esperança”. As pessoas enviavam cartas contando uma história, geralmente triste, e pediam para ganhar alguma coisa. Um jogo de sofá novo, uma bicicleta, um violão, um aparelho para surdez. Se escolhido, o autor da cartinha ia ao programa. Seu Sílvio ouvia a cantilena e partia para a costumeira encenação. Perguntava por que a pessoa queria o violão. Era para o filho que gostava de música, a família não tinha dinheiro para comprar um. Sílvio Santos fazia o suspense e anunciava, num dos bordões mais famosos da TV brasileira: “Vamos abrir as portas da esperança!”. Nessa hora, a câmera enquadrava o rosto do esperançoso e nele se podia ver a perfeita tradução da esperança. Com uma trilha transitando entre o meloso e o apoteótico, as portas se abriam e aparecia, ou não, o que tanto a pessoa desejava. Se o pedido não era atendido, o que se via era o vazio e a câmera enquadrava novamente o rosto do sonhador – que maldade –, agora estampado de decepção, frustração, vergonha e choro represado (ou liberto). Na maioria das vezes, porém, todo mundo ficava feliz. Inclusive eu, que assistia.

Portão de escola é mais ou menos assim. Só mudam os pedidos, menos tangíveis e muito mais simples.

Todos os dias, pais e mães (ou avós e avôs, numa perpetuação do ritual do qual talvez já foram também personagens) aportam na saída das escolas. Vão resgatar o que lhes pertence, o que apenas emprestaram à instituição durante o dia.

Com o mesmo olhar do homem que pedira o violão ao Seu Sílvio, desejam reencontrar o rosto único, inconfundível, mais lindo de todos. Eventualmente imundo, se foi dia de parquinho. O sorriso é fundamental. Quase uma garantia.

O portão da esperança, ao contrário do programa, não tem Sílvio Santos e já está aberto quando se chega lá. Mas os pedidos – que o filho conte uma novidade, nova ou velha, tanto faz; que tenha ido bem na prova, brincado com os amigos e sido querido por eles; que não tenha arrumado confusão e tudo esteja bem, enfim – correm enorme risco de serem realizados. Embora viver não seja tão simples quanto comprar um violão.

Eu envio minhas “cartinhas” e compareço a esse portão de segunda a sexta, no mesmo horário. E, desde quando minha esperança era apenas que meus filhos tivessem arrotado e feito cocô durinho, tenho sido atendida. As esperanças daquele pai que gesticulava e ria no carro, pelo jeito, também.

5 comentários em “Portão da esperança

  1. Sil,

    Só pra você saber que cada texto que leio me provoca uma reação parecida: sorriso sem mostrar os dentes, alguns segundos de reflexão e um olhar pra fora da janela do trabalho. Quando acho pertinente, mando o texto por email para minha mãe. Foi o caso desse e do outro sobre o banho. Ela lê emails, mas não lê blogs, daí eu leio pra ela. É tipo ler historinha pra criança, só que ao contrário e depois que a gente já saiu de casa.

    Um beijo.

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    1. Sim, Edu… nossas. Mas sou eu que aguardo esse portão da esperança se abrir, todo dia (rs). Beijo, bonito.

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  2. Olá, querida!!
    Muito emocionante a sua poesia, como sempre!
    Filhos… não há nada no mundo que supere essa alegria.
    bjsss e ótimo final de semana!
    Cris

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