Primeiro e último

Ilustração: Daybeezho/Flickr.com

A vida é feita basicamente das primeiras coisas, um pouco das últimas, e o resto das que vão ficando pelo meio. A gente vai pondo número nos fatos, brincando de reger a história e sempre prestando mais atenção nas pontas – opostas e, por vezes, complementares –, que são o início e o fim. Parece que assim fica mais fácil entender o mundo.

Quem não se lembra do primeiro fantasma embaixo da cama? Do primeiro choro no escuro. A primeira peça de teatro na escola e a última chance de você ser um artista. O primeiro bichinho de estimação que você viu morrer e pediu para enterrar numa caixa de sapatos no jardim da sua casa. A primeira vez que você ouviu Papai Noel chamar baixinho sua mãe de ‘querida’, e a última vez que você acreditou nele. A primeira bronca feia. O primeiro gol. A primeira bota de cano longo. A primeira bicicleta. E a última vez que você andou nela com as rodinhas de apoio.

O primeiro salto alto. A dor estranhamente boa da primeira depilação. O primeiro email enviado e o primeiro recebido. A primeira canção do Led Zeppelin que você ouviu. A primeira fotografia três por quatro. O primeiro esmalte vermelho. A primeira poesia feita assim, de uma vez só. O primeiro show que você foi sem seus pais. O primeiro porre e a primeira amnésia alcóolica. O primeiro prêmio na escola e a primeira vez que você se achou o máximo. O primeiro computador só seu. O primeiro amor. O primeiro rio de lágrimas, que você achou que seria o último. A primeira saudade. O primeiro xeque-mate. A última chamada no vestibular. A entrevista para o primeiro emprego.

O primeiro salário e a primeira certeza: você ganhava mal. O primeiro cartão de crédito, a primeira fatura e o juramento de que seria a última vez que você gastaria tanto. O primeiro carro. A primeira demissão. A primeira vez que você falou com Deus, e ele respondeu. A primeira dívida. O primeiro negócio próprio e a última vez que você tirou férias. O primeiro cliente e o primeiro mês sem grana.

A primeira estria. O primeiro carro com ar-condicionado. A primeira dor de cotovelo. O último dia de solteira. A última nota na carteira. O primeiro assalto. O primeiro cabelo branco. O primeiro infeliz que chamou você de senhora. O primeiro filho aos quarenta e nove. A última chamada para o embarque. O primeiro casamento aos sessenta e sete. A última esperança. O primeiro tempo. O último dia do ano. O primeiro dia da semana, que ninguém entra num acordo se é domingo ou segunda.

A primeira vez que você comprou um teste de gravidez de farmácia. A última vez que você se olhou no espelho e desejou que a barriga fosse transparente, só para ver sua filha lá dentro, pronta para o mundo. E a primeira noite com ela nos braços.

O primeiro ovo da primeira galinha. A primeira vez frente a frente com a Morte e a última que ela foi embora sem você. O primeiro negro a ser isto, a primeira negra a fazer aquilo. O primeiro homem na lua. A primeira carta de amor do seu filho. O último dos moicanos.

O primeiro segredo guardado e o último revelado. O primeiro pensamento ao acordar. O último antes de dormir. O último voo. O último dia do resto da sua vida. O último beijo. O último sopro de ar. E a primeira vez que você viu uma estrela tão de perto.

13 comentários em “Primeiro e último

  1. Bom dia Flor! Que lindo texto!
    Tô aqui mandando os convitinhos do meu aniversário de comemoração dos meus 18 anos de casamento e vim te visitar…
    Voce me fez ficar pensando nesses “primeiros e últimos”. Hoje, tenho certeza que meu primeiro e último amor é meu amado marido, com o qual estou completando esses 18 anos de puro amor. Meu primeiro filho foi maravilhoso por tudo e pelo que ele continua sendo, mas me deu uma vontade de ter uma menina, ainda mais qdo vc fala em mãe aos 49 (eu fiz 40 na sexta, será que ainda dá?).
    Você coloca caraminholas na minha cabeça, menina!
    Bijim e Om Shanti
    ps: se vc quiser vir pra festa, é neste sábado as 19h. Vai ter cerimônia pagã, maçã do amor, algodão doce, etc.

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  2. Querida Silmara:

    Voce e iluminada. Eu como uma pessoa nostalgica, me pego muito nos “primeiros e os ultimos” dessa vida.
    Tem coisas que voce mencionou nesse texto que tive que verificar se nao era o “pente que me penteia” falando comigo.
    Tem uma musica em ingles de uma bandinha aqui meia boca que diz a seguinte frase: “Every new beginning comes from some other beginning’s end”( Feeling Strangely Fine de Semisonic), a qual fala que os novos comecos sao gerados de algum fim.
    Muito lindo isso. To aqui refletindo agora nas suas palavras.
    Voce e iluminada. Mas nao que nem o Jack Nicholson, num sentido muito melhor.

    Beijos mais uma vez.

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  3. Tantos primeiros gostosos de lembrar…Tanto aprendizado trazido com cada um desses primeiros. Tanta vontade de ter mais tantos primeiros na vida…

    Quanta coisa linda!

    Ainda bem que não serão as últimas!

    Seus textos são um carinho!

    Beijo grande,

    Renata.

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  4. caraca, parabéns!
    de verdade veirdadeira do fundo do meu coração.. sempre leio suas atualizações aqui, adoro ler as coisas que vc escreve!
    continue escrevendo coisas assim, pra que pelo menos uma vez por semana, quando eu vejo as atualizações dos blogs no google reader eu possa pensar mais sobre a minha vida….

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  5. É engraçado, outro dia comecei o meu primeiro blog, onde pretendo falar das minhas experiências místicas, esotéricas, espirituais, etc, com o humor cabível. Sabe o que aconteceu? Eu só conseguia me lembrar da primeira vez que tomei floral e da última; da primeira vez que li mãos e da última; da primeira vez que fui a um terreiro de umbanda (que neste caso, foi a última)… E eu nem tinha notado isso. Será que vou conseguir acessar a minha coluna do meio?

    Parabéns pelo seu blog! Os textos são ótimos!

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  6. Olá!!
    Nunca comentei aqui, mas vale deixar registrado que algumas mensagens chegam a me tirar o fôlego.
    Essa foi uma delas!

    PARABÉNS!!!!

    bj
    Cris

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  7. Sil querida,
    só mesmo você com uma reflexão como esta logo HOJE. Hoje que é o último dia da minha vida de um jeito. E amanhã que será o primeiro dia de outro jeito.
    O último dia que eu me vejo barriguda e o primeiro que eu vejo o rostinho da Letícia. A primeira vez que vou ouvir seu chorinho. E o primeiro dos meus choros mais emocionados. O último dia que vou dormir de uma forma. E o primeiro que vou acordar de outra. A primeira vez que vou ouvir: – vc é a mamãe da Letícia.
    Só mesmo vc com um texto tão lindo para me fazer pensar nestes primeiros e últimos.
    Beijos, beijos.
    Ana

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    1. Ana, eu juro que não tinha percebido. Apesar de ter pensado muito em vocês duas nos últimos dias, não pensei em você quando escrevi. O inconsciente é danado mesmo. E você me deu uma bela ideia. Mudei o texto, e desta vez o fiz conscientemente. Para você. Vai lá ver. Um beijo enorme.

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  8. Sil, que coisa mais linda!

    Viajei longe com esse seu texto!!!

    Parabéns e que Deus continue te abençoando e te enchendo de inspiração assim!

    Beijo grande e ótima semana!

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