O inferno é aqui

Ilustração: Fractal Ken/Flickr.com

Só percebi que era briga quando ele, já alguns decibéis acima da média para o local, lascou: Vai pro inferno. Antes, ela havia dito que o cartaz escrito ‘batata baroa’ estava errado, aquilo era mandioquinha. Ele afirmou que era tudo igual. Ela rebateu, tudo igual uma ova. Ele falou que tanto fazia, qualquer uma que ela cozinhasse ficaria ruim. Ela culpou a sogra pela ignorância dele. Foi quando o inferno entrou na roda. Cogitei, por um instante, meter a colher e informar que não só é tudo a mesma coisa, como as duas também atendem por batata salsa. Mas não era tubérculo nenhum o culpado pelo desentendimento. Aquilo ali era antigo. E eu, que não sou boba, fiquei de bico calado. Como a protagonista do bate-boca não estava na minha lista, passei para as abóboras. Não sem antes imaginar como a história continuaria.

Supondo que ela tivesse prestado atenção ao insulto – e sei que não o fez, pois seguiu conduzindo o carrinho pelo supermercado como se nada tivesse ouvido e havido – o que se faz numa hora dessas? Devolve na mesma moeda, ou seja, com um insulto maior? Esbofeteia, na frente do repositor, o companheiro? Faz, ali mesmo, purê dele? Ou picadinho? Histórias assim não costumam ter final feliz. Embora, em tese, todas tenham tido um bom começo.

Difícil é saber o que fazer depois de ter, na vida a dois, ultrapassado a última fronteira antes do ódio. Ou pior, da indiferença. Complicado é compreender como se chega a esse ponto. Uma simples conversa sobre nome de comida, um regionalismo ingênuo, ser capaz de acionar tantos botões num relacionamento. O das mágoas mal digeridas, o das tristezas recolhidas e cozidas, o das paciências assadas e esturricadas, revelando uma frágil e irremediavelmente condenada engrenagem.

Ele e ela haviam alcançado o estágio onde qualquer hora é hora, qualquer lugar é lugar para demonstrar o desafeto. Como se desejassem que as pessoas à volta ficassem cientes do que estava acontecendo e intercedessem, tomassem partido, fizessem alguma coisa, pelo amor de Deus. (Parecido com aquelas comédias românticas onde o mocinho, no restaurante, pede alto e em bom som perdão à amada, seguido de mil explicações. E, de repente, todos os clientes ao redor entoam em coro “Perdoa!”, aplaudindo, por fim, o beijo que sela a remissão.) No fundo, o casal que briga em público não ignora, nem teme, a plateia. Ao contrário, ela lhe é fundamental: o casal tem necessidade que alguém assista à sua insatisfação. Quer contar com o apoio, de qualquer natureza, do espectador. Faz questão de escancarar, doa a quem doer, o podre do outro. Precisa mostrar, cada um à sua maneira, quem tem razão. Nem que para isso lancem mão de uma batata – baroa, salsa ou coisa que o valha. O que vem à superfície numa discussão pública é, infalivelmente, ruminamento de anos.

Ela já estava no inferno, assim como ele. E nenhum dos dois sabia disso. Ainda.

6 comentários em “O inferno é aqui

  1. Casal que briga ainda se gosta. Pode parecer estranho, mas tem uma explicação para isso. De certa maneira, ficam viciados no sentimento bom quando fazem as pazes (olha aí, a palavra vem de PAZ). É como se começacem um ciclo da destruição para terem motivos para construir. Longe de ser vicio emocional saudável, se têm que semear brigas para realizar uma pacificação artificial. Obviamente, o combustível disso é, como bem disse, o conteúdo ruminado por anos que se manifesta.

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  2. Lindona, passei mais de um mês sem acompanhar meu reader, então, chego aqui e leio mias de 15 posts de uma só vez. Não dá pra comentar em todos, então escolhi um, aleatoreamente, pra dizer que continuo sua fã. Como coloca as palavras na ordem certa, e com toda essa sensibilidade? Tem curso pra isso? Quero me matricular!

    Ah, e parabéns pelo aniversário, levemente atrasadíssima!

    Bjo!

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  3. Eles já viviam se espinafrando, um ao outro, desde casa!
    Engraçado, se não fosse triste.
    Bem concluído: cada qual, tratava de fazer da vida do outro, um inferno.

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  4. Nossa…vivi este inferno uma vez na minha vida pra nunca mais! A gente erra, a gente aprende. E repetir o erro seria no mínimo burrice.

    Enfim, vivendo e aprendendo.

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  5. E aqui em Minas ainda tem mais um nome pra ela, cenoura amarela,rsrsrs…
    Triste né? As pessoas não se dão conta que quase tudo na vida, se não for renovado, tem fim… Afeto então!
    Bjos

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  6. Menina, o pior é que o negócio chega a esse extremo. O que me deixa mais perplexa é que muitos casais quando se separam ainda têm saudade desse inferno.

    Ótimo texto,
    bjs

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