O sapato cinza

salto alto

Desde sempre, Nina é doida por um certo par de sapatos meus. O cinza, de salto alto, largas tiras de camurça. Coisa de mulher, não de criança. Ela, de pequena, sonhava com o dia em que iria usá-los. Prometi que os guardaria, seriam dela quando crescesse. E, como os uso pouco, estariam conservados para a nova dona. Uma espécie de herança, de mulher para mulher.

Enquanto esperava o tempo fazer seu trabalho, ela brincou de desfilar com eles pela casa, tal aquelas cenas dos comerciais e anúncios de revista. Pezinhos número vinte e sete perdidos na imensidão do trinta e cinco, arrastando o sapatão para lá e para cá. Fazia pose, mirava no espelho sua silhueta torta, necessária ao equilíbrio anti-natural.

Embora não me recorde com precisão, devo ter brincado com os sapatos da minha mãe. Fingindo a mulher que nem brotara, em clássico exercício de feminilidade. Mas diverti-me muito, disso me lembro bem, com suas jóias e bijuterias. Dona Angelina, bastião do desapego, não ligava se íamos para o quintal com seu anel de rubi. Aliás, também não se importava de promovermos chás das bonecas com suas delicadas xícaras de porcelana. E minha vontade de ser mulher grande ia além: um dia, inventei de sair de casa usando Modess. Eu devia ter oito anos. Nos anos 70, não tinha esses absorventes fininhos, eficazes e ultradiscretos de hoje. O volume extra na calça não me pareceu muito confortável, voltei para casa e joguei fora. Sem contar as bolas de meia no sutiã surrupiado da irmã mais velha, inventando os peitos que ainda demorariam para aparecer. Eu não via a hora de, enfim, ser grande. Entendo a Nina.

– Você está guardando os sapatos pra mim, né mãe? – ela checava, de tempos em tempos. Sua alegria morava no meu sim.

Não por muito tempo, no entanto.

Grandona, Nina, aos dez, já calça dois números a mais que eu. Cedo, ainda, para o almejado sapato cinza. Partiu meu coração sua decepção, quando se deu conta. Por um tempo, ela continuou brincando com eles. Os dedinhos, espremidos, denunciavam o não-cabimento. Aos poucos, desistiu. Uma experiência importante a compor sua fundamental coleção de frustrações, rumo à maturidade.

Hoje, ela se contenta em elogiar quando eu os coloco – mesmo sabendo que eles jamais a acompanharão em seus passeios. São seus sapatos, sem nunca terem sido. Ela questiona por que não saio com eles todos os dias, afinal, tão bonitos. Logo eu, filha! Que, apesar de ter ido para a maternidade tê-la – e seu irmão – com plataformas altíssimas, para desespero da Dra. Clara, hoje fujo de todo salto que ultrapasse a medida de quatro dedos da mão.

Envelhecer é, entre outras sabedorias, não considerar mais um suprassumo usar Modess (ou qualquer de suas variantes), nem sutiã (ah, a liberdade que os peitos pequenos conferem), tampouco saltos que desafiam a gravidade e o bom senso.

Num futuro próximo, Nina terá seus próprios saltos. Seus próprios absorventes e sutiãs. Sua própria mulherice, enfim. E as lembranças das brincadeiras com o velho sapato cinza também ficarão pequenas. Mas continuarão a servir no coração – dela e meu.

10 comentários em “O sapato cinza

  1. Sil, o dia em que eu chegar ao fim de uma postagem sua (qualquer uma delas, sem restrição de tema) sem me emocionar, acho que será o dia que em que dou um até breve ao Fio da Meada.
    Por sorte (minha, claro) eu acredito que esse dia não chegará tão cedo, por que há anos tem sido assim: ler, emocionar, e antes que eu esteja pronta, ponto final.
    Próximo post.
    Tua família é incrível, e você, um carinho.

    Beijos saudosos.

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  2. Nina há de ter deu sapatinho cinza com tiras de camurça. Modelos vêm e vão, eternamente. Eu guardaria os sapatos, mesmo não servindo. Beijo, Silmara.

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  3. Que crônica MARAVILHOSA!!! Mais a vez me transportei para a minha infância e me vi com os saltos da minha mãe!!!!! Lindo demais… Que Deus sempre abençoe esse seu dom… Escrever… Escrever… E escrever!!!! Bjos

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  4. Uma pérola de texto numa época em que criança sendo criança e brincando com que naturalmente chama sua atenção deixou de ser, para algumas mães, apenas a oportunidade de aguçar a percepção e nada além disso. Silmara, sua percepção simplificada e, ao mesmo tempo, tão cheia de profundeza, é uma bênção pra quem te lê.
    Que o Divino te abênçoe e reverbere percepções e inspirações infinitas. Você é uma mulher linda de dentro pra fora e de fora pra dentro, com ou sem salto, viu?

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  5. lindo Silmara!!!
    Minha mãe conta uma história engraçada… eu com dois aninhos vi ela explicando para minha prima que acara de “ficar mocinha” sobre o uso dos absorventes e dando a ela um pacotinha… coisa de tia que aconselha e ampara a menina moça meio assustada… eu devo ter prestado muita atenção pois bastou uns minutos sozinha no quarto da minha minha mãe pra voltar pra sala com vários absorventes “pendurados” e mal acomodados por dentro das fraldas… deve ser instinto, kkkk
    beijinho e até mais…

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