Pra tirar o gosto

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O menino viu a colher do xarope, catou sua bola e tentou se teletransportar para Netuno. Havia tido aula sobre o sistema solar na semana passada. Não funcionou. Buscou, então, abrigo sob a mesa – pareceu-lhe mais próximo que o longínquo planeta. Acabou detectado pela Nave Mãe.

– Sai daí, Gustavo. Precisa. Senão, você não vai sarar.

Antevendo a gororoba espessa e intragável descendo-lhe pela goela, o garoto fez uma careta assustadora conforme, imaginou, faria um Netuniano. Revirou os olhos, emitiu sons ininteligíveis, bateu os pés. Nada, no entanto, foi o suficiente para se safar.

Com a mão direita a mãe, misto de monge budista (pela compaixão) e general (pela determinação e disciplina), levou a colher até a boca do garoto. Na esquerda, o prêmio.

– Depois come o brigadeiro, pra tirar o gosto.

“Pra tirar o gosto”. A estratégia – comer algo gostoso depois de engolir algo ruim – é uma forma de administrar o insuportável. Quem não sabe disso?

De pequena, minha irmã precisou tomar um remédio por muito tempo. Horrível, segundo ela. Mamãe, mais monge que general, lhe dava sempre um pedaço de banana para tirar o gosto. Sem direito a variações. Resultado: minha irmã não come banana até hoje. Desenvolveu asco irreversível da fruta, eternamente associada à triste experiência. É capaz de detectar vestígios dela a anos-luz de distância. Se houvesse banana em Netuno, minha irmã a farejaria daqui.

Repare: a gente sempre deseja a anulação dos padecimentos. Algo que nos tire o gosto ruim, embora eventualmente necessário, da boca. Ou do coração. Qual doce é capaz de neutralizar o azedo de uma despedida inevitável? Como engolir uma separação amarga que, no fim das contas, é a cura? E será que viver plenamente o sabor desagradável das coisas pode também fazer bem?

Não sei. Só sei que o Gustavo acabou tomando o xarope todo. Depois, devorou o brigadeiro e saiu quicando sua bola pelo quintal. Desistiu de Netuno, vai ficar por aqui mesmo. Lá não se joga futebol.

4 comentários em “Pra tirar o gosto

  1. Faz tempo que não comento por aqui… estou em falta, eu sei… mas esse retorno e esse post me deixaram assim, com um gosto amargo na boca.
    “Despedida inevitável”…. ah, nenhum doce seria capaz de amenizar tamanho amargor.
    Pobre do Gustavo, a vida mal começou… rs rs rs…

    Enfim, os dias são como um balanço pendurado em uma árvore frondosa. Mais ventos. Menos ventos. E a gente vai se equilibrando nos sabores e dissabores.

    Um beijo e AMEI o retorno minha amiga.

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  2. “Viver plenamente o sabor desagradável das coisas”, só se for pra citar o Taiguara: “quem não soube a sombra não sabe a luz”!
    E pra “neutralizar o azedo de uma despedida inevitável” e “engolir uma separação amarga que, no fim das contas, é a cura”, só mesmo o doce passar dos dias… Digo por experiência — e por ter lido isso em algum lugar há alguns anos… 😉

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