Cama de gato

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O gato resolveu querer colo bem na hora em que eu ia levar o prato e o copo para a cozinha. Foi como se ele houvesse pressentido minha preguiça – eu almoçara no sofá, vendo TV – e pensou, “Vou ajudá-la a resolver isso”. Gatos, no geral, são bom resolvedores de coisas. Seja no instinto, na destreza ou na inteligência. É de admirar que ainda não tenham dominado o mundo. Ou: já dominaram, e estão de boas.

Logo agora…

Ele afofa minha barriga, se enrodilha no moletom, me transforma em cama. Os olhos apertadinhos me fitam como quem diz “eu te amo muito mesmo de verdade”. Melhor: “amo teu colo muito mesmo de verdade”. Seria inaceitável, de minha parte, prosseguir na intenção. Não se nega colo a um gato.

Fico imóvel, para não atrapalhar sua soneca. Seguro a louça com uma mão, com a outra lhe faço um afago. Só pauso para zapear a TV, à espera de mais motivos que me façam permanecer no sofá com o gato, o prato, o copo, a preguiça.

Mas justo agora…

Penso em alguma estratégia para que ele, por livre e espontânea vontade, deixe meu colo. Assim, eu me safo de carregar essa responsabilidade. As crianças poderiam chamá-lo, sacudindo a vasilha de ração; não falha. Então lembro: estamos sós em casa, o gato, Deus e eu. Quantos gatos cabem no colo de Deus?

Tento esticar o braço até a mesinha. Ele detecta o movimento, abre levemente os olhos, eu recuo. Interromper o sono de um gato há de configurar maus tratos. É nos sonhos dos gatos que o mundo ronrona.

E bem agora…

Eu invejo o gato que dorme quando quer e onde quer e pelo tempo que quer. Gato não tem dono. Gato é o dono. Não há animal mais cônscio de si do que o gato. Gatos não fazem psicanálise, simplesmente porque não precisam. Não há paradas existenciais peludas a resolver. Em um gato, as vidas passadas estão todas presentes. Gato é o futuro.

Quanto mais nutro esperança de que ele, por si, resolva partir de meu colo, mais ele se aninha. Estou refém de um gato. E estou de acordo. Cogito levantar-me e, numa cuidadosa acrobacia, levá-lo comigo no colo até a cozinha, sem acordá-lo. Quem dera ser capaz de andar flutuando, como os mortos, para que ele não sentisse a trepidação dos meus passos. Que bobagem, gatos sentem até os mortos.

Tinha que ser agora?

Num súbito, ele se põe nas quatro patas e chispa rápido, como se lembrasse de algo urgente que havia se esquecido. Ou como se nunca quisesse ter estado em meu colo um dia. Ou, ainda, como se eu fosse apenas um amontoado de átomos de oxigênio, hidrogênio, nitrogênio e carbono, convenientemente fofo e macio. Simplesmente se mandou. Foi verificar qualquer coisa invisível e inaudível aos meus limitados órgãos humanos, na área de serviço, ao lado da cozinha.

Poderia, ao menos, ter levado o prato e o copo.

3 comentários em “Cama de gato

  1. Delícia de crônica fofa! Enquanto isso, aqui em casa, a Pretinha miou, porque queria entrar pela porta do escritório. Fiz de conta que não ouvi, estava lendo sua crônica – bem na hora do amassa-amassa na barriga -, mas depois falei pra ela ir procurar a porta da sala, ela sabe muito bem por onde saiu. Veio e sentou quietinha perto dos jornais, revistas e livros que deixei no chão. Acho que ela veio espiar o que vc tinha escrito sobre os gatos. E disse: – Purr!

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  2. Gatos, seres especiais, professores, leitores de pensamentos, todo o bem no mundo.
    Ele sabia que o prato deveria ir para a cozinha e apenas a testou para saber qual o grau de poder exerce sobre você!

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