Inquebrável

osso

Tem criança que sonha em ser super herói. Tem a que quer ir à Disney. A que deseja ter um macaco de estimação. Eu não queria nada disso. Queria quebrar o braço.

Quimera infantil, coisa besta de almejar. Achava lindo quebrar alguma parte do corpo, andar por aí de gesso, usar agulha de tricô para driblar a coceira, os amigos assinando naquela coisa que ia encardindo com o tempo.

Quis o destino, no entanto, que eu nunca quebrasse nada. Nem braço, nem perna, nem pé. Dedinho, que fosse. Nada. Fui uma criança inquebrável.

Inconformada com a minha resistência óssea, tratei de dar um jeito. “Você é do tamanho dos seus sonhos”, cunhariam os livros de autoajuda, décadas depois.

Assim que a aula terminou, fui sozinha até o Depósito São Pedro, loja de material de construção pertinho de casa, na Mooca. Pousando meus trocados sobre o balcão, anunciei: “Preciso de gesso”.

Voltei para casa com um quilo do material e refugiei-me no quintal. Só meus avós estavam em casa, cuidando de seus afazeres, e não desconfiaram da arte. Procedi com a mistura de pó e água. Escolhi o braço: esquerdo. Caprichei na modelagem, limpa daqui, ajeita dali. Em quinze minutos o sonho estava realizado: eu tinha um senhor gesso, que ia da mão ao cotovelo.

Quando me perguntassem o que havia acontecido, eu teria que inventar uma história dramática, que caíra da bicicleta, que rolara as escadas, que fora atropelada. Com a significativa vantagem (só eu saberia) de não ter sentido dor, nem de ter havido pânico, chororô, corre-corre ao pronto-socorro.

Improvisei a tipoia com uma atadura encontrada no armário do banheiro, ensaiei alguns gemidos e fiquei esperando o resto da família chegar. Já imaginava o dia seguinte, na escola, sucesso total. O braço esquerdo não fora escolhido à toa; assim eu conseguiria fazer as lições.

Foi quando o portão se abriu. Era minha mãe. Plantei-me na porta e encenei ligeiro drama. Ela, de longe e no susto, levou as mãos à cabeça, Meu Deus! À medida que subia as escadas, querendo saber que diabos eu aprontara, eu me enrolava na narrativa, e seu susto logo se desfez.

Em menos de um minuto eu fora pilhada na farsa. Mãe é mãe, claro. Mas meu trabalho na arte do gesso era, digamos, amador. Rimos. E precisei tirar aquela porcaria antes do jantar.

Hoje lembrei do Depósito São Pedro e da minha mãe. Os dois, há tempos, encerraram as atividades por aqui.

Eu sigo inquebrável. Assim como minhas memórias. Meus sonhos, hoje, são outros. E, pensando bem: eu já quis, sim, ter um macaco.

Para o Zé.

6 comentários em “Inquebrável

  1. meus sonhos…..mas um deles se realizou depois de velha, o de ficar rouca. Mas ler seus textos nào sào só sonhos. Vontade real. E alegria no final. Pela sua beleza. ❤

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  2. Ai que história fofa Silmara.
    No ginásio, eu achava o máximo as meninas que usavam óculos. E queria muito precisar usar também.
    Quem sabe, você ainda realiza seu sonho de ter um macaco, através da realização do sonho da sua Nina.
    Seria dois sonhos em um
    Super beijo pra você!

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  3. simplesmente demais! amo seus textos e sua leveza!
    sou sua fã!!!!
    qdo criança tb quis mto quebrar o braço!! mto! uma das irmãs quebrou e minha mãe tinha q improvisar tipóia pra nós duas! hahaaa com 17 anos quebrei o braço, não era mais criança, mas lembrei da vontade!!!!
    só vc Sil, pra fazer eu recordar essas coisas!!! obrigada!

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