Café com os medos

Chamei meus medos para um café aqui em casa, tarde dessas.

Nem precisei consultá-los para ver um dia em que todos pudessem comparecer; eles estão sempre por perto e disponíveis. Providenciei café de coador e quitandas. Pão de queijo, biscoitinhos de nata, rosquinhas, bolo de fubá com goiabada. Quem agrada seus medos é prudente. Ajeitei as almofadas, borrifei baunilha no ar, dei play no Summertime da Rosinha de Valença. Sentei-me na poltrona colorida.

Minha ideia era recebê-los para sabê-los melhor, já que eles parecem me conhecer tão bem. Se tudo na vida ou é movido pelo amor ou pelo medo, bom mesmo é a gente se garantir nas duas coisas.

Como não tenho tantos medos assim, foi en petit comité.

Vieram todos, menos um.

O primeiro a chegar, claro, foi ele. Sempre pontual. O maior, o mais alto, o mais irresistível. O medo de perder meus filhos é o que mais encontro, até quando não quero; ele simplesmente aparece. Nós nos conhecemos no exato instante em que eu me soube mãe. Ele apertou minha mão e disse “Muito prazer”. Tive ali meu primeiro enjoo. É o medo que me dá mais medo, o que me atormenta nas insônias, mesmo sem motivo. O que ri de mim e me maltrata. Ofereci-lhe a cadeira, mas ele preferiu espalhar-se no sofá. Gosta de espaço. Eu, invariavelmente, lhe dou.

O medo de acidente besta veio em seguida. Com elevador, escada rolante, poço, choque… ele é feito de tudo isso. Cumprimentou o meio-irmão e aboletou-se ao seu lado no sofá. São tão íntimos que dói. Fingi arrumar qualquer coisa nas persianas, queria mesmo era ouvir o que falavam. Perceberam, mudaram de assunto.

O medo de morrer (de morte matada; não de morte morrida) chegou depois. Ofereci-lhe café. “Com açúcar?”. “Sim, duas colheres”, ele respondeu. Um medo, quem diria, pode ser doce.

(Medo de quem toma café sem açúcar.)

Outros medos também aceitaram o convite. O de trovão, de bactéria mutante, de links estranhos, de tsunami, de bala perdida, de grua, de calculadora científica. Fizeram um fuzuê em casa. Ofereci rosquinhas açucaradas ao medo do mar, que prontamente recusou. Não come doce, só salgado, não quer engordar. Até os medos, veja só, têm medos.

E ficamos ali, conversando sobre o tempo, Carnaval, viagens. O medo de perder meus filhos levantou-se e foi até a mesa. Abocanhou, duma vez só, o bolo de fubá. Quanto mais mastigava, mais engordava, a ponto de mal caber na sala de jantar. De repente, virou-se para mim e com olhos vidrados perguntou onde estavam as crianças. E soltou uma gargalhada, cuspindo os farelos pelo tapete.

Por que não aproveitei e simplesmente coloquei veneno nas xícaras de todos eles? Talvez, por medo das consequências.

O único que não veio foi o medo de ser estorvo. Que sempre aparece quando penso na velhice, a minha velhice. Não gosto de pensar que posso, lá na frente, ser convidada para os aniversários dos netos e bisnetos (se os tiver) apenas por protocolo familiar. Quem me trouxer de volta para casa depois dos encontros de Natal o fará por obrigação ou gosto? Quem pagará meu convênio médico com prazer, caso eu precise? Quando eu estiver meio surda, quem falará, carinhosamente, alto e perto dos meus ouvidos para que eu entenda? O medo de ser estorvo não veio porque esqueci de convidá-lo, não tenho pensado muito nisso. O pensamento é o ar de todo medo.

Quando anoiteceu, eles se despediram e fizeram de conta que foram embora, sem, contudo, ir. Medos são bons na arte da enganação. No fundo, querem é brincar de assustar. Outros, só proteger. A gente tem de saber qual é qual.

Mesmo sabendo que eles não haviam ido embora, deixei-os dormir em casa, ajeitados nas almofadas, armários, espelhos. E não tive pesadelos. Mas tive saudade de quando meu maior medo era dos monstros embaixo da cama.

21 comentários em “Café com os medos

  1. Você tem uma forma tão bonita de escrever. Ai, ai…nossos medos. Esse maior de todos cresce de tal forma qdo os filhos voam que passamos a invocar com mais frequência nossa parte divina a se juntar com a parte divina deles e unidos atraiam proteção e bem aventurança. Ainda bem que você não se deixa paralizar pelos medos; tem filhos e até convoca os medos pra um café. Só uma ressalva, Silmara: Não tenha medo de quem toma café sem açúcar. Sou uma delas desde os treze anos por escolha e sou muito do bem…rs.

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  2. Texto com sensibilidade e a coragem de ter medos. Provocador de encontrarmos com o que mais tememos medo dos medos que não sabemos, os que sabemos e
    dos que nem imaginamos que existem e podemos ou não encontra – los.

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  3. Se quero comentar , aí que delicia de texto , parece que puxei a poltrona fiquei na sua frente , tomei café e lhe entreguei a lista dos meus medos ! Bj

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  4. Muito interessante. Acho que se olharmos bem todos os medos nos remetem ao medo da aniquilação do ego, do vazio, … da morte.
    “Onde está o medo, lá está a sua tarefa”. C.G.Jung

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  5. Gente esqueceram de convidar o “pai dos medos” que é o medo de sentir medo! Esse com certeza ocuparia não só a sala de jantar mas sim o quarteirão inteiro. Amei esse texto, tão verdadeiro e ao mesmo tempo leve e lindo de ler. Me representa é muito!

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  6. Que tradução perfeita de quase todos os meus temores… Definitivamente, andas a ler-me a alma…
    Entrego-os todos para o Eterno administrar. Não posso sozinha…
    E Ele, compreendendo o meu fardo, me ajuda a caminhar…

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  7. Assino. Ou te denuncio por plágio. rs Uma beleza para ser lida, repercutida. Esse medo maior sempre me perseguiu, mas quando eles saem de casa, vão ter as suas, a gente tem que negociar com Deus, senão não aguenta! Hoje faço uma oração geral, cubro todos os perigos e aceito a proteção divina como garantida, senão enlouqueço. Beijo, Silmara.

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  8. Sempre um prazer acompanhado de um pequeno mas certeiro medo: chegar aqui e não encontrar texto novo no ar (risos). Sil, todos temos nossos medos que nos acompanham vida afora. Fez bem em convidá-los para um café assim, mesmo que ilusoriamente, tem-se menos medo deles após os conhecer melhor. Maravilha de texto. Esse terei de levar comigo e compartilhar. Bjs

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  9. Demais seu texto, Sil! Não dá pra mentir, a fase que estou passando tem me mostrado medos que nem pensava sentir, em compensação com os novos medos vieram também novos sonhos, esperanças e coragem pra ir em frente, “pagar pra ver”.
    Maravilhosa, como sempre, você me encanta! Beijos, sem medos.

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  10. OI Sil. Que legal seu texto. Seu primeiro medo nasce para a mãe no primeiro enjôo. Acho que voce colheu bem esta sensação. Mas e para o pai? Te respondo. No primeiro chute na barriga. E só entregando a Deus para poder respirar melhor, em meio a este mundo louco que vivemos. Que DEUS lhe dê a possibilidade de ter muitos netos. Beijos. Cláudio.

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  11. Ora vejam só! Você tem medo de mim (café sem açúcar)! Hahahaha! Não precisa não, tá? Pessoas que tomam café sem açúcar somos inofensivas (most of the time, at least…). Li, e reli mais duas vezes. Medo de ter perdido algum detalhe… E comentaria por vários parágrafos ainda. Mas tive medo de abarrotar o espaço e roubá-lo dos demais comentadores (se bem que têm sido tão raros…).

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