Começo do mês. Pagou a mensalidade da academia usando o último cheque do talão. Preencheu-o e cruzou-o com dois traços, paralelos à perfeição, riscados a quarenta e cinco graus no canto superior esquerdo da folha. Destacou-o do canhoto e anotou, em letras maiúsculas: bom para dia 20. Sublinhou o 20, a fim de não deixar dúvida ao pessoal do contas a receber. Guardou o canhoto na carteira, a carteira na bolsa. Então, deu-se conta: ela própria vinha, ampla e geralmente, pré-datando sua vida. Há anos.
Como se tudo que planejasse, almejasse e sonhasse, ficasse sob uma espécie de etiqueta “bom para”, guardado numa pasta imaginária, esperando o dia de ser descontado. Ou vivido.
O namoro de onze anos e o casamento “bom para” depois que comprassem o apartamento. Depois que o reformassem. Depois que o mobiliassem. Depois que tivessem certeza.
O velho hobby como novo ganha-pão, “bom para” o dia em que todas as condições para tanto lhe soassem mais-que-perfeitas.
O tão desejado endereço na praia, “bom para” depois que se aposentasse.
Depois. Depois. Tantos outros depois.
Mensalidade quitada (ainda que não, propriamente), rumou à esteira. Desinfetou-a com a toalhinha umedecida de multiuso e configurou o treino daquela noite. Iniciou a caminhada a três quilômetros por hora, e o cheque pré-datado não lhe saía da cabeça. Aumentou a velocidade para quatro, cinco, seis quilômetros por hora, sem que ela, contudo, saísse do lugar. Era a mentira da esteira; ela não percorrera um metro sequer. Galopava agora a nove mentirosos quilômetros por hora. A transpiração, no entanto, era real. E a fez perceber que aquela corrida de faz-de-conta, embora condicionasse seu corpo, representava suas vontades, sempre programadas para depois. Seus planos pré-datados, assim como a esteira, em verdade não a levavam a lugar algum. Todos os “bom para” emitidos ao longo do tempo, simbolicamente, haviam se transformado em data impossível, inalcançável, com vencimento para um dia depois de nunca. Interrompeu a corrida, sua respiração era ofegante, a testa líquida.
No vestiário, olhou-se no espelho. Então seus sonhos não tinham fundos?
Apanhou suas coisas e já ia cruzando a porta quando a recepcionista a chamou. Esquecera-se de assinar o cheque.
Texto bom para sempre. E assino.
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Piath sempre assinou o cheque com a data do dia… (http://www.youtube.com/watch?v=FMcMb5d79RQ)… felicidades e dores em alta velocidade! Tem dias de ser Piath e tem dias de ser Madre Tereza… o cheque nem sempre precisa ser para hoje!
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Dear, seus textos tem muitos fundos e é ‘bom para’ agora mesmo!
Li e curti! E que tal tirar da pasta imaginária um belo livro de crônicas? bjs.
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Mesmo conscientes da nossa finitude, ainda queremos um tempo “bom para”…Sei lá, sei lá…Acho que é isso, colocamos nossos sonhos, desejos, nossas necessidades, tudo, enfim, à prestação, certos de que há tempo para a quitação total. Acho que isso se chama “viver”.
Beijo, Silmara.
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sempre em” compasso de espera”
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Impressionante a sua colocacao de algumas coisas que a gente adia… Fiz uma viagem na minha mente, na minha vida, no meu passado e no meu presente… Abriu meus olhos! Obrigada, Silmara!!!! Beijos!!!
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Verdade pesada…
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